Thursday, August 13, 2020

Sobre cognição e conhecimento

Conhecimento é um termo confuso, não serve tecnicamente no estudo de doutrinas hindus. Ele pode indicar o conjunto de posses virtuais de objetos, mantidas na memória individual ou em instituições sociais, ou ainda como virtualidade da ação — o indivíduo é capaz, tem em si virtualmente a possibilidade de ativar procedimentos conscientes em relação a determinadas realidades.

A cognição já é compreendida diferente: é um ato psicológico. Esse significado é mais parecido com o “vijñâna” usado por alguns pontos de vista hindus, mas há um fator que deve ser acrescido: a cognição é aquilo, como diriam os naiyâyikas, que tem como substrato material um Âtman (ou uma luz, prakasha, em outros termos). Não há uma causalidade psíquica pura, isolada. O conhecimento ou cognição, nesse sentido, é um alinhamento de vários tattvas de tal maneira que haja manifestação ou iluminação de realidades.

Por que a maioria das darshanas hindus não considera a memória como conhecimento? Por que a memória, de certa forma, é um brilho refletido que revela algo que não está mais presente à luz do Âtman, e que oculta o tattva que está sendo refletido de fato. 

A cognição, diriam as definições mais aristotélicas, é um ato individual e privado. Ou seja, a cognição de um sujeito não pode ser a cognição de outro sujeito, ainda que os objetos possam ser compartilhados enquanto "abstrações". 

O sâmkhya darshana concordaria com a individualidade da cognição, mas por uma razão completamente diferente: a relação individual entre eficiência da luz na produção de realidades cognitivas: os purushas são raios que produzem, cada um deles, somente um locus de reflexo na Prakrti.

A questão da eficiência da luminosidade, despertada pela contemplação do sâmkhya darshana, leva à questão da luminosidade pura, sem eficiência causal restrita. O sâmkhya diria que essa luminosidade é próprio ponto final da jornada do sâmkhya: quando a luz do Purusha ilumina a si mesma sem a presença do intelecto. Mas não responde, e nem se propõe a responder, por que a eficiência causal do Purusha é restrita, na forma de um raio e não de um sol.

O Vedânta e o Pratyabhijña levam a questão adiante e mais profundamente, cada qual a seu modo. São contemplações da luminosidade em si mesma, em seus desenvolvimentos internos, por assim dizer, sem relação com sua manifestação na tríade sujeito-conhecimento-objeto em seu aspecto transitivo. E aí o termo conhecimento já toma um novo aspecto: o de auto-luminosidade em suas várias modalidades. 

Adotando esse ponto de vista mais alto podemos dizer que o conhecimento é o processo, não só pelo qual temos a transição entre três realidades: sujeito, cognição e objeto, mas a "emissão" mesma dessas três realidades, ou seu "entronamento" para usar a linguagem oblíqua do tantrismo. É o que alguns tântricos chamariam de Kâma-Kala em suas tecnologias esotéricas: triângulo de onde emanam as letras, e as relações entre palavras e coisas. 

E é por isso que o termo conhecimento é insuficiente para indicar todas essas realidades. As doutrinas indianas tem uma gama bem grande de nuances para indicar isso.  E é por isso também que não raro somos compelidos a usar os termos em sânscrito, já que não há correspondentes exatos em línguas ocidentais para todas essas nuances.

Tuesday, August 11, 2020

Pressupostos do Pensamento Hindu (Continuação)

 

A exposição dos rshis é concebida em marco diferente do da filosofia (em especial a ocidental). São ensinamentos já de início concebidos dentro de uma consciência de “yajña”, ou seja, da relação entre o Absoluto, os devas, a sociedade, os ancestrais e a natureza. 

Por isso, os pontos de vista do Sanâtana Dharma não poderiam ser gerados a partir de uma motivação puramente psicológica, individual e casual, como o “maravilhar-se” (tò thaumázein) aristotélico. Os ensinamentos têm necessariamente um “samkalpa” ou uma determinação civilizacional e não podem ser dissociados das boas práticas humanas e sociais — concretas!

O rshi Gautama, contudo, observa que os fatores psicológicos são antecedentes, se não dos vidyâs superiores, ao menos do Nyâya ou do processo de raciocínio sobre o ensinamentos ou "pratijñas" oferecidos pelos rshis. 

Ora, o raciocínio filosófico não pode trazer nenhum benefício ao homem que tem concepções completamente pervertidas, nem ao homem que é tão ignorante que se torna incapaz de receber algum conhecimento, nem ao homem sábio que conhece por intuição direta as coisas superiores, nem ao homem que tem shraddhâ (confiança), sendo portanto apropriado ao homem de conhecimento parcial e que tem dúvidas. 

Esse conhecimento secundário surge portanto, condicionado psicologicamente por cinco fatores, como observa Uddyotakarâchârya: (1) desejo de saber, (2) dúvida, (3) capacidade de perseguir o que foi desejado, (4) propósito e (5) eliminação da dúvida.

Vâcaspati Mishra, em seu comentário ao quarto verso do Sâmkhya Kârikâ, também confirma isso ao observar que “Uma doutrina filosófica é exposta para o benefício das massas de homens comuns, pois são só eles que se beneficiam disso. O conhecimento intuitivo dos yogues que transcenderam as coisas comuns não ajuda em nada o homem comum".

Daí, temos a seguinte perspectiva, que é a perspectiva dhármica: 

a) Existem homens sábios (rshis), ou seja, que estão estabelecidos num estado intermediário entre as divindades e a humanidade, e somente estes estão em condições de ensinar, em sentido de princípio, assim como somente o olho é capaz de transmitir a visão ao ego. 

b) Esse homens sábios se relacionam com a sociedade (que é uma articulação produtiva das diferenças humanas para que cada um obtenha seus objetivos últimos). Esse homens se dispõem altruisticamente a produzir meios para beneficiá-la segundo a compreensão profunda do princípio de yajña.

c) Os ensinamentos não são especulações ou disposições casuais da psicologia humana, e nem são limitados pelos interesses individuais ou da casta dos sábios, mas são puramente movidos pelo desapego e benefício dos seres (Bhagavad Gîtâ, 3–25).

d) Esse compromisso, conjugado com a profunda compreensão das diversas naturezas humanas gera diferentes métodos para que em diferentes tempos e espaços as pessoas sejam beneficiadas. 

e) Note-se o fato de que, no caso de pessoas totalmente pervertidas em conhecimento, ou no caso de pessoas incapazes de conhecimento, o Nyâya não recomenda o vâda, a instrução doutrinal ou filosófica, mas recomenda de fato derrotá-los e impedi-los de perverter o conhecimento e causar danos à sociedade, isso deve ser feito por meio de um esforço consciente de “jalpa” (polêmica) e “vitanda” (desmoralização).

f) Os rshis não podem discordar entre si, a discordância aparente se dá pelo fato de que eles falam para diferentes pessoas, em tempos diferentes, e com acomodações diferentes no campo das aplicações e das elaborações. E também porque as doutrinas, sendo constritas pelas necessidades dialéticas do “tarka”, e pelas constrições psicológicas de afirmação de shraddhâ e de adhikari-bheda, obrigam a tomada de decisões unilaterais e afirmação de siddhânta.

g) Essas escolhas ou decisões podem gerar correntes diversas e complicações concretas no campo dos homens que estão na posição de conhecimento parcial, dúvida, conhecimento pervertido, ou incapacidade de receber conhecimento. Contudo isso nada depõe sobre a intuição inicial dos sábios, que são sementes (bîjas) e como tais não poderiam se envolver ou serem destruídas com as complicações relativas ao desdobramento de possibilidades cognitivas dos diversos pontos de vista.