Friday, December 22, 2017

O renascimento segundo René Guénon

"Nenhuma doutrina tradicional autêntica jamais falou da reencarnação, que nada mais é que uma invenção moderna"

René Guénon foi um dos mais contumazes opositores da ideia de reencarnação. Chegou a mencionar que dedicaria uma obra exclusivamente ao tema, o que não chegou a ocorrer. O cerne de seus comentários sobre o assunto estão condensados em dois capítulos da obra 'O Erro Espírita', aqui citados extensamente, e o restante está distribuído em curtas referências presentes em seus livros mais doutrinais, dos quais citamos também alguns trechos.

Guénon sempre se referiria ao assunto, inclusive em correspondências a amigos, negando-lhe qualquer valor, observando que "o assunto vale a pena, não em si mesmo, já que trata-se de um absurdo puro e simples" e complementa que a única razão para abordá-lo é "a estranha difusão da ideia de reencarnação que, em nossa época, é uma das que mais contribuem para o transtorno mental.".

A ideia de renascimento ou reencarnação atacada é principalmente a do espiritismo francês ou kardecista, contudo, a argumentação vale para "todas as demais escolas «neoespiritualistas» que vieram em seguida adotando essa ideia". O ataque guenoniano não abrange todo o espiritismo, uma vez que "a reencarnação não [lhes] é um elemento absolutamente essencial, e é possível ser espírita sem admiti-la, ao passo que não é possível sê-lo sem admitir a manifestação dos mortos por meio de fenômenos sensíveis."

A crítica guenoniana pode ser divida em quatro pontos 1) a discordância entre os reencarnacionistas sobre o cerne da doutrina; 2) a origem mesma da doutrina, que se encontra nos meios socialistas, e foi criada para resolver o problema teórico da injustiça social; 3) A diferença essencial entre a reencarnação e as doutrinas antigas da metempsicose e da transmigração 4) A  impossibilidade metafísica da reencarnação, sendo que essa última seria a mais importante.

1. Discordância entre os reencarnacionistas

Guénon, tendo vivido em meios ocultistas, apontava que entre alguns espíritas a reencarnação era dogma inquestionável, e, de fato, Allan Kardec a tratava literalmente como dogma em seus livros. As outras correntes como o teosofismo e o ocultismo papusiano viriam a adotar a ideia a partir da influência kardecista, aceitando-a também como artigo de fé, ainda que complicando-a com adornos filosóficos; a primeira incoerência, segundo o metafísico, se dá na divergência existente entre os próprios espíritas, ironiza:
"Os ensinamentos dos «espíritos» são bastante flutuantes e contraditórios, e as pretensas constatações dos «clarividentes» não o são menos. Assim, para uns, um ser humano se reencarna constantemente no mesmo sexo; para outros, reencarna-se indiferentemente em um ou outro, sem que se possa fixar nenhuma lei; para outros ainda, há uma alternância mais ou menos regular entre encarnações masculinas e femininas. De igual modo, uns dizem que o homem se reencarna sempre sobre a terra; outros dizem que pode reencarnar-se também em outro planeta do sistema solar ou inclusive sobre um astro qualquer; alguns admitem que há geralmente várias encarnações terrestres consecutivas antes da passagem para outra morada, e esta é a opinião do próprio Allan Kardec; para os teosofistas, não há senão encarnações terrestres durante toda a duração de um ciclo extremamente longo, depois do qual uma raça humana inteira começa uma nova série de encarnações em outra esfera, e assim por diante."
E ainda:
"Outro ponto, não menos discutido, é a duração do intervalo que deve transcorrer entre duas encarnações consecutivas: uns pensam que é possível reencarnar de imediato, ou ao menos ao cabo de um tempo muito curto, para outros, as vidas terrestres devem estar separadas por longos intervalos; vimos que os teosofistas, depois de primeiro terem suposto que estes intervalos eram de mil e duzentos ou de mil e quinhentos anos no mínimo, chegaram a reduzi-los consideravelmente, e a fazer distinções segundo «graus de evolução» individuais. Nos ocultistas franceses produziu-se também uma variação bastante curiosa: em suas primeiras obras, Papus, embora atacasse os teosofistas, com os quais acabara de romper, repete ao modo destes, que, «segundo a ciência esotérica, uma alma não pode reencarnar-se senão ao cabo de mil e quinhentos anos ou mais, salvo no caso de algumas exceções muito claras (morte na infância, morte violenta, adeptado)», e afirma inclusive, sob fé de Mme Blavatsky e de Sinnet, que «estes números são retirados de cálculos astronômicos do esoterismo hindu»
E conclui:
Tudo isso inspira pouca confiança nos que examinam as coisas de forma imparcial, e, se a reencarnação não foi «revelada» pelos «espíritos», pela boa razão de que estes jamais falaram realmente por intermédio de mesas ou médiuns, as poucas precisões que acabamos de fazer já bastam para mostrar que não pode tratar-se de um verdadeiro conhecimento esotérico, ensinado por iniciados que, por definição, saberiam a que se ater a esse respeito.
2. A ideia de reencarnação se origina em concepções socialistas

Guénon, que tinha desprezo por concepções filosóficas, considerado conhecimento profano, encontra na reencarnação mero eco desse tipo de conhecimento:
[Reencarnação] não é nada mais que isso, e está inclusive no nível das piores concepções filosóficas, posto que é absurda no sentido próprio da palavra. Há muitos absurdos também entre os filósofos, mas ao menos, em geral, eles não os apresentam senão como hipóteses; os «neoespiritualistas» são ainda mais iludidos (e aqui admitimos sua boa fé, incontestável no caso da massa, mas nem sempre para os dirigentes), e a segurança mesma com que formulam suas afirmações é uma das razões que as tornam mais perigosas que as dos filósofos.
Ou talvez seja menos ainda que uma concepção filosófica:
«Concepção social» seria talvez uma classificação ainda mais justa, se consideramos qual foi a origem real da ideia da reencarnação. Com efeito, para os socialistas franceses da primeira metade do século XIX, que inculcaram em Allan Kardec essa ideia, ela se destinava essencialmente a explicar a desigualdade de condições sociais, que a seus olhos ganhava um caráter particularmente pungente. Os espíritas conservaram esse mesmo motivo, dentre os invocados com mais vontade para justificar sua crença, e quiseram inclusive estender a explicação a todas as desigualdades, tanto intelectuais como físicas; eis o que diz Allan Kardec: «As almas, em seu nascimento ou são iguais ou não são, não há dúvida. Se são iguais, por que essas atitudes diferentes? Se são desiguais, é porque Deus as criou assim, mas, então, por que Deus concede essa superioridade inata a algumas? Estaria essa parcialidade em conformidade com sua justiça e com o seu amor proferido por todas as criaturas? Admitamos, ao contrário, uma sucessão de existências anteriores progressivas, e tudo fica explicado.[...]
E as escolas espiritualistas mais sofisticadas não conseguem tampouco fugir desse tipo de argumentação 'moralista' e dá o exemplo de Papus:
Papus faz exatamente o mesmo: «os homens começam uma nova trajetória no mundo material, ricos ou pobres, felizes ou desgraçados, segundo os resultados obtidos em trajetórias anteriores, nas encarnações precedentes» . Em outra parte, ele se expressa ainda mais claramente: «sem a noção de reencarnação, a vida social é uma iniquidade. Por que seres estúpidos vivem afogados em dinheiro e adornados em honra, enquanto seres valorosos se debatem em preocupações e na luta cotidiana pelo alimento físico, moral e espiritual?  Pode-se dizer, no geral, que a vida social atual está determinada pelo estado anterior do espírito e que determina a posição social futura» 
2.1. Incoerência lógica da fundamentação moral

Guénon argumenta a seguir sobre por que uma fundamentação moral é essencialmente incoerente nesse caso:

a) Mero deslocamento do problema da injustiça
Se o ponto de partida não é o mesmo para todos [almas mais novas e almas mais velhas], e há homens mais ou menos distantes desse ponto e que não percorreram um número igual de existências (é o que diz Allan Kardec), há nisso uma desigualdade pela qual eles não são responsáveis, e que, por conseguinte, os reencarnacionistas têm de considerar como um tipo de «injustiça» que sua teoria é incapaz de explicar. Depois, admitindo inclusive que essas diferenças não tivessem ocorrido entre os homens, é necessário que tenha havido, em sua evolução (e falamos aqui segundo o ponto de vista dos espíritas), um momento em que a desigualdade começou, e é necessário que tenha havido uma causa para isso; ao dizer que essas causas são os atos que os homens realizaram anteriormente, é preciso explicar como esses homens puderam se comportar de maneira tão diferente antes de que as desigualdades fossem introduzidas em seu meio. Isso é inexplicável, simplesmente porque há aí uma contradição: se os homens tivessem sido perfeitamente iguais, teriam sido semelhantes em todos os aspectos, e admitindo que isso fosse possível, jamais poderiam deixar de sê-lo, a menos que se conteste o princípio da razão suficiente (e nesse caso, já não haveria sentido buscar uma lei ou explicação qualquer); se eles puderam de fato tornar-se desiguais, é evidente que a possibilidade de desigualdade estava entre eles, e essa possibilidade preliminar bastava para constituí-los como desiguais desde a origem, ao menos potencialmente.[...] Assim, não se faz mais que retroceder com a dificuldade, crendo havê-la resolvido.
b)  Intervenção moralista em questões de outra ordem
Dá para dizer que esta questão, como muitas outras questões filosóficas, só existem porque estão mal colocadas. E se isso ocorre, é sobretudo, no fundo, pela intervenção de considerações morais e sentimentais onde não há lugar para tal: essa atitude é tão pouco inteligente como seria o caso de um homem que perguntasse, por exemplo, por que tal espécie de animal não é igual a alguma outra, o que carece claramente de qualquer sentido. Que haja diferenças na natureza, e que tomemos algumas como desigualdades e outras não, diz respeito somente ao ponto de vista humano; se deixamos de lado esse ponto de vista, eminentemente relativo, não se deve mais falar em justiça ou injustiça nessa ordem de coisas. Ou seja, perguntar-se por que um ser não é igual a outro, é perguntar porque é diferente do outro; mas, se não fosse diferente de outro, ele seria outro ao invés de ser ele mesmo. Uma vez que há uma multiplicidade de seres, a diferença entre eles é necessária; duas coisas idênticas são inconcebíveis, porque se são verdadeiramente idênticas, não são duas coisas, mas uma só. Leibnitz está inteiramente certo sobre esse ponto. Cada ser se distingue dos demais, desde o princípio, a partir do qual traz em si algumas possibilidades que são essencialmente inerentes a sua natureza, e que não são possibilidades de nenhum outro ser; a questão para a qual os reencarnacionistas pretendem dar uma resposta equivale, pois, simplesmente a perguntar por que um ser é ele mesmo e não outro.
Em outro trecho aponta que:
Ao invés de perguntar se algo é verdadeiro ou falso, que é a única coisa que importa, se discute para saber se é ou não «consolador», e assim é possível discutir indefinidamente sem avançar e, nada, pois esse é um critério puramente «subjetivo», como diria algum filósofo.
c) A justiça como harmonia e ordem cosmológicas.
A noção de justiça, destituída de seu caráter sentimental e especificamente humano, se reduz à de equilíbrio e de harmonia; pois sim, para que haja harmonia total no Universo, é preciso, e suficiente, que cada ser esteja no lugar que deve ocupar, como elemento desse universo, em conformidade com sua própria natureza.  Isso é o mesmo que dizer que as diferenças e as desigualdades, que alguns se comprazem em denunciar como injustiças reais ou aparentes, concorrem, ao contrário, de forma efetiva e necessária, para essa harmonia total;
2.2. a reencarnação, a Igreja católica e os textos evangélicos

Vale a pena transcrever aqui, a título de registro, as objeções de Guénon questionando a honestidade dos adversários na caracterização do tema, ao atribuir a doutrina à igreja católica ou o evangelho mesmo: 
A propósito da doutrina católica, devemos mencionar também uma afirmativa dos espíritas que é verdadeiramente extraordinária: Allan Kardec afirma que o «dogma da ressurreição da carne é a consagração do dogma da reencarnação ensinado pelos espíritos», e que «assim a Igreja, pelo dogma da ressurreição da carne, ensina também a doutrina da reencarnação»; [...] e é o «espírito» de São Luis quem lhe responde que «isso é evidente», adicionando que «Em breve se reconhecerá que o espiritismo está presente em cada passagem do texto mesmo das Escrituras sagradas»
E oferece a citação:
[...] Encontrou-se um sacerdote católico, mais ou menos suspeito de heterodoxia, para aceitar e sustentar opinião; é o abade J. A. Petit, da diocese do Beauvais, familiar longínquo da duquesa de Pomar, que escreveu estas linhas: «A reencarnação foi admitida pela maioria dos povos antigos…Cristo também a admitia. Se ela não é ensinada mais expressamente pelos Apóstolos, é porque era preciso que os fiéis obtivessem as qualidades morais que lhes dessem acesso a tal doutrina… [...] quando o ensinamento cristão, sob a pressão de interesses humanos, foi fixado em um árido símbolo, não ficou, como vestígio do passado, senão a ressurreição da carne, ou 'na carne', que, tomada no sentido estreito da palavra, fez acreditar no engano gigantesco da ressurreição dos corpos mortos ». 
E ainda:
O conde de Larmandie, concretamente, queria que [a reencarnação] fosse admitida para crianças mortas sem batismo. É certo que em alguns textos, como os do Quarto Concílio de Constantinopla, que parecem depor contra a reencarnação, não se aplicam a ela em realidade; mas os ocultistas não puderam triunfar, e, se  assim ocorreu, é simplesmente porque, naquela época, a reencarnação ainda não tinha sido imaginada.[...] Tratava-se de uma opinião de Orígenes, segundo a qual a vida corporal seria um castigo para almas que, «preexistindo enquanto potências celestes, teriam chegado a saciar-se da contemplação divina»;
E conclui Guénon diante da citação:
Como se vê, não se trata de outra vida corporal anterior, mas sim de uma existência no mundo inteligível no sentido platônico, o que não tem nenhuma relação com a reencarnação.
E critica novamente Papus: 
É penoso conceber que Papus pôde escrever que «a opinião do concílio indica que a reencarnação formava parte do ensino, e que se havia quem voltava voluntariamente a reencarnar-se, não por desgosto do Céu, mas sim por amor de seu próximo, o anátema não podia lhes tocar» (imaginou [Papus] que esse anátema se dirigia contra «aqueles que proclamassem terem voltado à terra por não terem gostado do Céu»); e é nisto que ele se apóia para afirmar que «a idéia da reencarnação faz parte dos ensinos secretos da Igreja»
E sobre a presença da reencarnação em textos evangélicos nota:
Diremos ainda algumas palavras dos textos evangélicos que os espíritas e os ocultistas invocam em favor da reencarnação; Allan Kardec indica dois, dos quais o primeiro é este, que segue ao relato da Transfiguração: «Quando desciam da montanha, Jesus fez este mandamento e lhes disse: Não falem com ninguém sobre o que acabam de ver, até que o Filho do Homem seja ressuscitado dentre os mortos. Seus discípulos lhe interrogaram então e lhe disseram: por que então os escribas dizem que é preciso que Elias venha antes? Mas Jesus lhes respondeu: É verdade que Elias deve vir e que restabelecerá todas as coisas. Mas eu lhes declaro que Elias já veio, e não lhe conheceram, mas sim lhe têm feito sofrer como quiseram. É assim como farão morrer ao Filho do Homem. Então seus discípulos compreenderam que era de João Batista de que lhes tinha falado». E Allan Kardec adiciona: «Posto que João Batista era Elias, houve pois reencarnação do espírito ou da alma do Elias no corpo do João Batista». Papus, por sua vez, diz igualmente: «Primeiro, os Evangelhos afirmam sem rodeios que João Batista é Elias reencarnado. Era um mistério. João Batista interrogado se cala, mas outros sabem. Há também essa parábola do cego de nascimento castigado por seus pecados anteriores, que dá muito que refletir».
E comenta:
Em primeiro lugar, no texto não se diz de que maneira «Elias já veio»; e, se pensarmos que Elias não estava morto no sentido comum da palavra, pode parecer ao menos difícil que seja por reencarnação; além disso, por que Elias, na Transfiguração, não havia se manifestado sob os traços de João Batista? Depois, João Batista, interrogado, não se cala como quer Papus mas, ao contrário, nega formalmente: «Eles lhe perguntaram: O que, pois? É você Elias? E ele lhes disse: Eu não o sou». Se disserem que isso é só  prova de que não tinha memória de sua precedente existência, responderemos que há outro texto que é muito mais explícito ainda; é aquele em que o anjo Gabriel, anunciando a Zacarias o nascimento de seu filho, declara: «Marchará ante o Senhor no espírito e na virtude de Elias, para reunir o coração dos pais com seus filhos e recordar as desobediências à prudência dos justos, para preparar ao Senhor um povo perfeito». Não é possível indicar mais claramente que João Batista não era Elias, mas que tão somente pertencia, se for possível se expressar assim, a sua «família espiritual»; é desta maneira, e não de forma literal, que é precisar entender «a vinda de Elias».
Outro ponto:
Quanto à história do cego de nascimento, Allan Kardec não fala dela, e Papus parece conhecê-la mal, dado que toma por parábola o que é o relato de uma cura milagrosa; eis aqui o texto exato: «Quando Jesus passava, viu um homem que era cego desde seu nascimento; e seus discípulos lhe fizeram esta pergunta: Mestre, é o pecado deste homem, ou o pecado dos que lhe trouxeram para o mundo, que é causa de que tenha nascido cego? Jesus lhes respondeu: Não é que ele tenha pecado, nem aqueles que o trouxeram ao mundo; mas sim, é a fim de que as obras do poder de Deus brilhem nele». de maneira que aquele homem não havia sido «castigado por seus pecados», mas isso teria podido ser assim, a condição de distorcer o texto adicionando-lhe uma palavra que não se encontra nele: «por seus pecados anteriores»; não fosse a ignorância demonstrada por Papus nesse caso, poderíamos ficar tentados a lhe acusar de má fé. O que era possível no caso, é que a enfermidade daquele homem lhe tivesse sido infligida como sanção antecipada em vistas de pecados que cometeria posteriormente; esta interpretação não pode ser descartada senão pelos que levam o antropomorfismo até ao ponto de querer submeter Deus ao tempo.
Segue:
[...] o segundo texto usado por Allan Kardec não é outro que o da conversa de Jesus com Nicodemus; para refutar as pretensões dos reencarnacionistas a este respeito, basta reproduzir a passagem: «Se um homem não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus… Na verdade, eu lhes digo, se um homem não renascer da água e do espírito, não pode entrar no Reino de Deus. O que nasce da carne é carne, e o que nasce do espírito é espírito. Não lhes surpreendam de que lhes haja dito, que é mister que nasçam de novo».
E conclui:
É necessária uma ignorância tão prodigiosa como a dos espíritas para crer que se trate de reencarnação quando se trata do «segundo nascimento», entendido em um sentido puramente espiritual, e que é inclusive oposto aqui ao nascimento corporal; a concepção do «segundo nascimento», sobre a que não vamos insistir agora, é das que são comuns a todas as doutrinas tradicionais, entre as quais não há nenhuma, apesar das afirmações dos «neoespiritualistas», que tenha ensinado jamais algo que lembre de perto ou de longe a reencarnação.
2.3. A reencarnação como fato excepcional

Guénon cita, com aprovação parcial, os ensinamento da H.B do L, que era antirreencarnacionista, dizendo que eles mantêm um lastro tradicional em seu pensamento; segue a transcrição de tais trechos da irmandade:
«Quando se alcança o grande estado de consciência, cume da série das manifestações materiais, a alma nunca mais voltará à matriz da matéria, nem sofrerá a encarnação material; daí em diante, seus renascimentos são no reino do espírito. Aqueles que sustentam a doutrina estranhamente ilógica da multiplicidade dos nascimentos humanos, certamente jamais desenvolveram em si mesmos o estado lúcido de consciência espiritual; [...]  Uma educação exterior é relativamente sem valor como meio de obter o conhecimento verdadeiro. A bolota torna-se carvalho, a noz de coco torna-se palmeira; mas por miríades de outras bolotas que se tornem carvalho, ela mesma já não se torna bolota nunca mais, nem tampouco a palmeira volta a ser noz. Assim é também com o homem: desde que a alma se manifestou sobre o plano humano, e alcançou assim a consciência da vida exterior, jamais volta a passar por nenhum desses estados rudimentares… Todos os pretensos “despertares de memórias” latentes, pelos quais algumas pessoas asseguram lembrar-se de suas existências passadas, podem ser explicados, e inclusive só podem ser de fato explicados pelas simples leis da afinidade e da forma.
Segue:
Cada raça de seres humanos, considerada em si mesma, é imortal; é o mesmo para cada ciclo: jamais o primeiro ciclo sucede o segundo, mas os seres do primeiro ciclo são (espiritualmente) os pais, ou os geradores, dos do segundo ciclo. Assim, cada ciclo compreende uma grande família constituída pela reunião de diversos grupamentos de almas humanas, onde cada condição está determinada pelas leis de sua atividade, de sua forma e de sua afinidade: Uma trindade de leis… É assim que o homem pode ser comparado à bolota e ao carvalho: a alma embrionária, não individualizada, precede um homem do mesmo modo que a bolota precede o carvalho, e, do mesmo modo que o carvalho dá nascimento a uma quantidade inumerável de bolotas,  o homem proporciona por sua vez a uma infinidade de almas os meios de obter nascimento no mundo espiritual.[...] Há correspondência completa entre os dois, e é por esta razão que os antigos druidas prestavam tão grandes honras a esta árvore, que era honrada acima de todas as outras pelos poderosos hierofantes». 
E ao fim da citação acrescenta:
[...] Há nisto uma indicação do que é a «posteridade» entendida no sentido puramente espiritual;[...] Infelizmente a H. B. de L. admitia a possibilidade da reencarnação em alguns casos excepcionais, como o dos meninos nascidos mortos ou mortos de pouca idade, e o dos idiotas de nascimento. Vimos em outra parte que Mme Blavatsky admitia esta maneira de ver na época em que escreveu Isis Sem Véu. Na realidade, desde que se trata de uma impossibilidade metafísica, não poderia haver a menor exceção.
3. A reencarnação é distinta da metempsicose e da transmigração
O termo «reencarnação» deve ser distinguido de outros dois termos ao menos, que têm um significado totalmente diferente, e que são a «metempsicose» e a «transmigração»; Essas são coisas muito bem conhecidas pelos antigos, como o são ainda pelos orientais, mas que os ocidentais modernos, inventores da reencarnação, ignoram absolutamente. Entenda-se bem que, quando se fala de reencarnação, isso quer dizer que o ser que esteve já encarnado toma um novo corpo, quer dizer, que volta para estado pelo que já passou; [...] admite-se que isso diz respeito ao ser real e completo, e não simplesmente aos elementos mais ou menos importantes que puderam entrar em sua constituição sob qualquer título. Fora destas duas condições, não pode tratar-se de reencarnação.
E enfatiza os aspectos simbólicos usados pelas tradições:
Há expressões mais ou menos simbólicas que podem dar lugar a mal-entendidos, mas somente quando não se sabe o que querem dizer de verdade, e que é isto: há no homem elementos psíquicos que se dissociam depois da morte, e podem ser transmitidos a outros seres vivos, homens ou animais sem que isso tenha mais importância que o fato de que, depois da dissolução do corpo desse mesmo homem, os elementos que lhe compunham possam servir para formar outros corpos. Nos dois casos, trata-se de elementos mortais, e não da parte imperecível que é seu ser real, que não é afetado de maneira alguma por essas mutações póstumas.
E retorna a Papus:
A este propósito, Papus cometeu um equívoco de outro gênero, ao falar «das confusões entre a reencarnação ou retorno do espírito a um corpo material, depois de uma estadia astral, e a metempsicosis ou passagem feita pelo corpo material de corpos de animais e de plantas, antes de voltar para um novo corpo material»; sem falar de algumas raridades de expressão que podem ser lapsos (os corpos de animais e de plantas não são menos «materiais» que os corpos humanos, e não são «perpassados» por este, mas sim por elementos que provêm dele), não se pode de maneira nenhuma chamar isso de «metempsicose», já que a formação desta palavra implica que se trata de elementos psíquicos, e não de elementos corporais. Papus tem razão ao pensar que a metempsicose não se refere ao ser real do homem, mas se equivoca completamente sobre sua natureza; e ademais, quanto à reencarnação, quando diz que «foi ensinada como um mistério esotérico em todas as iniciações da antiguidade», confunde-a pura e simplesmente com a transmigração verdadeira.
3.1. A metempsicose 

Nesse trecho Guénon explica o que é metempsicose, segundo ele a entende:
A dissolução que segue à morte não recai somente sobre os elementos corporais, mas também sobre alguns elementos que podem ser considerados psíquicos; isto, já dissemos ao explicar que tais elementos podem intervir às vezes nos fenômenos do espiritismo e contribuir para dar a ilusão de uma ação real dos mortos; de uma maneira análoga, podem também, em alguns casos, dar a ilusão de uma reencarnação. O que importa reter, sob esta última relação, é que estes elementos (que, durante a vida, podem ter sido propriamente conscientes ou só «subconscientes») compreendem concretamente todas as imagens mentais que, ao resultar da experiência sensível, formaram parte do que se chama memória e imaginação: estas faculdades, ou melhor, estes conjuntos, são perecíveis, quer dizer, sujeitos a dissolver-se, porque, ao serem de ordem sensível, são literalmente dependências do estado corporal; por outra parte, fora da condição temporal, que é uma das que definem este estado, a memória não teria evidentemente nenhuma razão de subsistir.
E observa:
Certamente, isto está muito longe das teorias da psicologia clássica sobre o «eu» e sua unidade; estas teorias têm o defeito de estarem quase tão desprovidas de fundamento, em seu gênero quanto as concepções dos «neoespiritualistas». Outra precisão que não é menos importante, é que pode haver uma transmissão de elementos psíquicos de um ser a outro sem que isso suponha a morte do primeiro: em efeito, há uma herança psíquica tanto como uma herança fisiológica, isto é bastante pouco contestado, e é inclusive um fato de observação vulgar; mas o que muitos não se dão conta provavelmente, é que isso supõe ao menos que os pais proporcionem uma semente psíquica junto com um semente corporal; e esta semente pode implicar potencialmente um conjunto muito complexo de elementos pertencentes ao domínio da «subconsciência», além das tendências ou predisposições propriamente ditas que, ao desenvolver-se, aparecerão de uma maneira mais manifesta; estes elementos «subconscientes», ao contrário, poderão não se tornar visíveis senão em casos bem excepcionais. É a dupla herança, psíquica e corporal que é expressa na fórmula chinesa: «Você reviverá em seus milhares de descendentes», que, seguramente, seria muito difícil de interpretar em sentido reencarnacionista, embora os ocultistas e inclusive os orientalistas tenham obtido muitas outras façanhas comparáveis a esta. As doutrinas extremo-orientais consideram inclusive, de preferência, o lado psíquico da herança, e vêem nele um verdadeiro prolongamento da individualidade humana; por isso é que, sob o nome de «posteridade» (que é suscetível também de um sentido superior e puramente espiritual), associam-na à «longevidade», que os ocidentais chamam imortalidade.[...]
Segue:
Alguns feitos que os reencarnacionistas acreditam poder invocar em apoio de sua hipótese se explicam perfeitamente por um ou outro dos dois casos que acabamos de considerar, quer dizer, por uma parte, pela transmissão hereditária de alguns elementos psíquicos, e, por outra, pela assimilação a uma individualidade humana de outros elementos psíquicos provenientes da desintegração de individualidades humanas anteriores, que não têm por isso a menor relação espiritual com aquela. Em tudo isto, há correspondência e analogia entre a ordem psíquica e a ordem corporal; e isso se compreende, posto que um e outro, repetimo-lo, referem-se exclusivamente ao que se pode chamar os elementos mortais do ser humano.
E conclui:
Tudo isso, já dissemos, não diz respeito nem afeta de maneira nenhuma o ser real; é verdade que alguém poderia perguntar-se por que, se for assim, os antigos parecem ter dado uma importância tão grande à sorte póstuma dos elementos em questão. [...] efetivamente, como regra geral, estas coisas não são absolutamente indiferentes; se fossem, os ritos funerários não teriam nenhuma razão de ser, enquanto que, ao contrário, têm uma razão muito profunda. Sem poder insistir sobre tudo isto, diremos que a ação destes ritos se exerce precisamente sobre os elementos psíquicos do defunto; mencionamos o que pensavam os antigos da relação que existe entre seu não cumprimento e alguns fenômenos de «obsessão»
3.2 A transmigração

Guénon explica a transmigração como a a ascensão vertical por diversos estados de Ser:
Trata-se em efeito do ser real, mas não se trata para ele de um retorno ao mesmo estado de existência, retorno que, se pudesse ocorrer, seria talvez uma «migração», mas não uma «transmigração». O caso é, ao contrário, da passagem do ser a outros estados de existência, que estão definidos, como dissemos, por condições inteiramente diferentes daquelas às quais está submetida a individualidade humana (com a única restrição de que, enquanto se trate de estados individuais, o ser está revestido sempre de uma forma, mas que não poderia dar lugar a nenhuma representação espacial ou outra, mais ou menos modelada sobre a da forma corporal); quem diz transmigração diz essencialmente mudança de estado. É isto o que entendem todas as doutrinas tradicionais do oriente, e temos múltiplas razões para pensar que este ensino era também o dos «mistérios» da antiguidade; inclusive em doutrinas heterodoxas como o budismo, não se trata de outra coisa, apesar da interpretação reencarnacionista que ocorre hoje em dia entre os europeus. É precisamente a verdadeira doutrina da transmigração, entendida segundo o sentido que lhe dá a metafísica pura, que permite refutar de maneira absoluta e definitiva a idéia de reencarnação; e, sobre este terreno, não há nenhuma outra refutação que seja possível.
3.2.1. O caminho dos ancestrais e os ciclos cósmicos

No seu O Homem e Seu Devir Segundo o Vedânta, Guénon dá algumas interpretações do chamado Pitriyana, às quais caberia objeção segundo as interpretações ortodoxas (assim como também seu argumento lógico ou metafísico), que serão discutidos em outra postagem, mas basicamente esses são os trechos:
No final do pitriyâna, existe retorno ao “mundo do homem” (mânava-loka), ou seja, à condição individual, designada assim por analogia com a condição humana, embora necessariamente diferente, pois o ser não pode voltar a um estado pelo qual ele já passou.
E ainda:
No que se refere ao pitriyâna, diremos apenas que ele não conduz além da Esfera da Lua, de modo que, por ele, o ser não se liberta da forma, ou seja da condição individual entendida no seu sentido mais geral, pois, como já dissemos, é precisamente a forma que define a individualidade como tal.[...]
E em outro trecho Guénon afirma a relação entre a doutrina dos ciclos e a transmigração, e esse é um dos pontos mais importantes de sua doutrina, desenvolvido também por Kumârasvâmî:
Esta Esfera da Lua representa a “memória cósmica”: é por isso que ela é a morada dos Pitris, ou seja dos seres do ciclo antecedente, que são considerados como os geradores do ciclo atual, em razão do encadeamento causal de quê a sucessão dos ciclos é apenas o símbolo; e é daí que vem a denominação de pitriyâna, enquanto que dêvayâna designa naturalmente a Via que conduz aos estados superiores do ser, portanto para a assimilação à própria essência da Luz inteligível. É na Esfera da Lua que se dissolvem as formas que cumpriram o curso completo de seu desenvolvimento; e é aí também que estão contidas as sementes das formas ainda não desenvolvidas, pois, para a forma como para tudo o mais, o ponto de partida e o ponto de chegada situam-se necessariamente dentro da mesma ordem de existência. Para detalhar ainda mais estas informações, seria preciso remetermo-nos expressamente à doutrina dos ciclos; mas aqui basta dizer que, sendo cada ciclo na realidade um estado de existência, a forma antiga que deixa o ser não liberto da individualidade e a forma nova da qual ele se reveste pertencem necessariamente a dois estados diferentes (a passagem de um para outro efetua-se na Esfera da Lua, onde se encontra o ponto comum aos dois ciclos), pois um ser, qualquer que seja, não pode passar duas vezes pelo mesmo estado [...]

4. É possível estabelecer a impossibilidade metafísica da reencarnação

E por fim, o principal argumento ou pretensa demonstração apodítica do Guénon:
[...] vale contra todas as teorias reencarnacionistas, qualquer que seja a forma que tomem, e aplica-se igualmente, e sob o mesmo título, a certas concepções de matiz mais propriamente filosófica, como a concepção do «eterno retorno» de Nietzsche, e em uma palavra a tudo o que suponha no Universo uma repetição qualquer.
E explica:
Basta que um ser tenha passado por um certo estado, ainda que de forma embrionária, ou inclusive sob a forma de simples semente, para que não possa em nenhum caso voltar a esse estado, cujas possibilidades efetuou segundo a medida disposta por sua própria natureza; se o desenvolvimento dessas possibilidades parece haver-se detido para ele em certo ponto, é porque não tinha que ir mais longe em sua modalidade corporal, e o que é aqui causa engano é o fato de só considerarem essa modalidade, não levando-se em conta todas as possibilidades que, para esse mesmo ser, podem desenvolver-se em outras modalidades do mesmo estado; se levassem isso em conta, veriam que a reencarnação, inclusive em casos assim, é absolutamente inútil, o que se pode admitir, ao saber dessa impossibilidade, é que tudo o que é, quaisquer que sejam as aparências, concorre para a harmonia total do Universo.
Segue:
Esta questão é análoga a das comunicações espíritas: em ambos os casos trata-se de impossibilidades; dizer que pode haver exceções seria tão ilógico como dizer, por exemplo, que pode haver um pequeno número de casos nos que, no espaço euclidiano, a soma interna dos três ângulos de um triângulo não seja igual a cento e oitenta graus; o que é absurdo é absolutamente absurdo, e não só «em geral». Ademais, se começarmos a admitir exceções, não vemos muito bem como poderíamos atribuir-lhes um limite preciso: como se poderia determinar a idade a partir da qual um menino, se morrer, não terá necessidade de reencarnar-se, ou o grau que deve alcançar a debilidade mental para exigir uma reencarnação? Evidentemente, nada poderia ser mais arbitrário, e podemos dar a razão a Papus quando diz que, «se rejeitarmos esta teoria, é preciso não admitir exceção, sem o qual se abre uma brecha através da qual tudo pode passar».
a) A reencarnação como pura impossibilidade
Somos conduzidos assim a mostrar que a reencarnação é uma impossibilidade pura e simples; por isso é preciso entender que um mesmo ser não pode ter duas existências no mundo corporal, considerando este mundo em toda sua extensão: pouco importa que seja sobre a terra ou sobre outros astros quaisquer; importa pouco também que seja em ser humano ou, segundo as falsas concepções da metempsicose, sob qualquer outra forma, animal, vegetal ou inclusive mineral. Adicionaremos ainda: importa pouco que se trate de existências sucessivas ou simultâneas, já que alguns têm colocado esta hipótese,  de uma pluralidade de vidas que se desenvolvem simultaneamente, para um mesmo ser, em diversos lugares, em planetas diferentes;
b) E finalmente, a demonstração, que é o cerne de sua argumentação, em três pontos  e com as próprias palavras do autor:
I- A Possibilidade universal e total é necessariamente infinita e não pode ser concebida de outro modo, já que, ao compreender tudo e ao não deixar nada fora dela, não pode estar limitada por nada absolutamente; uma limitação da Possibilidade universal, posto que deve lhe ser exterior, é própria e literalmente uma impossibilidade, quer dizer, um puro nada.

II - Supor uma repetição no seio da Possibilidade universal, como se faz ao admitir que haja duas possibilidades particulares idênticas, é supor uma limitação, já que a infinidade exclui toda repetição: não é senão no interior de um conjunto finito onde se pode voltar duas vezes a um mesmo elemento, e mesmo esse elemento não seria rigorosamente o mesmo senão sob a condição de que esse conjunto forme um sistema fechado, condição que não se realiza nunca efetivamente.

III- Uma vez que o Universo é verdadeiramente um todo, ou melhor, o Todo absoluto, não pode haver em nenhuma parte um ciclo fechado: duas possibilidades idênticas seriam uma só e mesma possibilidade; para que sejam verdadeiramente duas, é necessário que difiram por uma condição ao menos, e então não são idênticas. Nada pode voltar nunca para mesmo ponto, e isto inclusive em um conjunto que é em si mesmo indefinido (e não já infinito), como o mundo corporal: enquanto se traça um círculo, se efetua um deslocamento, e assim o círculo não se fecha senão de uma maneira inteiramente ilusória, e há nisso mera analogia, mas pode servir para ajudar a compreender que, «a fortiori», na existência universal, o retorno a um mesmo estado é uma impossibilidade: na Possibilidade total, estas possibilidades particulares que são os estados de existência condicionados são necessariamente em multiplicidade indefinida; negar isto, é querer limitar a Possibilidade; é necessário, pois admiti-lo, sob pena de contradição, e isso basta para que nenhum ser possa voltar a passar duas vezes pelo mesmo estado.
E a conclusão:
Como se vê, esta demonstração é extremamente simples em si mesma, e, se para alguns dá trabalho compreendê-la, não pode dever-se senão ao fato de que lhes faltam os conhecimentos metafísicos mais elementares; para esses, talvez fosse necessária uma exposição mais desenvolvida, mas lhes rogaremos que esperem, para encontrá-la, a que tenhamos a ocasião de dar integralmente a teoria dos estados múltiplos; em todo caso, podem estar seguros de que esta demonstração, tal como acabamos de formulá-la no que tem de essencial, não deixa nada a desejar sob o aspecto do rigor.
Resposta à objeção de que rejeitar a reencarnação é limitar também a Possibilidade Universal:
Quanto àqueles que imaginarão que, ao rejeitar a reencarnação, arriscamo-nos a limitar de outra maneira a Possibilidade universal, responderemos simplesmente que não rejeitamos senão uma impossibilidade, que é nada, e que não aumentaria a soma das possibilidades senão de maneira absolutamente ilusória, por não ser nada mais que um puro zero; não se limita a Possibilidade negando um absurdo qualquer, por exemplo dizendo que não pode existir um quadrado redondo, ou que, entre todos os mundos possíveis, não pode haver nenhum onde dois e dois somem cinco; o caso é exatamente o mesmo. Há gente que, nesse campo de idéias, tem estranhos escrúpulos: assim Descartes, quando atribuía a Deus a «liberdade de indiferença», por temor a limitar a onipotência divina (expressão teológica da Possibilidade universal), e sem entender que essa «liberdade de indiferença», ou a escolha em ausência de toda razão, implica condições contraditórias; diremos, para empregar sua linguagem, que um absurdo não o é tal porque Deus o quis arbitrariamente, mas sim, ao contrário, é porque é um absurdo pelo qual Deus não pode fazer que seja algo, sem que isso atente contra sua onipotência, posto que absurdo e impossibilidade são sinônimos.
E por fim, para evitar supostas confusões sobre os Estados Múltiplos do Ser, o metafísico francês arremata:
Estes estados [Estados Múltiplos do Ser] podem ser concebidos como simultâneos ou sucessivos, e que inclusive, no conjunto, não se pode admitir sua sucessão senão a título de representação simbólica, posto que o tempo não é senão uma condição própria de um destes estados, e posto que inclusive a duração, sob um modo qualquer, não pode ser atribuída senão a alguns dentre eles; se queremos falar de sucessão, é necessário tomar cuidado para deixar claro que isso se dá somente em sentido lógico, e não no sentido cronológico. Por esta sucessão lógica, entendemos que há um encadeamento causal entre os diversos estados; mas a relação mesma de casualidade, se a tomarmos segundo seu verdadeiro significado (e não segundo a acepção «empirista» de alguns lógicos modernos), implica precisamente a simultaneidade ou a coexistência de seus termos. Além disso, é bom precisar que inclusive o estado individual humano, que está submetido à condição temporal, pode apresentar, uma multiplicidade simultânea de estados secundários: o ser humano não pode ter vários corpos, mas, fora da modalidade corporal e ao mesmo tempo, pode possuir outras modalidades nas quais se desenvolvem também algumas das possibilidades que contém.

E uma última observação:
Isto nos conduz a apontar uma concepção que se relaciona bastante estreitamente com a da reencarnação, e que conta também com numerosos partidários entre os «neo-espiritualistas»: segundo esta concepção, cada ser deveria, no curso de sua evolução (já que aqueles que sustentam tais idéias são sempre, de uma maneira ou de outra, evolucionistas), passar sucessivamente por todas as formas de vida, terrestres e outras. Uma teoria desse tipo não expressa mais que uma  manifesta impossibilidade, pela simples razão de que existe uma infinidade de formas vivas pelas quais um ser qualquer jamais poderá passar, posto que estas formas são todas as que estão ocupadas por outros seres.
Pois sim, nas próximas postagens vou apresentar as perspectivas ortodoxas hindus sobre o tema segundo suas escrituras e tentar relacioná-las com os autores perenialistas apresentados aqui e em postagens anteriores para ver em que pontos concordam ou não, e ainda adiante vou fazer um comentário sobre a refutação guenoniana desde o ponto de vista propriamente metafísico.