Tuesday, December 15, 2015

A sabedoria dos videntes antigos


Peguei o livro sem compromisso, para dar uma olhada, e acabei lendo tudo. The Wisdom of Ancient Seer – Mantras of the Rig Veda de David Frawley é uma proposta de tradução e comentário de alguns mantras do Veda. O autor também atende por Vâmadeva Shâstri, presidente do American Institute of Vedic Studies, tem trabalhos no campo da Ayurveda e da astrologia védica. Não me chamava a atenção antes, talvez pela escolha ruim dos títulos de suas obras mais famosas, suas associações meio nova-eristas e suas terapias, que também pareciam-me coisas desses nichos. Tampouco tinha entusiasmo por suas ideias ingênuas de 'religião global',  similares a de figuras como Vivekananda. Contudo, eis que o livro valeu a pena.

Os hinos védicos jamais receberam atenção de tradutores com conhecimento metafísico ou de simbolismo esotérico. Coomaraswamy lembrava em seu tempo que, nenhuma das traduções mais famosas, notáveis por suas preocupações etimológicas, se comparam, nem de longe, a uma Enéadas de A.H Armstrong ou do 'Guia dos Perplexos' de Friedlander. Nada mudou tanto de lá para cá.

O que fica evidente no caso do Veda é que os tradutores tinham seu primeiro contato relevante com temas metafísicos, espirituais ou simbólicos na tradução mesma. O resultado era um trabalho quase que de 'reconstrução textual’, enfatizando aspectos linguísticos ou secundários, e considerando os 'autores do Veda' sujeitos simplórios e primitivos (o que não é o caso). Isso tudo gerou resultados ruins, até desastrosos. Só por buscar uma alternativa, mostrando um aspecto mais 'glorioso' da poesia védica, Frawley obtém resultados bem melhores.

Diz o autor:
“Minha preocupação com esse livro são suas verdades internas de consciência e de transformação desde o ponto de vista prático da vida espiritual. Essas verdades eternas são apresentadas poderosamente na linguagem universal do mantra no Rg Veda, e a tentativa aqui é sugerir isso em inglês, na medida do possível. Naturalmente, como ocorre com qualquer poesia, em particular a que é muito antiga, isso requer entortar a linguagem, e, na melhor das hipóteses, o que se consegue é só insinuar o poder real dos hinos.”
O autor não menciona, mas ele segue o método de tradução criado por Shri Aurobindo, exposto em 'The Secret of The Veda' (que comecei também a ler). É a chamada ‘abordagem psicológica’, em oposição à puramente filológica. Diz o indiano:
  
“Nossa primeira tarefa, portanto, é determinar se, além da figura e do símbolo, há na linguagem clara dos hinos, substância suficiente de noções psicológicas para justificar-nos na suposição de um sentido superior ao sentido bárbaro e primitivo dos Vedas. Depois, temos de descobrir, na medida do possível, a partir da evidência interna dos Suktas mesmos, a interpretação de cada símbolo e imagem e a função psicológica de cada um dos deuses. Um sentido firme e não flutuante, fundado em boa justificação filológica e se adequando naturalmente no contexto, onde quer que ocorra, deve ser encontrado para cada termo fixo do Veda.”
Ainda assim, está faltando uma tradução ótima, e do texto integral, em língua ocidental. Mas o livro de Frawley tem seus méritos: traz-nos lampejos da verdade primordial, com boas imagens poéticas de trechos seletos, de profunda ressonância na psique humana.  Acho que a obra peca porque tem liberdade demais: o autor confia muito em sua própria ‘clarividência’ hermenêutica na decodificação dos símbolos. Na introdução dizem até que o sujeito é um Rshi Moderno, o que é bem bobo.  A própria interpretação psicológica mesma é limitada. A leitura é impactante e até hipnótica no começo, mas aos poucos, o excesso disso, sem consistência metafísica, acaba perdendo o vigor.

Max Müller, no século XIX, disse que os Vedas ocupariam os estudiosos bastante nos séculos vindouros. E ainda vão: tudo o que se fez até agora é pouco, e continuamos (público profano) sem saber quase nada sobre os hinos, mesmo achando que sabemos o suficiente para fazer julgamentos definitivos e graves. Preconceitos e atitudes metodológicas do século XIX persistem, assim como uma curiosa arrogância por parte dos orientalistas, que querem ser autoridades exclusivas num assunto no qual são, não raro, quase incompetentes.