Friday, December 13, 2013

Nobre mentira, conhecimento superior e as massas

"...o solo, sendo sua mãe, lhes gerou, e agora, como se seu solo fosse sua mãe e sua ama, eles devem tratar de cuidar dela e defendê-la contra todo ataque, e considerar os outros cidadãos  como irmãos e filhos do mesmo solo..."

Tentando agora retornar um pouco aos temas da República, a releitura do livro tem me trazido boas sínteses conceituais de temas básicos. Trago hoje uma sintética e panorâmica reflexão despertada pelo tema da  "nobre mentira" que é um tema carimbado da política, mas que quero usar aqui nessa postagem para refletir não somente no sentido das relações entre governantes e governados, ou da legitimidade ou não do uso desse artifício, mas também entendê-lo como articulação entre o conhecimento superior e as massas.

Sabe-se que os pitagóricos, por exemplo, tinham uma longa jornada de preparação moral e social do indivíduo até a obtenção dos conhecimentos superiores, ou "mistérios superiores", e sabe-se que preparação semelhante existiu com diferentes formatos em sociedades tradicionais. Sabe-se também que os detentores de conhecimento sempre tiveram dificuldade de articular o que sabiam com a opinião comum que vigorava em determinada sociedade. No entanto, havia certamente sempre um grupo de indivíduos e instituições cujo objetivo era mover-se para fora da "caverna" e retornar sem causar turbulência demais; esse indivíduos, em diversos contextos, usavam, certa forma, de "nobres mentiras", seja para se protegerem ou por outra razão.

O fato é que a nobre mentira, vinda de cima para baixo, não é mera proposição platônica,  mas era uma articulação conhecida e utilizada para apaziguar a tensão da disposição hierárquica, e minha opinião, ainda que o tema seja absolutamente polêmico e minha reflexão incipiente, é de que ela nunca deixou de ser utilizada em contexto político em nenhum momento, apenas se tornou não tão nobre em suas versões modernas, e que sua natureza não é essencialmente imoral, mas tem um fundamento na natureza da ordem social e das divergências entre naturezas.

Na Modernidade, que tem um ethos individualista e "prometeico", entendeu-se que essa reserva de certos âmbitos de conhecimento ou esse monopólio era de natureza puramente política, ou seja, as classes que detinham o poder de "dar significado " (e atualmente entende-se que isso era mera lógica subjetiva) a uma sociedade conseguiam dominá-la politicamente e subjugar as classes inferiores. E, de fato, se por um lado,  a estrutura hierárquica dos antigos era uma estratégia de equilíbrio político, por outro lado, essa reserva ou essa dinâmica tinha profunda intuição na estrutura hierárquica das coisas, e na intuição de que não é possível a libertação absoluta e irrestrita felicidade das massas,  mas é possível encaminhar seus apetites em direção a alguma unidade,  por meio de metas de vida arquetípicas que podem ser satisfeitas pelas instituições e ritos  sociais (aprendizado, entretenimento, casamento, valores) e as aspirações espirituais pela religião em diferentes graus.

A "nobre mentira" em uma "sociedade aberta" se tornou uma tipo de artifício político completamente execrável e Platão chegou a ser considerado um cínico. Se é possível sim, em uma reflexão justa, condenar a nobre mentira em algum aspecto e sob algum ponto de vista, as sociedades democráticas modernas, no entanto, inegavelmente têm suas próprias mentiras, não tão nobres, e não tão conscientes, não há dúvida alguma disso.  Coisas como pátria, democracia, ou liberdade, ou autonomia, ou ser um "ator social", são obviamente invenções políticas impostas às massas, que, de livre e espontânea liberdade talvez não quisessem se ver vinculadas a tais coisas (como de fato ocorre com parte das classes médias desaculturadas e individualistas).

Ao contrário do que pensam aqueles que acreditam que os "detentores do conhecimento" eram na verdade meros inventores de conhecimentos, e criavam-nos segundo sua lógica de dominação, há abundantes evidências de que eles, tinham, em geral, uma visão de ordem muito mais objetiva e integral do que temos atualmente e seu conhecimento era o conhecimento realmente da natureza humana, ao passo que os demagogos de nossos dias, como observa Platão, tratam de agradar as massas como agradam animais: estudando-lhes os desejos, os movimentos, a vaidade, e oferecendo-lhes o "bom"  que na verdade não está alicerçado em nada de verdadeiro, mas tem como base o que as massas precisam ouvir para  poderem apoiá-los.

Uma das intuições que existiam em sociedades antigas e que não existe hoje, é àquela relativa à obtenção da felicidade e da aquisição das metas humanas segundo as diferentes naturezas, como foi exposto em postagens anteriores. Poderíamos dizer que esse tema é monopolizado hoje quase completamente pela indústria de livros de auto-ajuda, por idealizações cinematográficas, pelos discursos de pensamento positivo, por pseudo-espiritualidades, pela o vago ideal "vencer na vida", "buscar seu sonho", ou por filosofias improvisadas que vagamente se remetem a conceitos iniciáticos com termos como "superar as provações", ou ainda pela incitação do divertimentos comercializados, busca de prazeres ou "estilos de vida", e são exatamente esses modelos que são seguidos e adotados. À maioria nem mesmo ocorre que existe algo como realização humana ou que existam métodos disso,  ou mesmo que a natureza humana, por ser diferente da animal, tenha algum fim imaginável.

O que são essas e outras tendências senão sintomas de que nossos sistemas sociais atuais carecem de qualquer intuição sobre os seres humanos e são incapazes de entender ou utilizar proveitosamente as peculiariades humanas? Não temos realmente instituições de transmissão de conhecimento superior no sentido de formar seres humanos, temos no máximo instituições para mover a "máquina do mundo", e isso é mais um dado grave que depõe contra as mentiras de nosso tempo.

A ignorância relativa à natureza dos homens, e crise da autoridade dos detentores do conhecimento vem arrastando erupções e modificações há séculos. Indivíduos que têm talento ou disposição para o conhecimento enfrentam inúmeros obstáculos e, em geral,  se realiza mais uma profecia da República de Platão, a de que pessoas predispostas ao conhecimento, diante dos obstáculos e das dificuldades, se corrompem e se tornam também fomentadores do estado terrível de coisas que eles encontram, que é basicamente o de injustiça. E inclusive, é interessante acrescentar que as massas não são capazes por si mesmas de fomentar o mal social a não ser no que diz respeito à força bruta de imposição (que é um capital muito disputado politicamente),  são os intelectuais corrompidos que desempenham esse papel, em parte por não encontrarem instituições que estivessem preparadas para compreender ou preparar moralmente a relação dos homens de conhecimento com as massas.

Portanto, reitero que a nobre mentira, em sentido amplo, segundo me parece e dependendo de como se apresente, pode ser, na verdade, não uma deliberação imoral ou uma atitude cínica -- quem a condena o faz desde o ponto de vista, próprio da sociedade democrática e igualitária, que pretende uma ilusória transparência completa e horizontal das relações humanas --, mas uma interface incontornável de transmissão vertical de ordem e verdade (nem sempre tudo pode ser dito exatamente como é a todos), e de comunicação entre diferentes níveis de compreensão e de conhecimento,  com abundantes exemplos de uso ao longo da história da civilização.

Sunday, November 24, 2013

Sobre os Kâma Shastras

O tratamento dado ao sexo por parte de textos hindus desperta especial curiosidade nos ocidentais. Alguns confundem essa abordagem com a tradição tântrica, ou com coisas como "sexo tântrico", matérias completamente inventadas no contexto das "terapias alternativas" ocidentais ou coisas do gênero.

Eu decidi fazer essa postagem para explicar em termos gerais como o tema deve ser entendido dentro de um contexto maior. A alguns parecerá estranho que tal tema seja tratado de maneira metódica, pois dentro das esferas intelectuais ocidentais há poucos precedentes (talvez algumas obras como "A arte de amar" de Ovídio), no entanto, seria impensável que um monge católico, por exemplo, compusesse coletâneas de técnicas de artes sensuais como é o caso do Kâma Sutra, composto por um monge vedântico. Portanto, a sexualidade nas civilizações ocidentais, com exceção talvez da muçulmana [1], é tratada como tema da pornografia ou literatura marginal.

Dentro do Sanatana Dharma, os tratados tradicionais sobre assuntos técnicos são denominados em geral como "shastras", cuja tradução poderia ser simplesmente "tratado" ou "compêndio". Assim, como os leitores do blog já tiveram acesso à distinção das quatro metas de vida, podemos simplesmente dizer que temos os Dharma Shastras, onde encontramos o famoso Manu Smriti, temos os Artha Shastras, e temos os Kâma Shastras, cada um sendo constituído de um conjunto de obras que lidam com os aspectos técnicos delimitados pelo seu escopo.

O ideal da vida humana, concebida teoricamente como tendo 100 anos, é que o indivíduo consiga equilibrar a prática das quatro metas da vida sequencialmente (dentro dos 4 ashramas, tratados em postagem anterior) de forma a harmonizá-las e evitar conflitos. Portanto a concepção de vida segundo o Dharma nunca é uma concepção parcial ou deformada, ainda que em algum momento tenha havido maior ênfase em um dos purusharthas, não se pode falar que há um conflito de base entre eles, mas sim uma hierarquia, sendo o Dharma superior a Kâma, e Kâma superior ao Artha (que é um bem instrumental).

O termo "Kâma" é compreendido como: 
"O usufruto de objetos apropriados pelos cinco sentidos -- audição, tato, visão, paladar, e olfato -- assistido pelo uso da mente, juntamente com a alma. O ingrediente nisso é um contato peculiar entre o orgão do sentido e seu objeto, e a consciência de prazer que decorre desse contato"
Os Kâma Shastras, segundo a narrativa mitologica, surgiram a partir do touro guardião de Shiva, Nandi, que teria escutado os intercursos amorosos entre seu amo Shiva e Parvati e ficou inspirado a escrever sobre a sexualidade. Têm como obra mais famosa, ainda que não seja a obra definitiva, havendo muitas outras, o tratado chamado Kâma Sutra, que é uma compilação feita pelo religioso brâmane Vatsyayana de trabalhos e opiniões de diversos autores anteriores.

O Kâma Sutra ao contrário do que se pensa não é dedicado exclusivamente à sexualidade, ainda que sua maior porção o seja de fato, e não é uma obra espiritual, nem de magia, ainda que haja pequenas alusões à magia e encantos de natureza sexual, que são tratadas em outras obras com mais profundidade. É um tratado técnico que se focaliza na obtenção do prazer sensual desde que ele não entre em conflito com o Dharma e com Artha.  Alguns comentaristas do Kâma Sutra dão exemplos e ilustrações de possibilidades de Kâma que contrariam o Artha e Dharma, porém isso é sempre observado tendo como ótica o confronto dessas práticas com a tradição de shastras e comentaristas, e dentro de uma análise técnica das práticas correntes e gerais, independentemente da origem e da licitude. 

A primeira objeção que surgiria por parte de alguns (e os comentadores do Kâma Sutra adiantam a resposta) é que a sensualidade, sendo um aspecto do homem que é compartilhado com os animais, não precisaria ser tratado nos Shastras, ou que não haveria necessidade de qualquer estudo sério de um tema que é mera extensão do exercício dos apetites. Ao que o comentarista do Kâma Sutra responde:
"O intercurso sexual sendo algo dependente do homem e da mulher requer a aplicação de meios apropriados, e esses meios são aprendidos pelo Kâma Shastra. A não aplicação dos meios apropriados, como vemos entre animais e seres brutos, é resultante do fato de os animais serem desenfreados, e pelo fato de as fêmeas serem adequadas para o intercurso sexual somente em certas estações, além de o intercurso não ser precedido [no caso dos seres brutos] por pensamento de qualquer natureza"
E segue: 
"A aquisição de cada objeto pressupõe em todos os eventos um empenho por parte do homem. A aplicação dos meios apropriados pode ser considerada como a causa da obtenção das metas, e essa aplicação dos meios apropriados sendo portanto necessária (ainda quando algo está destinado a ocorrer), segue-se que uma uma pessoa que não faz nada, não desfrutará de nenhuma felicidade"
O que caracteriza a mentalidade tanto dos compositores de obras do Kâma Shastra, como seus comentadores é um profundo realismo e pragmatismo no que diz respeito à constitução humana, uma vez que "os prazeres, sendo tão necessário para a existência e o bem estar do corpo com o alimento, são consequentemente requeridos da mesma maneira" e "o homem praticando o Dharma, Artha e Kâma desfruta de felicidade tanto nesse mundo como no outro  mundo". Dando, por fim, a hierarquia que deve ser usada para avaliar uma ação humana com meta:
"Qualquer ação que conduza à prática do Dharma, Artha e Kâma juntos, ou dois deles, ou apenas um, deveria ser executada, mas a ação que conduz à prática de um deles em detrimento dos outros dois não deveria ser executada".
Em outras obras, há articulações do Kâma com encantamentos, astrologia e magia, e há obras que têm fins mais específicos como por exemplo, manter a paixão acesa dentro da institução matrimonial, ao passo que outras obras contemplam outras possibilidade de Kâma. O Kâma Sutra, em especial, aborda desde as artes que devem ser aprendidas pelas mulheres, os tipos de prelúdios sexuais ou arranjos de ambientes, divertimentos, passatempos, posições sexuais, os tipos de mulheres e as classificações dos tipos dos seres humanos quando à intensidade sexual. Sendo obras técnicas, os shastras não têm teor moralista, pois não há confusões de níveis (espiritual e material).

Ademais, são também documentos históricos interessantes onde é possível reconstituir com boa representatividade os elementos humanos de determinados períodos, sua vida social, sua variedade, as relações concretas (e não apenas ideais) entre as castas, o refinado senso de apreciação estética e estilo de vida característico das civilizações tradicionais do Dharma.

O que deveria ficar claro, portanto, é que:
"[Os prazeres lícitos] são resultantes, portanto, do Dharma e do Artha. E devem, portanto, ser seguidos como moderação e cuidado. Ninguém se abstém de cozinhar comida porque há mendigos pedindo-a, nem de semear porque gazelas vão destruir o milho quando ele crescer"
A sexualidade abordada nessas obras é concebida dentro de um contexto civilizacional e de uma compreensão da sexualidade diferente da que temos nas classes médias atuais, que consomem literatura sexual dentro de sua própria perspectiva ou mentalidade. No shastra tudo está inserido dentro de uma mentalidade de consecução de metas humanas e procura obter, mesmo no que diz respeito aos sentidos, alguma perfeição ou traço humano que distinga a referida arte do mero exercício desenfreado dos sentidos próprio dos animais. Um último ponto, importantíssimo de ser ter em conta é que os Kâma Shastras, não sendo espirituais, não têm relação direta com os chamados Tantras ou Âgamas, cujos principais focos são a espiritualidade e os meios de libertação espiritual.


[1] O islam, de forma mais liberal, e o judaísmo, têm de fato deliberações claras sobre a vida sexual, no entanto, em nenhuma dessas tradições há a compreensão da sexualidade como arte a ser desenvolvida através de meios apropriados.

Saturday, November 23, 2013

Os 4 estágios da vida

Nessa sequência de postagens introdutórias sobre temas védicos, faltou-nos abordar os chamados "ashramas" que são os estágios da vida segundo os "dharma shastras". No Ocidente poderíamos dizer que esses 4 estágios existem de alguma forma, e de fato eles representam não uma idiossincrasia cultural mas uma profunda intuição sobre as possibilidades de realização da vida humana. 

O ideal, segundo as injunções tradicionais, seria que a criança ficasse livre até os 5 anos de idade na casa dos pais, quando então ela seria colocada sob a instrução de um guru e até os 24 anos de idade haveria a instrução sobre os Vedas, as diversas ciências, os shastras e a disciplina moral, nesse período há abstinência sexual completa. Essa fase ou estágio é o que se conhece como brahmacharya. Veja que nem sempre a situação ocorre no período adequado e dentro dos prazos estabelecidos: isso pode ser mais ou menos flexível, e há ademais sub-períodos, e períodos de transição; o que se deve reter em mente é que o período de "estudante" assim como as outras duas fases são "instituições" védicas, há iniciações específicas de cunho social para a fase de estudante e pai de família. Observamos ainda que durante o estágio de brahmacharya toda a ênfase é no dharma.

Após o período de brahmacharya, e do período de transição, o indivíduo entra no chamado período de "grihasta" ou de constituir família. Durante o período de transição que vai dos 20 aos 29 anos, a busca dos meios materiais de subsistência vai ser empreendida (artha) e dos 29 aos 59 anos a busca dos prazeres sensuais (kama) será também incluída no escopo de atividades e metas do indíviduo.

Observamos que em nenhuma das fases, com exceção da fase infantil que vai até os 12 anos, a libertação espiritual (moksha) está descartada. Lembramos também que há indivíduos excepcionais que pulam etapas, ou que tendem a buscar somente a libertação espiritual, mas dentro de uma contexto social as exceções não precisam ser explicadas. Assim como no período de estudante, o período familiar ou social é marcado por uma iniciação para caracterizar que o indivíduo está nesse estágio, e outros ritos iniciáticos relativos aos diversos tipos de matrimônio prescritos nos dharma shastras.

Concluído o segundo estágio, e tendo cumprindo os ritos sociais, adentra-se na fase de "vanaprastha", que seria algo como vida intelectual, onde o indivíduo abandona a busca ou exercício de artha e kama, e se dedica ao dharma e moksha. Nesse período há a preparação gradual para a morte ou para o período seguinte. Note-se que vanaprastha ainda é um estágio de vida dentro do escopo da vida social, e pode ser organizado em ordens monásticas, o que permite a circulação do conhecimento adquirido em vida, e é uma instituição fundamental para a saúde social.

Por fim, temos o chamado "sanyasa" que não é exatamente um estágio social, e não é uma instituição tampouco. O sannyasa é uma conexão entre o indivíduo e o aspecto espiritual, de maneira que  ele não é atado por prescrições a serem cumpridas. O sanyasa não está necessariamente ligado tampouco a uma determinada ordem, ele pode se tornar um mendicante solitário, eremita, ou avadhuta. É digno de nota que o famoso Shankaracharya, por exemplo, não passou pelo período intermediário de grihasta, tendo inclinação espiritual desde criança, dedicou-se exclusivamente ao dharma e moksha, e não é incomum que isso aconteça. Concretamente os dois estágios finais não são compulsórios e é mais comum os casos em eles não sejam cumpridos do que os casos em que a instituição familiar seja deixada de lado. Ademais, esses 4 estágios são ideais, e na vida concreta há relativa flexibilidade disso, de maneira que trata-se de um pilar da sociedade e um modelo a ser seguido.

 Se a divisão entre a vida do homem social e o homem solitário de fato despertou debates acalorados no que diz respeito à possibilidade de obtenção de moksha, debates naturais em quaisquer agrupamentos que acabam se tornando politicamente existentes na vida concreta (Os xátrias sempre tiveram mais disposição para levarem o modo de vida de grihasta, ao passo que brâmanes, o de vanaprastha), as escrituras dizem que o indivíduo pai de família tem perfeita possibilidade de obter o moksha;  alguns puranas como o Devi Bhagavata, chegam a encontrarem inclusive mais vantagens espirituais na vida do pai de família. E dentre os tantristas, existem métodos espirituais específicos para esse modo de vida, através dos quais o cumprimento simultaneo das 4 metas de vida, sem a negação de alguma delas, é enfatizado.

Alguns notarão que tratei especificamente do papel masculino na sociedade védica. Em uma postagem futura eu vou escrever especificamente sobre as mulheres e sua posição na sociedade védica e no tantra especialmente.

Monday, November 4, 2013

O matador do demônio Madhu e a Shakti

Na última postagem, eu falei um pouco sobre as três gunas, mas hoje vou compartilhar com os leitores aqui do blog um episódio interessante da mitologia hindu que eu tive a oportunidade de ler no Devī Bhāgavatapurāṇa e que tem uma relação interessante com o tema das três gunas. Às vezes uma narrativa vale mais que mil conceitos.

Basicamente a nossa história tem cinco personagens, Vishnu que é conhecido como o preservador do Dharma; Brahma, o criador do Universo; dois "asuras" ou "demônios", Madhu e Kaitaba e a Adi-Shakti, a grande Mãe, ou suprema energia feminina. O cenário onde ocorre a história  é a "pralaya", o intervalo entre dois ciclos cósmicos quando tudo está preenchido pelas águas.

Vishnu está deitado em sua cama de cobras em sono profundo durante a pralaya. Da cera de seus ouvidos nasceram, como sói nascer de modo estranho e imprevisto nas mitologias, dois demônios: Madhu e Kaitaba. Depois de nascidos, esses demônios perambulavam sem rumo pelas águas e sem entender muito bem sua própria condição. Ainda assim foram crescendo e se fortalecendo sozinhos no meio da indistinção primordial. Surgiu-lhes, no entanto, a curiosidade natural sobre quem eles realmente eram, de onde tinham vindo e o que estavam fazendo no meio daquelas águas sozinhos. Essa curiosidade se transformou em fervor e concentração, e seu foco se tornou uma espécie de ascetismo. Com a mente concentrada eles perceberam que eles eram na verdade uma criação da Adi-Shakti, a suprema energia. Na medida em que realizaram isso, eles ouviram ressoar no meio das águas o bija-mantra, o som primordial, e ao ouvir o mantra, começaram a recitá-lo com diligência, incansavelmente e por milênios. 

O seu esforço e diligência na prática do mantra atraiu a atenção da própria Adi-Shakti, que, impressionada com sua determinação, apareceu-lhes e concedeu-lhes um pedido. Os demônios pediram a imortalidade, mas a Shakti negou, dizendo que era um dom muito alto, de maneira que eles teriam que escolher algo inferior. Os demônios então falaram que, se tivessem de morrer algum dia, que sua morte lhes viesse por sua própria escolha, ou seja, no momento em que eles mesmo deliberassem. A Shakti então lhes concedeu esse pedido e desapareceu.

Imediatamente os demônios se encheram de orgulho e começaram a vagar pelas águas, até chegarem onde Vishnu estava adormecido. Ao chegarem perto, avistaram que do umbigo de Vishnu se erguia um fio sustentanto uma flor de lótus e, sentado na flor de lótus, estava Brahma de quatro cabeças. Sabendo-se de certa forma imortais, e tomados de orgulho, os demônios esbravejaram contra Brahma, e exigiram que ele se submetesse, e que lhes concedesse seu lugar, sob a pena de destruí-lo.

Brahma, vendo que seus adversários furiosos lhe eram superiores em força, e conhecedor dos artha-shastras (livros sobre guerra e política) tentou usar as quatro estratégias clássicas: tentou primeiramente persuadí-los, ao que os demônios se mostraram resistentes, pois não queriam ouvir ou discutir nada e, ao contrário, se tornavam cada vez mais agressivos diante das palavras; Brahma tentou oferecer-lhe riquezas, em vão, pois eles já haviam recebido o que queriam através da Adi-Shakti; tentou causar divisão entre os dois, mas foi em vão.  Por fim, reconheceu que era preciso confrontá-los diretamente. No entanto, como ele já havia notado, ele mesmo não tinha condições de fazê-lo, e única alternativa seria acordar Vishnu, que tinha o poder suficiente para aniquilar os dois demônios. 

Tentou de todas as formas acordar Vishnu, mas o seu sono permanecia imperturbável. Ocorreu a Brahma, em meditação, que Vishnu estivesse sob o efeito de algum entorpecimento mágico, e que ele deveria estar sob influência da Shakti. A única saída que restava, diante da crescente fúria dos dois demônios, era invocar a própria Shakti para que ela despertasse Vishnu. Eis então um trecho da prece de Brahma à Shakti em minha tradução:

"Dizem os sábios do Samkhya que o Purusha é o ser puro, consciente, e que Tu és a Prakriti, sem nenhuma consciência, inerte, criadora do universo; mas, Ó Mãe! será que Tu és realmente inerte como dizem esses filósofos? Nunca! se fosse assim, como é que Tu fizeste o Senhor Vishnu, o receptáculo do mundo, ficar assim inconsciente? Ó Bhavani! Tu, que estás além das gunas, projeta numa atuação dramática essas várias peças pela conjunção das três gunas. São suas três qualidades, Sattva, Rajas and Tamas, aquelas nas quais os munis meditam todos os dias de manhã, ao meio dia e à noite [...]"

A Deusa manifesta seu poder sob a invocação de Brahma e eis que desperta Vishnu que, informado por Brahma sobre o ocorrido, inicia contra os demônios uma luta épica que duraria cinco mil anos dos deuses. Vishnu fica atônito pelo fato de que nada do que ele tentava atingia os demônios e ele não conseguia lhes causar dano algum. Ao contrário, se cansava cada vez mais, correndo o risco de perder a luta. Sob a alegação de que eles eram dois demônios e alternavam entre si, fazendo a luta ficar injusta, Vishnu pede um intervalo. No intervalo, pelos seus poderes transcendentais, Vishnu percebe que os dois demônios haviam recebido algum benefício da Shakti, contra a qual ele nada podia. Daí, o próprio Hari (outro nome de Vishnu) invoca a presença da Deusa, que se manifesta pela terceira vez em nossa história. 

A Deusa se manifesta em forma tão esplendorosa e linda que os demônios ficam encantados e intoxicados tentando impressioná-la para ganhar-lhe a simpatia. Vishnu, percebendo-lhes o orgulho e a intoxicação, oferece-lhes um pedido dizendo: "vejo que sois valorosos lutadores como nunca vi antes, concedo-vos portanto um pedido". Os dois demônios querendo impressionar a Shakti mostrando seu valor e superioridade, respondem que, do contrário, eles é que estão em condições de conceder um pedido a Hari. Prontamente aceitando a proposta, Vishnu pede que os dois demônios se entregem à morte em suas mãos.

Os demônios concedem, porém, caindo em si logo depois, eles apelam para o fato de que Vishnu lhes havia oferecido um pedido primeiro, e que é obrigação que esse pedido também lhes seja concedido. O pedido dos demônios é que, se eles forem mortos por Vishnu, que eles fossem sacrificados em solo firme acima das águas.  Diante da concessão dos pedidos, se inicia uma nova batalha quando Vishnu se ergue subitamente acima das água e oferece seu colo como solo firme para que os demônios sejam sacrificados, ao que os demônios reagem crescendo milhares de vezes mais que Vishnu e tornando impossível tal coisa. Alternando-se nesses gestos, tanto Vishnu como os demônios vão crescendo acima das águas por muitos milhares de anos, até que os demônios por fim admitem derrota e escolhem ser sacrificados no solo firme do colo de Vishnu. E foi assim que Vishnu ficou conhecido como Madhusūdana, o matador do demônio Madhu.

A lição maior dessa história, no entanto, segundo eu vejo, é com certeza a compreensão da energia feminina (Shakti) e a relação dela com as três, como observa o próprio Vishnu:

"[...] É pela vontade dela que eu assumo a forma de uma Tartaruga, de Javali, do Homem-Leão e do Anão. Ninguém deseja nascer no útero de animais inferiores (especialmente pássaros). Vocês acham que Eu (Vishnu), por minha própria vontade, nasceria como avatar no útero de javalis ou tartarugas? certamente não. Quem é que, sendo independente, abandonaria o desfrute prazeroso da companhia da Laxmi para nascer em animais inferiores como peixes, ou quem é que deixaria seu trono e se envolveeria em grandes conflitos ou guerras?  Ó Swayambhu [...] Portanto, eu não sou independente, eu estou sob a influência da Shakti sob todos os aspectos, eu sempre medito naquela Shakti, e eu não conheço nada além dessa Shakti!" 

Isso renderia muita análise simbólica certamente, e dá-nos, por exemplo, uma lição concreta no nível do simbolismo comparado, como já observava René Guénon no seu livro a Grande Tríade, sobre a diferença entre a trindade hindu (Vishnu, Brahma, Shiva) que é saguna e a trindade cristã que é nirguna e corresponderia, no simbolismo hindu, a outro plano. 

Thursday, October 31, 2013

As três cordas da matéria

Nas postagens anteriores, ao definir as naturezas humanas, eu utilizei termos como "sattva", "rajas" e "tamas". Para alguns que já estão acostumados com a terminologia a coisa fica bem clara, no entanto, eu estou preocupado com que essas postagens também sejam entendidas por quem não estudou previamente o tema, e são realmente postagens básicas, de maneira que vou fazer uma breve explicação sobre isso.

Fundamentalmente, no nosso mundo, tudo o que é dinâmico se dá através de tríades. É a tríade, na manifestação, que opera o desequilíbrio e que causa o movimento dialeticamente, por assim dizer. Se o nosso mundo fosse constituído por dualidades, não haveria movimento, seja no sentido ascendente, descendente, ou expansivo. 

Pois sim, o fundamento desse três modos é conhecido no Dharma como a doutrina das três gunas (trigunatva): as três cordas que amarram a "roda do mundo" e que a mantém girando. Grande parte das escrituras hindus falam das três gunas no sentido de propor a libertação do homem, ou seja, propor o "kaivalya", que é o isolamento para além dessas três gunas, de maneira que grande parte dos livros se expressam em termos de prática espiritual e da análise da alma humana e não em termos de metafísica exatamente. Isso não quer dizer que o conceito seja exclusivamente uma definição de "estados de humor" ou algo assim, essa é uma interpretação errada, as gunas afetam todo o mundo manifestado e não só a disposição humana.

A primeira guna é "sattva". Esse nome tem um raíz em "sat" que indica o "ser". Alguns a traduzem como "bondade", o que é legítimo e está na semântica do termo (os platônicos especialmente entendem bem a convergência entre bondade e essência), no entanto, a "bondade", ao menos atualmente entre nós, tem  algumas conotações morais ou sentimentais não apropriadas e pouco metafísicas, de forma que pode evocar a ideia errada.

Eu vou preferir traduzí-la, depois de muito refletir, por "lucidez", tradução usada pel indologista George Feuerstein, muito apropriada pela etimologia e por abranger boa parte dos sentidos diversos do termo. O sattva se caracteriza pela pureza (nirmala), pela luminosidade (prakasha) e pelo vigor ou "saúde" (anâmaya). Essa corda ata ao ciclo dos renascimentos através do apego à felicidade (sukha) e ao conhecimento (jñana). Em um simbolismo mais profundo, o chamado simbolismo dos  três mundos, sattva estaria relacionado com o "svar" ou o éter, o espaço além da atmosfera. Para usar o simbolismo das direções espaciais, o sattva olha "para cima".

Lembrando oportunamente que tudo o que é afetado pelas gunas, de fato está no campo do "sat", porém não está necessariamente no campo da consciência (cit). Essa consciência é dada pelo "Espírito" (purusha), que está fora das cordas da matéria; mas esse é um outro tema. 

O Bhagavad Gita, famoso livro espiritual, diz que o que caracteriza rajas, que traduziremos aqui como "ação",  é o desejo ou a sede (tṛṣṇā). Em certo sentido, ele existe através da atividade e da inquietude para se "expandir" ou buscar novas manifestações em um mesmo plano. O rajas está identificado com a atmosfera, e o mundo intermediário (bhuvar-loka) na correspondência cósmica, está identificado também com o estado de sono com sonhos (svapna). O rajas ata o indivíduo porque a ação gera reação numa cadeia infinita. O rajas olha para as direções num plano horizontal.

O tamas, por fim, que traduziremos como escuridão, é caracterizado pela confusão, em sentido quase etimológico, ou seja, perda da luminosidade e da qualidade, e pela ignorância ou ausência de discriminação. Reduz as coisas à inércia ou ausência de dinamismo. Ele ata as pessoas pelo fato de que a escuridão impossibilita a ação, é uma espécie de sono. O tamas olha para baixo.

Notemos que esses simbolismos nem sempre são diretos ou óbvios, daí é relativamente difícil tratar disso de forma básica. Por exemplo, desde o ponto de vista do mundo físico o sono sem sonhos seria um tipo de entorpecimento e deveria representar um estágio inferior e não superior; da mesma forma o mundo além da atmosfera parece ter menos ação ou dinamismo que o mundo físico, etc. Essas aparentes dificuldades são resolvidas em correspondências simbólicas mais complexas e profundas e às vezes com correspondências invertidas. Por isso há que se tomar cuidado ao aplicar as coisas para diferentes planos.

Temos então, para concluir, o seguinte: as três cordas da matéria são a lucidez, a ação e a escuridão, que amarram perpetuamente o agente, respectivamente, pela felicidade (sukha), pela reação (karma) e pela intoxicação (pramâda).


Thursday, October 24, 2013

Natureza humana e infraestrutura social

Na última postagem falamos um pouco sobre as diferentes metas da vida humana. A possibilidade de realização dessas metas pode dar-se de diversas maneiras, mas dentro do Dharma existe a concepção de que uma determinada sociedade tem que dispor corretamente sua estrutura  de maneira que o ser humano possa realizar seus objetivos (purushartha), levando-se sempre em conta que os diferentes seres humanos manifestam diferentes potencialidades ou naturezas. Isso teria semelhança com o conceito de "justiça" da República de Platão, que consiste basicamente noção de que é necessário distribuir o acesso a certos bens (espirituais, materiais) de acordo com as diferentes naturezas dos seres humanos.

Na República de Platão, para explicar a estrutura da alma humana, Sócrates discorre longamente sobre a justiça aplicada socialmente, uma vez que isso seria uma forma de lente de aumento para conhecer a estrutura da justiça também na alma individual. Da forma semelhante, no Dharma também há relações entre o homem, arquetipicamente concebido, e a estrutura de uma sociedade, que é entendida como sendo uma manifestação visível do homem universal, do "purusha". As diferentes categorias sociais são resultado, no contexto escritural, do sacrifício do "purusha", o homem universal, que, segundo a narrativa tradicional,  é desmembrado, dando origem às diferentes naturezas ou funções a partir de diferentes partes de seu corpo . 

A primeira coisa que deve-se ter em mente é que não estamos abordando aas possibilidades de realização da perfeição exclusivamente desde o ponto de vista individual ou "biográfico", que seria mais apropriadamente enquadrado no que se conhece como "ashramas", e tampouco estamos falando de temperamentos individuais, que são temas que serão abordados posteriormente quando tivermos oportunidade. Portanto, quando estamos tratando da realização da perfeição desde o ponto de vista da articulação infraestrutural entre o individual e  social estamos falando de "varnas", que são as famosas "castas".

A varnas se dividem em quatro grandes categorias: brâmanes, xátrias, vaixias, e sudras. É importante notar que existem 3 maneiras distintas de classificar as varnas: pela natureza ou qualidade predominante (guna), pela função que ele desempenha na sociedade (karma), e pelo nascimento (jâti).

Quando classificamos as varnas segundo a qualidade, os brâmanes seriam os indivíduos nos quais predomina a chamada "sattva guna", ou seja, seriam indivíduos nos quais naturalmente predominam as características de sabedoria, contemplação, solidão e a transcendência. Os xátrias seriam indivíduos nos quais há o predomínio da "rajas guna" em sua forma pura (mesclada com sattva), predominam neles a tendência o dinamismo, à energia, à motivação, à instauração da justiça, à defesa dos ideais, ao sacrifício e ao trabalho altruista. Os vaixias, por outro lado, teriam como característica predominante a "rajas guna" em sua forma impura (mesclada com tamas), ou seja, eles são dedicados essencialmente à atividade egoísta (em sentido amplo e não necessariamente com juízo de valor), eles são dinâmicos como os xátrias, têm energia e motivação, porém, ao contrário daqueles, tendem a defender seus próprios interesses ou interesses de seu grupo. Poderíamos dizer que os xátrias têm tendência a um dinamismo espiritual e os vaixias a um dinamismo material. E por fim temos os sudras, que são indivíduos com predominância de "tamas guna"; eles são pouco motivados internamente e normalmente são guiados por influências externas, funcionam inercialmente e letargicamente portanto, e têm suas motivações predominantes em coisas como alimentação, divertimento, sobrevivência e reprodução.

A segunda classificação das varnas diz respeito a funções sociais. Nesse caso, os brâmanes seriam indivíduos dedicados a qualquer função que envolva o estudo da espiritualidade, a interpretação das escrituras, a transmissão e preservação do conhecimento sagrado, a assistência espiritual, a reflexão e a transmissão contínua da sabedoria.  Os xátrias seriam indivíduos dedicados à proteção, manutenção, governo, ordem, lei, justiça, defesa, e policiamento de uma sociedade. Os vaixias se dedicariam ao comércio, à intercâmbio de bens materiais, produção de riqueza, etc. Os sudras, por sua vez, são indivíduos não especializados, que tendem a se dedicar a trabalhos que não requerem iniciativa ou dinamismo, coisas como trabalhos supervisionados ou 'força produtiva' em qualquer setor.

E por fim temos a classificação de "jâti" ou nascimento, que consiste na posição social herdada e mantida pelas estruturas de costume, de rito, ou de tradição, ou seja, basta que um indivíduo nasça em uma determinada família que tradicionalmente mantém certa posição e ele será considerado como parte daquela varna.  Observa-se que esse último caso tem uma importância desde o ponto de vista infraestrutural em uma sociedade tradicional: é natural (e de certa forma inevitável) que ocorra que uma determinada varna preserve sua existência contínua através da hereditariedade e de ritos, no entanto, uma sociedade tem que ter algum mecanismo contra o engessamento dessas infraestruturas transmitidas por nascimento, e quando isso não ocorre, entra-se numa crise civilizacional, pois há variação ou perversão, ou seja, indivíduos que nascem em determinada varna ou desempenham a função social de determinada varna manifestam tendências ou qualidades de outras varnas, causando corrupção e decadência com o tempo.

Desde esse ponto de vista, poderíamos dizer que a crise predominante nas sociedades da Kali-Yuga, é a inversão das correspondências entre naturezas e funções. É importante notar também que desde o ponto de vista tanto da "guna" como do "karma" é possível haver alguma mobilidade (mas não completa mobilidade como pretende a ideologia do "self-made man"), seja pela necessidade, aperfeiçoamento ou contingência, ou seja, um indivíduo tamásico pode desenvolver qualidades rajásicas, e um indivíduo sattvico pode desempenhar funções rajásicas, por exemplo. A imobilidade em geral se refere ao nascimento e às infraestruturas de transmissão ritual ou tradicional disso, e nenhum dos críticos tradicionais do chamado "sistema de castas", como o Buda, desconhecia ou negava a existência das diferentes naturezas e funções humanas. 

Tuesday, October 22, 2013

Os objetivos da vida humana

Muitas pessoas interessadas no chamado Sanatana Dharma começam pelo estudo das escrituras, como os Upanixades, ou pelo estudo do Vedanta, que são os ensinamentos metafísicos. No entanto, eu vejo que alguns não compreendem exatamente como situar as coisas dentro de uma estrutura maior, e, portanto, eles as situam dentro de categorias mentais próprias do Ocidente moderno como misticismo hindu, ou coisas assim. A primeira coisa que se deve ter em mente é que todo ensinamento do Dharma, principalmente ensinamento escrito, está inserido dentro de uma civilização, e uma civilização é completa em si mesma, de maneira que todos os campos da atividade e conhecimento estão de alguma maneira articulados e são proporcionados a essa hierarquia interna.

Diante dessa falta de referência ou de conseguir situar os ensinamentos por parte de ocidentais, eu acho hoje em dia que um estudo cuidadoso da República de Platão e da Ética de Aristóteles seria muito importante, e talvez suficiente, para que nós ocidentais tenhamos uma dimensão mais acessível de como esses temas são delimitados e a que eles se referem, evitando interpretações fantasiosas. Na República de Platão temos a constituição ideal de uma civilização edificada segundo o processo da filosofia e da investigação. A diferença entre isso e o Dharma é que o Dharma é dado dentro de um contexto de sacralidade. Todo o conjunto de escrituras hindus, cujas conexões e articulações parecem muito complexas, são proporcionados e têm o seu eixo na edificação do que conhece como "purushartha", da qual vamos tratar brevemente aqui. 

O "purusha", que como outros termos sânscritos tem também inúmeros sentidos, nesse caso indica o ser humano, o homem em seu sentido universal, ao passo que "artha" seria relacionado ao significado, à meta; de maneira que isso nos leva a compreender que é uma definição da metas ou significados da existência humana, ou seja, obviamente não são prescrições para animais ou plantas. Mas, ao dizermos que isso não se direciona a animais e plantas, verificamos que se direciona aos seres humanos por uma razão da diferença específica entre os seres humanos e animais, que é o intelecto, que é conhecido como "buddhi". As metas humanas são proporcionadas às faculdades humanas, animais têm também perfeições a serem realizadas e eles as perseguem, mas eles as perseguem por uma disposição instintiva, ao passo que o ser humano a persegue usando faculdades intelectuais como memória, juízo, vontade

Qualquer uma das milhares de escrituras hindus está, de alguma maneira, proporcionada a consecução de uma meta humana direta ou indiretamente. Faremos em outra postagem uma classificação dessas escrituras e sua relação com as metas humanas, o que pode ajudar as pessoas que querem se situar dentro desse contexto. Agora tratemos um pouco das 4 categorias de perfeições ou metas do ser humano: artha, kama, dharma, moksha.

A primeira necessidade de um ser humano é garantir sua integridade física e subsistência material. De maneira que "artha" seriam os meios, as artes, e as doutrinas, que são criadas tendo como fim a obtenção ou garantia de que essa necessidade seja cumprida. A sobrevivência física inclui coisas como alimentação, saúde, vestimenta, moradia e segurança. Daí que coisas como a medicina, a política, a economia, a arquitetura e as artes militares são relacionadas a essa meta humana. Notemos novamente, no entanto, que no contexto grego, essas coisas são objetos de reflexão individual, ao passo que dentro de uma civilização sagrada, isso é dado através de um conjunto de ensinamentos atemporais.

A segunda necessidade de um ser humano, uma vez garantida sua integridade física e subsistência material, é a satisfação dos sentidos e o conforto ou luxo. Ou seja, na medida em que temos uma moradia, queremos decorá-la para que ela fique mais confortável, na medida em que temos alimentação, começamos a pensar em termos de culinária ou temperos, a partir do momento em que nossa integridade não está ameaçada por inimigos começamos a desfrutar de entretenimento, música, teatro, dança e cultura; na medida em que nossa saúde não está em risco, começamos a fazer exercícios para a beleza física, etc. A isso se dá o nome de "kama", ou seja, é a satisfação sensorial, estética.

As duas necessidades anteriores são aplacadas por meios visíveis, tangíveis, no entanto, quando as aplacamos, entramos em contato com as realidades ou perfeições invisíveis, é o que se chama nesse contexto de "dharma", e deve-se ter novamente cuidado com a polissemia da língua sãnscrita, pois o dharma nesse caso está delimitado pelo escopo das purushartas. O dharma é de difícil compreensão, mas digamos que ele está relacionado, em termos ocidentais ao conceito de justiça, mérito, e bens imateriais. Seria um conceito muito próximo das "virtudes dianoéticas" de Aristóteles, no meu entender. O dharma, por ser de certa forma imaterial, tem algum escopo "soteriológico", no sentido de que seus efeitos transcendem a vida humana e influenciam o renascimento. Ele se opõe em algum sentido ao karma, que seriam os efeitos automáticos ou inconscientes das ações humanas, uma espécie de justiça cega, ao passo que o dharma seriam efeitos conscientes e baseados em uma justiça direcionada.

E por fim temos o objetivo do Vedanta, que é o moksha, a mais alta aspiração humana, e que diz respeito à liberdade no sentido metafísico. Essa meta se diferencia das outras três e transcende o escopo da atividade meramente humana, direcionando-se ao aspecto divino. Esse é o tema principal de escrituras como os Upanixades, por exemplo. A delimitação dessas quatro metas da vida humana é o tema básico a ser compreendido por qualquer pessoa que queira estudar o Dharma. É um tema que tem diversas relações com outros temas fundamentais como o das varnas ou castas, com a questão as 4 naturezas humanas, das gunas, com os estágios da vida humana, e com as práticas espirituais específicas, temas mais complexos que não trataremos nessa postagem, mas aos quais posso retornar futuramente.

Monday, September 9, 2013

A injustiça como obscurecimento da perspectiva da eternidade

Vou fazer algumas postagens inspiradas nos temas delineados na República de Platão. Deixo hoje alguns pensamentos suscitados pelo debate clássico entre Trasímaco e Sócrates, que se dá logo no primeiro capítulo da obra. 

Eu imagino que devido ao peso dessa referência, inúmeras reflexões em diversos planos devem ter se acumulado academicamente. Não as conheço, mas gosto de tomar esse diálogo desde a perspectiva da sabedoria perene, compreendendo-o como manifestação de uma possibilidade humana especifica, a de resgate do conceito de justiça através de um método específico, a filosofia, porém também como articulação necessária dessa possibilidade humana com a estrutura estável e imutável da Lei, entendida como Dharma, tal qual os hindus veem a questão.

Ora, a injustiça é uma disposição da alma que arrasta o homem para a falsidade e, em consequência, para a não realização de sua perfeição possível e da eternidade. A discussão no primeiro capítulo da República de Platão entre Trasímaco e Sócrates, ainda que não seja suficiente para dar a dimensão mais profunda da justiça, cuja investigação toma todo o resto dessa célebre obra, coloca o tema da justiça em um panorama opositivo: de um lado Trasímaco diz que a verdadeira justiça é a vantagem do mais forte, e que viver injustamente é o ideal maior do homem, do outro lado está Sócrates, que por meio da argumentação, vai tentando, através dos próprios elementos permanentes e imutáveis da razão reflexiva do interlocutor, trazer a justiça para o plano da consciência. 

Que a filosofia, como entendida pelos antigos, é essencialmente o exercício de atingir uma disposição primordial, desnuda da alma, ou seja, atingir o lugar interno onde a alma se converta num cristal transparente que reflita uma lei eterna, é inegável. As camadas de ignorância representadas por Trasímaco são os diversos véus que obscurecem essa disposição primordial. Ao longo do primeiro capítulo da República Trasímaco vai oferecendo esses véus da alma um a um, e eles vão sendo retirados por Sócrates através de seu instrumento dialético. Sócrates se defronta com uma confusão em seu interlocutor, na qual as disposições ou potências anímicas se veem intercaladas de maneira incorreta, caótica, e vai restabelecendo a hierarquia correta, confrontando no entanto, a cada passo, poderes de resistência, de vaidade, de vanglória, de falsidade e de injustiça.

Tudo isso é muito claro. O que às vezes é obscuro é que esse novo método que nascia, essa dialética, é um método condicionado a dois fatores: a lei eterna e o obscurecimento cíclico. Na Grécia de Platão, os deuses eram propriedade dos poetas, e esses deuses tinham elementos também de confusão. Os deuses não refletiam mais a justiça, pois eram humanizados, apaixonados e representavam dramas que não tinham mais conexão com a Lei. Paradoxalmente os deuses estavam muito próximos da humanidade porque tinham se afastado de si mesmos, por assim dizer; o homem se reconhecia nos deuses, mas os deuses não tinham capacidade de elevar o homem ao eterno. Os elementos mais acessíveis para a busca da justiça são, portanto, o homem, a alma e a palavra. Nessa articulação cirúrgica, no meio das ruas da polis, é que acontecem os partos que fazem nascer de novo os homens justos dentro da escuridão dos tempos de decadência.

O Dharma, como observa René Guénon, é o atributo de estabilidade que se manifesta no mundo. Dentro dos seus múltiplos significados, o Dharma é a Justiça. É a perfeição realizável de determinada manifestação. Se o ser humano, enquanto humano, não realiza seu Dharma, ele decai e como que experimenta uma dissolução, uma força centrífuga terrível que vai afastando-o do "centro do mundo", do polo ou do eixo, termos que em sânscrito têm associação etimológica com o termo Dharma. 

Essa estabilidade, essa Lei, em eras douradas era obtida diretamente do contato imediato do homem com a divindade, sem intervenção de protocolos ou de envoltórios limitados como a palavra. É na filosofia grega, talvez em Pitágoras, que a palavra humana e o discurso humano são convertidos providencialmente em instrumentos de "resgate" e a Lei é obtida pela reflexão mental; e isso só veio a ocorrer em função do obscurecimento da inteligência e não por sua iluminação, como querem os historiadores mais ortodoxos da filosofia. Estudar a filosofia afastando sua gênese da concepção ou da pressuposição da Lei Eterna, da Lei Trascendente, e da consciência aguda do terror cósmico causado pelo afastamento das divindades, é transformá-la em ginástica lógica ou exercício fútil, o que transformaria Sócrates de fato em um sujeito realmente patético ou até mesmo em um personagem cômico e frívolo tal qual apresentado por Aristófanes (ainda que talvez não com essa intenção exata) ou um profeta da debilidade, como quis Nietszche.

Sunday, September 8, 2013

A Transmissão da Chama

Se um indivíduo seguir a “via do conhecimento”, ainda que de forma puramente inconsciente, crítica, opositiva, se ele seguir com sinceridade, em algum momento ele vai chegar ao conceito de não-dualidade, e vai chegar ao limite da mente. Alguns vão chegar à compreensão de que essa não-dualidade não é puramente transcendente, como quis Kant, por exemplo, mas que tem a ver com a relação do próprio indivíduo para o qual o conceito ocorreu e a Possibilidade Universal. 

Nesse momento em que o pensamento capta tanto seu próprio movimento como a impossibilidade de sua independência ontológica, a unidade de teia da realidade é intuída de forma que não há aí um sujeito ou objeto. Não há nada de especial nisso e não é algo a ser mistificado. Mas é um ponto importante na busca filosófica ou espiritual, ter essa intuição imediata em algum momento. É um encontro com a realidade e não com meras ideias, por assim dizer. Muito dificilmente alguém permanecerá nessa intuição, pois se permanecesse o indivíduo seria uma espécie de divindade, no entanto, é preciso que ela ocorra em alguma momento para que o indivíduo tenha algum ponto de referência. 

Essa intuição sobrevoou meus horizontes mentais por muitos anos, se concretizando nas duas polaridades que o budismo denuncia, ou seja, às vezes em panteísmo, às vezes em niilismo, ambos indecisos e flutuantes, até eu encontrar uma obra que me deu indicações muito importantes para superar minha visão. Essa obra foi uma pequeno livro cujo título encabeça essa postagem  com uma entrevista com o pensador francês  Jean Klein. 

Jean Klein explorou as possibilidades intelectuais de seu tempo, leu Nietszche, Dostoievski, Max Stirner e se interessava pela ideia de não-violência de Gandhi. Era um homem de profunda inclinação para a beleza e para as artes. 

Nesse livro Klein conta como ele chegou a receber a “Transmissão da Chama” que o levou à Índia e o fez realizar a não-dualidade com a possibilidade infinita de todas as coisas. Jean Klein, que era um anarquista, e que entendia as coisas a partir de um ponto de referência social ou político, foi escalando de leitura em leitura até encontrar René Guénon. Ele diz que pela primeira vez, ao entrar em contato com Guénon, ele compreendeu que havia uma estrutura metafísica da totalidade, e que as estruturas sociais eram acidentais dentro da totalidade. Essa concepção, e também a de Tradição foram fundamentais para que Klein viajasse à Índia em uma busca espiritual ainda que não claramente definida para si mesmo.

O filósofo francês não buscava um guru ou uma doutrina, segundo ele relata. Chegando à Índia ele entrou em contato principalmente com pessoas no campo das artes e com personalidades e intelectuais. No entanto, teve a oportunidade de entrar em contato com um mestre da escola advaita-vedanta (não-dualismo) e fazer-lhe perguntas. Por fim, acabou ficando 4 meses sob a instrução desse mestre. Esse encontro teve um impacto enorme e Jean Klein teve a experiência da não-dualidade. Ele chegou a encontrar outras personalidades espirituais hindus e ficou sobre a instrução regular de um guru por 4 anos. Jean Klein diz que sua experiência de não-dualidade se estabilizou posteriormente, e ele retornou à Europa. 

Na minha opinião, não há como julgar a estatura espiritual de alguém, mas há algumas limitações e principalmente problemas na relação do Jean Klein com a tradição hindu, na sua posição de instrutor espiritual não tradicional, se inserindo dentro que se conhece hoje como neo-advaita, e nos métodos utilizados para ensinar isso a Ocidentais. No entanto, o livro foi muito importante para mim, primeiramente, porque eu cheguei ao René Guénon e ao Ananda Coomaraswamy,  autores que são responsáveis por quase toda minha estrutura de compreensão da modernidade através desse livro, e em segundo lugar porque foi a primeira obra na qual eu vi que havia possibilidades reais de superar as concepções modernas da realidade, e que era possível que uma pessoa chegasse a uma intuição que transcendesse as contingências.

A experiência não-dual a qual ele se refere, e da forma com ele se refere, segundo eu vejo, parece super simplificada e até mesmo profana. Tirando essas limitações, Jean Klein é uma pessoa com uma clareza e um vislumbre interessante para indicar a não-dualidade, e seus outros livros também valem a pena, com as ressalvas importantes de que a não-dualidade, ainda que seja uma formulação conceitual simples, não deve ser por isso trivializada ou vulgarizada como ocorre com autores modernos. O neo-advaita, se abriu algumas portas, fechou outras tantas e às vezes reforçou condicionamentos errados no Ocidente e inclusive impossibilitando o conhecimento espiritual em muitos casos.

Wednesday, August 21, 2013

Primeiro Alcibíades

Se eu fosse apontar uma unidade das postagens até o momento nesse blog, eu diria que estou peneirando uma série de pequenos livros, de fácil leitura e que podem mudar a perspectiva de vida de uma pessoa. Bom, esse pequeno diálogo platônico compartilha em muitos sentidos essa mesma estrutura com algumas outras obras aqui já citadas. 

O platonista Thomas Taylor, em sua Introdução à Filosofia Platônica recomenda que essa obra seja a primeira obra que alguém que pretende estudar a obra de Platão deveria ler.  E realmente uns três ou quatro temas gerais que são desenvolvidos posteriormente em outros diálogos estão já aqui delineados bem como o método geral também  está,  de forma que é de fato um bom livro introdutório segundo eu vejo.

Alcibíades, que dá nome ao diálogo, é um jovem homem que possui quase todos os bens externos que alguém poderia almejar no contexto da pólis grega (juventude, beleza, riqueza, amizades, etc.) e que está em busca agora do poder político. O diálogo se inicia girando em torno das questões das competências necessárias para a vida política. Através da sua conhecida escalada conceitual e direcionando Alcibíades a uma reflexão interior, Sócrates vai destruindo os pressupostos do jovem pretenso político e desvelando suas falsas expectativas de conhecer o conceito de Justiça e até mesmo o conceito de Amor com propriedade.

É de se notar que Alcibíades tivera interesse não correspondido por Sócrates, como pode ser visto em episódio do Banquete, e na ocasião desse diálogo, o filósofo usa esse vínculo pessoal também como mais um elemento no impulso "centrífugo" da retirada da atenção das coisas externas para alma, e ele o faz mostrando a superioridade o amor da alma, em relação ao amor dos corpos. Sócrates se apresente então como o único amante legítimo e fiel de Alcibíades, pois ele amava sua alma, que era permanente, e que esse amor não poderia acabar nunca (eu li em algum lugar que foi desse diálogo que se originou o termo 'amor platônico', mas não confirmei isso).

O ápice do diálogo é, no entanto, a apresentação do famoso adágio "conhece a ti mesmo", que é o ponto de apoio ou alavanca de grande parte da filosofia platônica. Vimos anteriormente no compêndio da auto-investigação do hindu Ramana Maharshi a abordagem negativa; pois sim, esse diálogo também é uma investigação negativa do "eu verdadeiro" à sua maneira. Sócrates demonstra, através de raciocínios, que o "ti mesmo" ao qual se refere o Oráculo, não é o corpo, pois o corpo é uma posse do "eu", e tampouco são objetos externos.

Na busca pela perfeição e pela virtude, o modelo mais imediato é o contato com a alma de um homem virtuoso, da mesma forma que o olho vê a si mesmo no olho de outro, a alma vê a si mesma refletida em uma outra alma virtuosa; No entanto, em última instância, essa investigação desemboca, nos termos do próprio diálogo, no reconhecimento do Deus como a via para sair dessa "situação lastimável" de escravidão, que é a vida do homem não virtuoso.

Alcibíades, que no início do diálogo era um homem que pretendia conhecer a justiça e ser qualificado para exercer a função pública, reconhece suas limitações e se coloca sob a instrução de Sócrates, que faz uma observação ainda sobre o poder corruptor da política,  que consegue às vezes desvirtuar até mesmo as almas que aspiram à virtude e à nobreza.

Sunday, July 28, 2013

O compêndio da auto-investigação

Montanha de Arunachala
"A investigação sobre a natureza da Consciência imutável e a estabilidade em 'Si Mesmo' é o caminho para compreender de maneira investigativa, a sua própria verdadeira natureza"

Ramana Maharshi







Nas resenhas de livros anteriores tivemos a oportunidade de ver alguns padrões ou estruturas comuns na percepção do sagrado e no itinerário que leva até a integração mística. Ainda que haja problematização sobre o nível em que isso se dá, não podemos deixar de notar que essa estrutura se repete em muitas tradições espirituais. 

Hoje, vamos fazer um resumo do já breve livro chamado Vicharasamgraham, que dá os fundamentos dos ensinamentos de um santo indiano moderno, Ramana Maharshi. É preciso sempre dizer, é um dever moral incontornável na verdade, que eu não tenho qualquer pretensão de ter compreendido ou abarcado integralmente o conteúdo os livros de natureza mais espiritual que eu resenho aqui, isso deveria ficar bem marcado e não deveria haver qualquer dúvida em relação a isso. Faço-o somente pelo proveito pessoal de estudo, pela divulgação das obras, que podem ser de benefício indireto para as pessoas, e pela oportunidade utilização dos instrumentos da religião comparada e da observação de estruturas de percepção do sagrado, tais quais foram oferecidas por Mircea Elíade, por exemplo,  que são legítimos dentro de seu próprio nível, que é um nível eminentemente inferior e de escopo limitado.

Ramana Maharshi aos 16 anos teve uma intuição espiritual que mudou sua vida: através da auto-investigação ("Quem sou eu?") ele foi 'eliminando', por assim dizer, as camadas exteriores do Ser (tudo o que não sou), percebendo que ele não estava no mundo externo, nem na mente, nem em qualquer objeto. Por fim, Ramana compreendeu o "Sujeito Último"  se estabelecendo aí.

É interessante notar, no entanto, que essa experiência, que seria a experiência suprema, não se acomoda na simples constatação, mas vai descendo e se estabilizando simbolicamente no mundo e uma série de indicações simbólicas vão se apresentando. Ramana recebe uma chamada interna para buscar a montanha de Arunachala. Chegando à cidade de Tiruvanamalai, Ramana entrava frequentemente em profunda meditação, e quando estava absorto no êxtase, Ramana recebia pedradas de crianças, e teve que ir mudando de lugar até que subiu a montanha de Arunachala e se estabeleceu numa caverna ali, permanecendo por muitos anos em "mauna" ou silêncio.

Aos que conhecem as indicações, tanto do simbolismo da caverna como da montanha, entendem que o estabelecimento da realização espiritual de Ramana nesse contexto, longe de ser algo de mera repercussão psicológica ou interna, se articulava gradualmente com uma geografia sagrada da montanha de Arunachala. Existem profundas relações entre a figura do guru primordial Dakshinamurti, um dos mil nomes de Shiva, que entre outras coisas, significa "aquele que olha em direção ao Sul (Dakshina)", e a figura do Ramana Maharshi que foi iniciado sem guru humano. Segundo o simbolismo tradicional hindu, os Himalaias, que ficam ao Norte--que em sânscrito é tanto a direção geográfica como o termo que indica o "supremo" (Uttara)-- é o reino divino, ao passo que o Sul é o reino dos homens, ou seja, Dakshinamurti, além de outros aspectos, tem o aspecto providencial de oferecer um método de esclarecimento aos que estão em ignorância. 

Esse é um tema simbólico muito complexo e sutil e nos tiraria do objetivo dessa resenha, mas basta observar o fato de que Ramana está integrado dentro da tradição hindu segundo esquemas simbólicos muito profundos e que indicam que sua existência e sua situação dentro do espaço geográfico sagrado hindu,  assim como os  seus gestos corporais mesmos (mudras), que para um ocidental não ressoam em nenhum nível, coincidem algumas vezes muito exatamente os de Dakshinamurti, tornando Ramana uma representação viva de um dos nomes de Shiva. 

O pequeno compêndio ao qual fazemos alusão consiste de 40 respostas dadas a Gambhiram Seshayya, um dos primeiros devotos do Ramana, que recorria ao sábio da montanha para esclarecer dúvidas doutrinais. Na época em que essas 40 respostas foram escritas, o Ramana, que tinha então 22 anos, estava em silêncio, não por qualquer voto, mas simplesmente porque era sua condição natural naquele tempo; então, ao ser interrogado, ele dava respostas escritas, que durante dois anos foram coletadas e reunidas nesse opúsculo.

Em quarenta respostas, o Maharshi expõe toda a doutrina do advaita (não-dualidade). A experiência comum, de natureza empírica, que todos temos, é expressa em termos como "eu vou, eu vim, eu era, eu fiz". Todos os dados empíricos, no entanto, aparecem e se manifestam dentro de uma consciência, de uma luminosidade estável, que se apresenta como "Si Mesmo" ou identidade última (para usar a tradução de René Guénon). As ações como "eu vou", pertencendo ao campo dos fatos empíricos, se modificam. Portanto, deve-se buscar a identidade que as percebe em sua natureza cambiante. As quarenta questões vão desdobrando a estrutura dessa investigação que passa primeiramente pela compreensão de que o indivíduo não se identifica com os 5 elementos e vai ascendendo e se internalizando.

A natureza da mente deve ser compreendida também. Ora, a mente, originada dos resíduos sutis da alimentação, é também um produto da  natureza, e portanto é  inerte. É a Consciência que penetra e transcende e da vida aos três estados: vigília, sono com sonhos e sono sem sonhos, e, permanece também além de todos esses estados, realizando um 'movimento' do coração, para a garganta e para o os olhos (consciência dual) sem alterar a si mesma.

A impressão de que os sentidos observam um mundo externo (objetivo), e de que a mente observa um mundo interno (subjetivo), são ambas percepções que se "objetificam" diante da luz da Consciência do "Si Mesmo". Tudo o que aparece "fora" na verdade está dentro, dentro do "Si Mesmo". Brahman, sentado em seu trono, nunca abandona o "coração", ainda que ele pareça se mover através do coração, garganta e nos olhos.

Assim, o olho está para o corpo assim como a visão está para o olho,  a mente está para a visão, o indivíduo está para mente e o "Si mesmo" está para o "indivíduo". Ao longo do pequeno compêndio, Ramana oferece instruções específicas para a disciplina e compreensão dessa doutrina, bem como para a a adaptação disso às diversas naturezas. O livro tem diversos exemplos figurativos e indicações simbólicas dessa questão que é a mais simples e a mais difícil de todas.

Os interessados na obra do sábio de Arunachala podem se remeter ao site do Ashram:

http://www.sriramanamaharshi.org/

Friday, July 26, 2013

Itinerário da Mente para Deus

Para compreender o contexto desse pequeno livro sobre o qual vamos escrever deve-se remeter um pouco ao franciscanismo, que foi um importante movimento espiritual no Ocidente entre séculos XI e XI. Alguns elementos condicionantes de sua formação foram:

a) A cristalização das estruturas hierárquicas da igreja, dividindo a comunidade entre clero, monges e leigos de forma muito rígida; 
b) O surgimento de movimentos populares que rejeitavam a hierarquia e uso da riqueza por parte de monges e do clero; 
c) Havia uma apelação à volta dos ideias primitivos da igreja, pregando a pobreza, e às vezes a rejeição ao corpo e ao mundo. 

Francisco de Assis surgiu como um catalizador desses sentimentos, acolheu-os e integrou  suas tendências mais válidas. Coisas como "viver segundo o evangelho" e "sustentar-se com o próprio trabalho" foram alguns dos ideais acolhidos, ao passo que outros elementos característicos daqueles movimentos como "pessimismo existencial" e a "insubordinação" foram rejeitados.

São Boaventura,  (1217-1274) herdeiro direto desse ideal "crítico", foi responsável por captá-lo e transportá-lo ao nível da tradição intelectual cristã. Criticando e polemizando contra o aristotelismo e contra a pretensa proclamação "autonomia" seja da natureza ou da razão em relação a Deus, ofereceu uma polaridade vigorosa ao escolasticismo. Inspirando-se na tradição platônico-agostiniana ele traz à tona a noção de que não só a razão em sua ascensão conceitual depende de Deus diretamente, mas que toda a criação é signo de Deus em diversos níveis. O aristotelismo havia reduzido Deus a "motor imóvel" e causa final das coisas, que, durante todo o processo cognitivo dos filósofos  se mantinha suspenso ou afastado. 

É no espírito de retomada mística da ascensão divina e de crítica a pretensão de independência filosófica que Boaventura escreve esse pequeno livro em 7 capítulos. E tanto é assim que o livro foi concebido em um intuição mística semelhante à de Francisco de Assis. Buscando a paz prometida pela revelação cristão, Boaventura sobe ao monte Alverna e, inspirado na visão que Francisco de Assis tiveram do anjo de seis asas, lhe surge a intuição da obra. Boaventura entende que cada um das asas deve ser compreendida como um dos seis estágios de progressiva iluminação da alma em direção a Deus e esses estágios são explicados no livro.

Toda a realidade constitui uma escada para ascender a Deus. Para chegar à realidade espiritual que está em nós, é preciso começar contemplando os vestígios corpóreos e suas razões seminais. Daí, o autor estabelece uma série desses vestígios que seriam baseados em inúmeras tríades presentes na própria estrutura das coisas; os elementos do mundo criado vão sendo enumerados segundo suas analogias à tríade corpo-mente-espírito, tríade representada pelo próprio Cristo em certo sentido. A própria constituição interna e ontológica das coisas se dá através de outra tríade: essência-potência-presença; em todos os cantos vemos essa relação, como no fato de que Cristo se expressou de três formas dando origem a três teologias: simbólica (sensível), literal (inteligível) e mística (supra-mental); a tríade desdobrada pelo Alfa e o Ômega, dá origem à héxade: seis dias da criação  seis degraus do trono de salomão, seis asas do Serafim de Isaías, seis dias até o senhor chamar Moisés do meio da nuvem, seis dias até Cristo chamar os discípulos e se transfigurar, seis planos de ascensão:  sentido, faculdade imaginativa, razão, intelecto, inteligência e a chamada sindérese. Boaventura vai desenhando um complexo arcabouço metafísico e físico constituído pelo número três:
"Todas essas coisas, no entanto, são traços nos quais podemos ver o reflexo de nosso Deus.  Uma vez que a apreensão das espécies é uma igualdade produzida no meio e então imprimida no órgão mesmo, e por meio dessa impressão, se é levado ao princípio e à fonte--quer dizer, ao objeto de conhecimento--manifestamente, segue-se que a luz eterna gera, a partir de si mesma, uma semelhança ou radiância 'coigual' que é consubstancial e coeterna [...] Podemos determinar que todas as criaturas desse mundo sensível levam a mente daquele que contempla e obtêm sabedoria à Deus. Pois são sombras, ecos, pinturas, traços, simulacros e reflexos daquele Primeiro Princípio." (cap. II)
Ao sair da contemplação dos fatos do macrocosmo entra-se no microcosmo. A mente do homem fornece também as mesmas equivalências trinitárias que são símbolos da realidade da trindade última. A mente, composta de memória (que lembra da Eternidade), a inteligência (que concebe a Verdade) e a vontade (que aspira ao Bem) refletem a Trindade Divina. Deus, é pura Memória, Verbo e Vontade. A mente e sua ciência natural (que busca a causa do Ser) se remete ao Pai; a ciência racional (que busca o princípio inteligível) se remete ao Filho; e a ciência moral (que busca a ordem da vida) se remete ao Espírito Santo.

Se esse Princípio está em todo lugar, simbolizado em todas as dimensões, por que é que tão poucas pessoas a percebem? Ora,  distraídas por cuidados diversos, as pessoas não entram em si mesmas através da memória; obscurecidas por fantasmas as pessoas não retornam a si mesmas pelas inteligência; e instigadas pela concupiscência nunca retornam a si mesmas pelo desejo da doçura e da felicidade espiritual. De maneira que, quando caem, pessoas ficam ali prostradas até que alguém as ajude; a alma falhando em suas tentativas de se elevar da intuição de si mesma para a verdade Eterna, requer que a Verdade, tendo assumido a forma de Cristo, faça de si uma escada, consertando a primeira escada que havia sido quebrada em Adão.

Tendo contemplado Deus nas coisas foras de nós através de seus vestígios, e nas coisas dentro de nós através de sua imagem, é preciso ir além disso, é preciso contemplá-lo nas coisas além de nós, é preciso contemplá-lo em sua unidade primária cujo nome é Ser através de sua luz. Os primeiros entraram no átrio do tabernáculo, os segundos no "sanctum", o terceiro entrará no Santo dos Santos. Boaventura, observa que há então dois modos de contemplação das coisas invisíveis e eternas de Deus. A primeira  é pela contemplação de seus atributos essenciais, a outra pelas propriedades das Pessoas. A primeira se refere ao Antigo Testamento (Eu sou o que sou), a segunda ao Novo Testamento, que revela uma pluralidade Pessoas sob o nome de "Bem". 

O Ser é o mais puro e absoluto, é o primeiro e o último, é a origem e a causa final de tudo. Através dessa unidade simples, dessa verdade verdade pura e dessa bondade supinamente sincera, há nele todo o poder, toda causalidade e toda comunicabilidade, e portanto, dele, por ele e nele todas as coisas estão. E ver isso perfeitamente é ser abençoado. 

No entanto, assim com o Ser é a raiz e o nome da visão das características essenciais, o Bem é o principal fundamento de nossa contemplação da Divina Trindade. O Bem é auto-difusivo, mas a suprema difusão pode ocorrer somente se ela for atual, intrínseca, substancial e hipostática, natural e voluntária, livre, necessária e perfeita. E, a não ser que o Bem seja eternamente uma produção que é atual e consubstancial, amada em si mesma  e co-amada como o são o Pai, o Filho e o Espírito Santo, de maneira alguma isso seria o Bem último, pois não haveria a difusão suprema, uma vez que a difusão temporal na criação nada mais é que "puntiforme" em relação a imensidão da bondade eterna. Boaventura assume uma linguagem sublime, porém poderosa para descrever essa realidade, ao mesmo tempo enfatizando a impossibilidade de fazê-lo com perfeição.

O texto termina com a lembrança da aparição do serafim a Francisco de Assis, que, segundo Boaventura, foi o modelo perfeito de contemplação e ação,  e incita ao abandono de todas operações intelectuais uma vez que "toda a altura de nossa afeição deveria ser transferida e transformada em Deus"; cita Dionísio Areopagita sobre as verdades que estão além da compreensão humana e admoesta que, uma vez que natureza não tem poder sobre essa matéria, é preciso menos "língua" e mais júbilo interno, menos palavras e escritos e mais essência criativa (Pai, Filho e Espírito Santo).

Thursday, July 25, 2013

O Rei do Mundo



O livro o "Rei do Mundo" toma como ponto de partida a publicidade que estava sendo dada ao tema a que o título se refere, que está vinculado também à existência de um reino subterrâneo chamado Agartha. Isso ocorreu especialmente depois do lançamento do livro "Homens, Bestas e Deuses" de Ferdinand Ossendowski em 1921, em que este narrava suas aventuras em viagem à Ásia Central; o livro estava sendo acusado de plagiarismo de uma outra obra de 1910 chamada "Missão da Índia" de Saint-Yves d’Alveydre. René Guénon inicia seu livro dizendo que as coincidências entre as duas obras não são suficientes para caracterizar um plágio, mas que, pelo contrário as coincidências simbólicas fazem entrever a existência de um objeto ao qual todas essas histórias se referem. Essas coincidências ficam ainda mais manifestas diante da comparação simbólica de diferentes tradições espirituais sobre o tema.

A imagem do "Legislador Primordial Universal" aparece em representações como a do Manu hindu, Mina ou Mènes entre os egípcios, ou Menw dos gregos, por exemplo. O metafísico francês faz questão de registrar que não se trata somente de uma individualidade, mas de uma "inteligência cósmica que reflete a Luz espiritual pura e formula a Lei (Dharma)" ao mesmo tempo em que corresponde ao arquétipo do homem pensante (mânava). Por outro lado, isso não impede que tal realidade tenha sua representação concreta em um centro espiritual estabelecido em algum lugar da terra e cujo chefe representará, pelo seu conhecimento espiritual, o próprio Manu. Esse indivíduo, o Rei do Mundo, reuniria em si mesmo a realeza e o sacerdócio, o que conviria ao título "pontifex", ou seja, construtor de pontes entre o "Céu" e a "Terra".

Alguns, todavia, associaram rapidamente o título "Rei do Mundo" com o "princeps hujus mundi" do evangelho. Guénon desfaz essa confusão mostrando que há uma diferença entre "esse mundo" e "O Mundo" nos Evangelhos. Há uma relação importante entre a figura do Rei do Mundo e os chamados intermediários celestes que aparecem na cabala hebraica, Shekinah e Metatron, que poderia ajudar a compreender a questão. A Shekinah é sempre a presença real da Divindade, que aparece nas escrituras por ocasião da instituição de um centro espiritual (tabernáculo, etc.) representando o polo terrestre a passo que o Metatron seria o polo celeste, ambos representados respectivamente pelos termos "Pax" e "Gloria" na frase "Gloria in excelsis Deo, et in terra Pax hominibus bonæ voluntatis".

Saint-Yves, em seu livro, diz que o chefe supremo da Agartha seria o Brahmâtma, que daria suporte às almas diante de Deus. Ele seria assessorado pelo Mahâtma (representante da Alma Universal) e pelo o Mahânga (representante da organização cósmica).  Ossendowski, de maneira semelhante, diz que ao Mahâtma é dado conhecer os acontecimentos e o que está por vir, o Mahânga dirige a causa desses acontecimentos e o Brahmâtma fala com Deus face a face. Esse simbolismo, presente nos dois livros, tem correspondências também com a tríade upanixádica chamada tribhuvana: a Terra (Bhû), a Atmosfera (Bhuvas), e o Céu (Swar), de maneira que cada um desses planos seria o plano de operação de um dos elementos correspondentes da tríade "Mahânga-Mahâtma-Brahmâtma"; Guénon faz uma série de analogias com essa tríade apresentada, como, por exemplo, na ordem dos princípios universais o Brahmâtma, de acordo com as doutrinas hindus, seria Îshwara, o Mahâtma serio ovo cósmico ou Hiranyagarbha e o Mahânga seria o Virâj; da mesma forma ocorreria em outro plano com os três reis magos, representantes de Agartha, e simbolizados pela oferta de ouro (Mahânga) o incenso (Mahâtma) e a mirra (Brahmâtma), bem como com os três elementos (matras) da sílaba AUM.


Envolvendo o tema nesse panorama simbólico para dele recolher uma compreensão mais profunda, Guénon nos apresenta também sumariamente os fundamentos a lenda do Graal, que se remete à perda da imortalidade ou à queda do homem. Segundo a lenda, o Santo Graal é a taça que continha o sangue de Jesus Cristo que escorreu sua ferida aberta por uma lança quando de sua crucificação.  Essa taça foi transportada à Grã-Bretanha por José de Arimateia e Nicodemos, e Guénon observa que aí está novamente a representação do poder sacerdotal e real, compatível também com a Távola Redonda e as figuras de Merlin e do Rei Artur e que tem inúmeras relações em diferentes planos com o tema abordado.

Há muitas conexões entre o Graal e outras lendas da bebida da imortalidade, como o soma védico ou o haoma persa,  o vinho sufi, ou o vinho dionisíaco. O uso da bebida no rito confere-lhe um caráter iniciático, como é o caso do sacrifício eucarístico de Melquisedeque. Sobre está último, Guénon dedica todo um capítulo explorando os diversos símbolos que lhe dizem respeito. Melquisedeque, cujo o nome significa "rei da justiça" é também, segundo Paulo, o rei de Salém, que significa paz, e portanto, ele reúne em sua figura a função de Rei e Sacerdote, cujo sacerdócio, identificado por Elión, é um aspecto superior ao Shaddaï, e por isso que, ao ser iniciado nesse novo sacerdócio, Abraão lhe paga dízimo. Elión, segundo Guénon, é exatamente Emmanuel, ambos os nomes correspondendo ao número 197. Ainda se observa que a figura de Melquisedeque correspondente ao Brahmâtma, pode representar em si mesmo a função dos três reis magos, uma vez que uma função superior inclui e transcende as inferiores, ou seja, Melquisedeque pode aparecer sozinho ou pode se desdobrar, segundo dizem alguns, nas funções de Melquisedeque (Rei da Justiça), Cohensedeque (Sacerdote da Justiça) e Adonisedeque (Senhor da Justiça).

O mundo subterrâneo ou inferior também tem um rico simbolismo que se relaciona às histórias de que Agartha seria localizada embaixo da terra; os diversos registros históricos de centro iniciáticos subterrâneos nos indicam a importância desse símbolo. Guénon nos mostra como vão se conectando de forma caleidoscópica  as palavras e os símbolos, convergindo e divergindo em muitos níveis e padrões dentro de uma só temática: o hebraico tem a palavra "luz" que originariamente se referia ao lugar onde Jacó teve um sonho e o qual ele nomeou posteriormente de Betel (Casa de Deus), conta-se que o Anjo da Morte não poderia entrar nesse lugar e não teria aí nenhum poder; perto daquele lugar há uma amendoeira (que também se chama "luz" em hebraico) na base da qual haveria um buraco que levava em direção ao subterrâneo. Ademais, a palavra "luz" tem muitas relações etimológicas e simbólica com a palavra Céu ou Urano (Varuna).  A amendoeira, por sua vez, significa linguisticamente um miolo duro e inviolável onde está o 'embrião imortal'. Esse miolo, em algumas descrições, estaria localizado na parte mais inferior da coluna vertebral humana, o que nos remete também ao simbolismo da kundalini hindu.

Tudo isso indica, de alguma maneira, que o centro iniciático central está oculto durante a Kali-Yuga; o próprio termo Agartha significa "inatingível", "inacessível" ou também "inviolável", uma vez que é o "recinto da paz ou Salém". Segundo M. Ossendowski esse ocultamento ocorreu há mais de 6 mil anos. Guénon explica que a comunicação da Europa com o "Centro do Mundo" foi interrompida definitivamente e que isso se deu em etapas: primeiramente com a destruição da Ordem do Tempo no século XIV a conexão se manteve, ainda que muito "dissimulada" com o chamado Rosacrucianismo; Saint Yves indica que a ruptura definitiva ocorreu na ocasião dos tratados de Vestfália, quando os rosacruzes se retiraram completamente para o Oriente.

Guénon observa que antes da Kali-Yuga, Agartha, que agora é representada pela caverna, quando ainda não era oculta, era conhecida como Paradêsha que significa "supremo país" e é notável a semelhança do nome com o "Pardes" presente na literatura caldaica e na kabala hebraica, ou então no "paradis" (paraíso) do francês. O paraíso se inseria no simbolismo da montanha polar, que equivalia ao Mêru dos hindus, ao Alborj dos persas, ao Montsalvat da lenda do Graal, ao Qâf dos árabes e ao Olimpo grego. A história é sempre a de uma região que, como o paraíso terrestre, se tornou inacessível à humanidade comum e que se situa além de toda possibilidade de cataclismo. Temos também o simbolismo do "ônfalos" que é o umbigo, geralmente representado por uma pedra comumente conhecida como "betyl" que por sua vez se associa à cidade de Betel segundo os simbolismos anteriores e Belém (Beith-Lehen).

Além do  nome "Paradêsha" temos um ainda mais antigo, "Tula", que deu origem ao grego "Thulé" (Ilha dos Quatro Mestres) e aqui temos toda uma sequência de simbolismos da ilha indicando estabilidade e equilíbrio. Vemos o mesmo nome na América, e da "Tula" mexicana, segundo alguns, foi que o nome "Aztlan" (terra no meio das águas) se derivou, o que tem uma conexão visível com a "Atlântida". Em sânscrito temos o "Tulâ" que significa nada mais que "Libra" o signo zodiacal, entre os chineses a "Libra" ou balança celeste é a Grande Ursa, e as relações entre a balança, a justiça e Melquisedeque também são notáveis. A Tula também é a "Ilha Branca" presente em diversas tradições, que nos remete ao simbolismo polar e também à "balança polar". No simbolismo esotérico é preciso cruzar o "mar das paixões" para alcançar o "Santuário da Paz".

A localização concreta dos centros espirituais é uma matéria muito complexa, porém secundária para o tema do livro, segundo Guénon. Há analogias e similitudes entre os diversos centros espirituais como Lhasa, Roma, Jerusalém e a Agartha, no sentido de que fixação geográfica dessas cidades nunca foi feita de maneira arbitrária. Houve no passado o conhecimento de um geografia sagrada ou sacerdotal. Grandes centros espirituais existiram existiram na Creta pré-helênica ou em Tebas, por exemplo, cujo nome é equivalente ao Thebah hebraico, que indica a Arca do Dilúvio, e Guénon diz que pode ter  havido sucessivos deslocamentos do "Centro do Mundo" segundo o desenvolvimento do ciclo e segundo leis específicas; também é possível afirmar que os diversos centros conhecidos sejam centro secundários ou reflexos de um centro principal.  Guénon termina o livro dizendo que se por um lado ele seria condenado por ter revelado mais do que se revelou, ele acredita que não há em seu livro nada que não deveria ser revelado diante das atuais condições. Fica estabelecido, portanto, o fato de que existe uma "Terra Santa" transcendental, como atestam as diversas tradições, e, sobre a sua correspondência geográfica, Guénon se limita a dizer que não as representações geográfica não estão destituídas de correspondências com essa realidade arquetípica.

A minha modesta opinião, que compartilho com algumas outras pessoas que o leram, é que esse livro é o mais "estranho" do Guénon por diversos razões: só para exemplificar, a primeira delas é que há uma ruptura marcante com estilo geométrico de escrita do Guénon, para a adoção de um fluxo realmente caleidoscópico como eu disse anteriormente; às vezes abarcando muito conteúdo e articulação cognitiva potencial para quem conseguir fazer as conexões entre os símbolos, e isso é assim ao ponto de desnortear o leitor completamente algumas vezes. O simbolismo usado se presta a abranger muitas dimensões e criar relações em muitos planos simultaneamente e de forma muito complexa. É um livro pequeno, desafiador e que fala de temas de implicações imprevistas como o próprio Guénon observa ao fim do livro.