Tuesday, March 27, 2018

A visão da essência da Mâyâ inefável

Disse o Brahmâ:

-- Muito surpresos estávamos por achar água onde nossa excelente aeronave pousara. Vimos que a terra ressoava com o arrulho doce dos pássaros, e estava cheia de árvores com seus frutos, e muitas florestas e jardins. Rios, poços, tanques, lagos e fontes de água – havia ali também mulheres e homens. Então vimos diante de nós uma perfeita fortaleza cercada por um muro divino, havia nessa cidade salões amplos para yajña, e vários edifícios magnificentes:

--"Quem terá construído esse paraíso maravilhoso?"

Então apareceu ao longe um rei, semelhante a um Deva, que naquele momento partia para uma jornada de caça na floresta. […] Contudo, numa velocidade inesperada nossa aeronave, propulsionada pelo ar, subiu aos céus e num piscar de olhos transferiu-se a outro lugar, não menos adorável.

Vimos diante de nós o jardim divino chamado Nandana. Ali, descansando debaixo da árvore Parijâta estava Surabhi, a vaca que realiza todos os desejos . Perto dela havia um elefante de quatro presas; e ali também vimos Menaká e inúmeras Apsarâs dançando e cantando, alternando entre mudrás divinos. Centenas de Yakshas, Gardharvas, Vidyâdharas estavam dentro do jardim Mandarâ e também cantavam e dançavam. No meio do jardim estava o Senhor Satkrati com Sachi, a filha de Pulomâ. Vimos então, maravilhados, Varuna, o senhor dos animais aquáticos, e também Kubera, Yama, Sûrya, Agni e outros Devas; Vimos que em nossa frente, Indra, o Senhor dos Devas, que acabava de sair de uma cidade toda decorada -- sentava-se imponente em seu palanquim, calmo e composto, carregado por servos. 

O nosso veículo começou a se elevar novamente, alto no céu, e em outro piscar de olhos, entramos no Brahmâ Loka, que é saudado por todos os Devas. Vishnu e Maheshwara ficaram muito perplexos ao verem que havia um outro Brahmâ naquela localidade. No salão central do Brahmâ, vimos os Vedas com seus membros, vimos serpentes, cordilheiras, oceanos e rios. Ao ver tudo isso os dois me perguntaram: 

--“Ó Deus de quatro faces! Quem é esse outro Brahmâ?” 

Respondi: 

--“Eu não sei quem é esse (outro Brahmâ)? Quem sou eu? E quem é ele? Como é que essa confusão está acontecendo em minha mente? Mas vocês são Deuses, me ajudem a entender...” 

Daí, nosso veículo, viajando com a velocidade da mente se transportou para o Monte Kailasha que estava rodeado de Yakshas, que concedem o êxtase. A montanha estava embelezada pelo jardim Mandâra, e ouvíamos doces sons de Sukas e cucos, e alaúdes, e tambores. Ao chegar ali, nós vimos o Deus de cinco faces, o que tem três olhos, o Bhagavân Shashi Shekhara, que tem dez mãos: ele se vestia composto com pele de tigre e de elefante. Ele estava naquele momento saindo de sua casa, e cavalgava em um touro. Os seus dois filhos, Ganesha e Kârtikeya, vestidos de forma gloriosa, o seguiam como guarda-costas. O touro Nandi e suas hordas também o seguiam, cantando hinos retumbantes de vitória. Ó Muni Narâda! Ficamos ainda mais surpresos quando vimos outro Shiva, rodeado de Matrikâs. Ficamos tão perplexos e cheio de dúvidas que apenas permanecemos ali sentados silenciosos observando.

Mas a nossa aeronave pegou voo novamente com a força do vento. E de imediato chegamos ao Vaikuntha, na corte rejubilante de Lakshmî. Ó Sûta! Lá, em Vaikuntha, vimos uma manifestação esplendorosa de poder. Nosso companheiro Vishnu ficou surpreso ao ver aquela cidade excelente. E vimos ali outro Vishnu de quatro braços, da cor da flor âtasi, usando roupas amarelas resplandecentes, adornado com joias divinas, montado no pássaro Garuda enquanto Laksmî Devî o abanava.

Diante da visão do outro Vishnu eterno, nos sentamos no veículo e olhamo-nos mutuamente surpresos, porém, não houve tempo -- uma vez mais, num piscar de olhos, o veículo se transportou para outro lugar. 

Nesse novo lugar vimos o oceano do néctar e suas ondas infinitas que se moviam causando insuportável doçura. O oceano estava cheio de animais aquáticos e as ondas sucediam-se infinitamente até que emergiu diante de nosso olhos, do meio do oceano infinito, um lugar maravilhoso chamado Mani Dvîpa (Ilha das pedras preciosas). Nessa ilha havia árvores celestiais floridas, cheias de pérolas e pedras raras, formando tapetes imensos com variedade incontável. Ouvíamos pássaros e o zumbido forte de abelhas, contra um fundo de música harmoniosa. 

De dentro da aeronave, vimos na ilha um catre lindíssimo que é chamado de Shivâkâra, cujas pernas representam Brahmâ, Vishnu e Rudra, e cuja parte superior representa Sadâ-Shiva. O catre era semelhante a um arco-íris, com um tapete delicadíssimo estendido, ornado com minúsculas e delicadas pedras preciosas.

Vimos então uma Deusa.

Ela estava sentada nesse catre, sua roupa era intensamente vermelha, e ela tinha uma guirlanda rubra de flores frescas ao redor do pescoço, umedecidas por pasta de sândalo. Seus olhos eram vermelho-escuros; essa Deusa, de linda face, e lábios vermelhos nos pareceu mais linda que dez milhões de trovões, mais linda que dez milhões de Lakshmîs, e ofuscante como o Sol vermelho. Estava sentada, com doce sorriso nos lábios, em suas quatro mãos levava uma corda com um laço, um aguilhão, e mudrás indicando que ela dava bênçãos aos seus devotos, e destruía todo o medo. Jamais tínhamos visto ou imaginado tal forma divina. Até mesmo os pássaros daquele lugar repetiam e melodia o divino mantra da Deusa que tem a cor do sol nascente, da Deusa compassiva, da Deusa que é o próprio enrubescimento da juventude. 

Ela sorria.

Estava adornava com todas as belezas da Natureza e várias joias, braceletes, diademas e ornamentos lustrosos. Seus seios imponentes desafiavam o botão do lótus.  Sua face resplandecia sob a iluminação do brilho de seus brincos, que tinham o formado do Yantra sagrado. Várias Devis jovens lhe serviam: havia Sakhis nas quatro direções – sempre cantando hinos para Maheshwarî, a Senhora do Mundo. Ela estava sentada no meio do Yantra de seis pontas.

Indagávamos entre nós:

--“Quem é essa Deusa? Qual é o seu nome? Não sabemos nada sobre ela, e estamos muito longe.” 

À medida que olhávamos, fazendo esforço para discerni-la na distância, a Deusa de quatro braços mudava de forma e aparecia com mil olhos, mil mãos, mil pés... Assim nos pareceu.

Ó Nârada, ficamos muito envergonhados, cheios de dúvidas e sem entender:

-- “Apsarâ, ou filha de gandhârva? Ou será outro tipo de Devî? Quem é ela?” 

Nesse momento, Bhagavân Vishnu, concentrando-se, conseguiu discernir o sorriso da Devî e pela sua infinita inteligência compreendeu o mistério: 

-- “Essa é a Devî Bhagavatî, Mahâ Vidyâ, Mahâ Mâyâ, indestrutível e eterna; Ela é a completude, a raiz, a causa de todos nós. Essa Devî é inapreensível para os que tem intelectos não qualificados. Somente os yogues podem vê-la, por meio de seu ascetismo. Ela é eterna e também não-eterna: Brahman e Mâyâ. Ela é a Força da Vontade Absoluta do Âtman Supremo. Ela é a matriz do mundo. Essa Devî de olhos imensos, a Senhora do Universo, foi ela quem produziu o Veda.

Aqueles que não tem mérito, não podem adorá-la. Durante o período da dissolução universal ela destrói todo o universo, e todos os corpos são absorvidos em seu corpo. Ó Devas, agora ela reside na forma de semente! Contemplem as manifestações de seus poderes emanando como ornamentos divinos e perfumados, servindo-a, com braços. 

Ó Devas, hoje fomos abençoados, imensamente abençoados por termos tido essa visão. Nossas práticas espirituais do passado por fim renderam frutos. Se não fosse assim, como Ela poderia ter se mostrado diante de nós em sua forma? Somente aos que têm imenso mérito, adquirido por meio de práticas espirituais, somente as grandes almas podem ver a forma da Bhagavatî. Os que vivem apegados aos objetos dos sentidos não podem jamais vê-la. Ela é a que todos chamam de Raiz da Produção, a unidade entre a Consciência Infinita e a Felicidade Infinita. 

É ela que cria esse Brahmânda e depois o exibe ao Si Mesmo Supremo.

Ó Shiva, Ó Brahmá, todo esse universo e todos os rshis, tudo o que está contido no mundo manifestado e imanifestado -- ela é a causa de tudo. Ela é a Mâyâ que assume todas as formas. A Deusa de tudo.

Onde estou eu? Onde estão os Devas? Onde está Lakshmî, e todas as Devîs? Nós não podemos compararmo-nos a um milésimo dela, a Deusa.

Foi ela, de excelência absoluta, foi ela a quem eu vi no infinito oceano, ela entendeu que eu, Vishnu, era só um bebê. No princípio de tudo, quando eu dormia no catre feito de folhas da figueira de bengala, chupando o meu dedo, como um bebê qualquer, foi ela que me ninou entre as folhas da figueira de bengala como uma verdadeira Mãe. Agora eu me lembro de tudo o que senti ao vê-la, e eu reconheço que ela é a Bhagavatî. E tendo visto, eu os instruo: ouçam atentamente, ela é a Deusa, e ela é nossa Mãe.”

(Devî Bhâgavata Purâna)

Sunday, March 25, 2018

Ramachandra


O sábio Valmiki, o primeiro entre os munis e o mais eloquente dos homens, engajado constantamente nas práticas de autocontrole e no estudo das escrituras, perguntou uma vez ao Senhor Narada:

Haverá hoje no mundo alguém dotado de qualidades heroicas excelentes, versado nas obrigações sociais, grato, firme em seus votos,  exercendo muitas funções, benevolente para com todos os seres, erudito, eloquente, belo, paciente, cuja raiva é dificilmente provocada, alguém realmente grande: livre de inveja, mas que em sua justa ira cause terror até mesmo nos corações dos seres celestiais? Ó sábio, gostaria de ouvir de ti sobre a existência de tal homem, tu que tens a arte da eloquência, descreve-o para mim?

Narada, conhecedor do passado, do presente e do futuro, agraciado pelas palavras do sábio Valmiki, respondeu assim:

“Raro, de fato, são os que possuem tais qualidades que tu enumeraste, contudo, conheço sim tal homem. 

Nascido na Dinastia Solar, seu nome é Rama: 

Renomado, tendo sob controle completo os seus sentidos, valoroso e ilustre, senhor de todas as coisas. Sábio, conhecedor do Dharma, eloquente, auspicioso, destruidor dos inimigos, de ombros largos, de longos braços, seu pescoço é perfeito como uma concha  e seu queixo é proeminente.

Conhece as artes do arco e flecha, seu corpo é poderoso,  seus braços se estendem até os joelhos, sua cabeça e sua fronte são nobilíssimas. De excelsa destreza, de membros proporcionais, sua pele tem tom cinza-azulado, renomado por sua virtude, de notáveis olhos, tórax forte, ele possui muitíssimas marcas auspiciosas; ele protege os que nele buscam refúgio, e sempre cuida dos que dele dependem; ele cumpre suas promessas, ele é benevolente para com os que o servem, conhece todas a coisas, é conhecido por suas boas ações, sempre responde à devoção. 

Ele vive em constante meditação sobre sua própria essência.  Ele é como o deus Brahma, protege seu povo, e é de aparência agradável.  Ele sustenta todo o universo, ele destrói aqueles que vão contra o Dharma, ele inspira a virtude, ele concede especial graça aos devotos e àqueles que observam os ritos ancestrais assim como àqueles que fazem caridade. 

Ele é conhecedor da essência do Vedânta, perito na arte da guerra, conhece as escrituras da lei. Sua memória é infalível, ele é amado por todos os seres. Seu temperamento é gentil, é incapaz de covardia, conhece as leis desse mundo e também dos outros mundos.  Assim como os rios correm apressados para encontrar o mar, os homens virtuosos buscam encontrá-lo.  Valoroso como Vishnu, vê-lo é tão agradável como contemplar a lua cheia. Sua ira justa é semelhante à morte que a tudo consome, sua calma é como a terra inteira, é generoso como Kubera, a divindade da riqueza. É personificação da honestidade. Tais são as qualidades de Rama, o herdeiro amado do rei Dasaratha.”

(Râmâyana, Bala Kanda, Valmiki)

Friday, March 9, 2018

A árvore e os frutos

Dvâ suparnâ sayujâ sakhâyâ, samânam vrksham parishasvajâte tayor anyah pippalam svâdv atty anashnann anyo'bhicâkashîti. 
"Dois pássaros, sempre unidos, repousam na mesma árvore. Dos dois, apenas um come o fruto, e o outro observa sem comer."
Shvetâshvataropanishad IV.6

Para entender o Dharma é preciso se livrar de muitas concepções próprias a religiões ocidentais, com  propostas e ângulos completamente diferentes na compreensão da função ou origem do homem, e que servem para oferecer soluções para problemas que eles consideram como relevantes, segundo suas tradições e escrituras, mas que não têm nada a ver com as soluções ou tecnologias espirituais védicas.

Uma dessas compreensões inconciliáveis, e isso deveria ficar claro, é a de que o homem é essencialmente caído, no sentido ontológico. Na imagem semítica, interpretada pelas religiões que a seguem, parece que ninguém permaneceu no paraíso, pois tanto Adão e Eva comeram do fruto proibido e foram expulsos, de forma que o paraíso está vazio.

O simbolismo védico equivalente, para a construção de uma antropologia, é o trecho citado acima, que aparece repetido em diferentes partes da shruti (revelação) e é um ensinamento forte e central do Veda. O fato notável é que um dos pássaros nunca come o fruto, e entende-se que esse que não come o fruto é o Âtman mesmo. As implicações são óbvias: o homem mantém a sua natureza divina em essência, e apenas parte dele se embrenha nas ações e reações, que é o ciclo infinito de morte e vida.

O Âtman, em seu 'svarûpa' (forma própria), nunca 'caiu'; permanece como jñatâ (conhecedor) e como substrato de consciência e luminosidade (que permite a manifestação de qualidades como cor, sabor, dor, prazer). O jivâtman (que entre filósofos ocidentais como Plotino corresponderia talvez ao 'zôion' ou 'composto') é Âtman entendido como desfrutador permanente, quando em associação com a mente ou 'manas', que, por sua vez, se move e recebe em sua substância, de forma inconsciente, os efeitos da dor e prazer.

Em seu comentário ao verso 19 dos Nyâya Sûtras, Vatsyâyânâchârya observa, desde seu próprio ponto de vista, que:
"Se por samsâra se entende a ação  (kriya), então o samsâra pertence à mente (manas). Uma vez que é a mente que, de fato, se move. Se por outro lado, o samsâra é a experiência da dor e do prazer, ela pertence ao jivâtman, uma vez que é ele que experimenta a dor e o prazer."
Ou seja, o fator de 'queda', para prosseguir com a analogia, está na qualidade de avidyâ (ignorância) associada à mente (que gera vida e morte, desejo, etc.) e não à essência mesma do homem, eterna, que permanece como sujeito ou experimentador; e isso é entendido assim até mesmo desde os pontos de vistas mais externos e 'exotéricos' (laukika) como os nyâyas, em que o Paramâtman é distinto, em vários atributos, de o jivâtman.

É verdade que desde certo ponto de vista, secundário desde a perspectiva espiritual, poderíamos entender que 'o homem é a mente', mas aí entraríamos em definições circulares movendo a definição 'homem' para baixo e para cima, dispendendo esforço racional e conceitual desnecessário só para justificar a tese de que o homem é essencialmente caído, posição que legitima a tal da doutrina da queda, e que demanda 'remédios' estranhos à concepção védica.

O ponto de vista superior e mais legítimo para a contemplação e compreensão verdadeira, segundo nos instrui a autoridade ancestral, é a de que o homem é essencialmente o Âtman, e é pela compreensão do Âtman que se atinge o fim último do homem.

Tuesday, March 6, 2018

Os nyâya-vaisheshika e as categorias do real (Parte II)

Na postagem anterior apresentamos os conceitos gerais para começar a entender o arcabouço teórico dos nyâya-vaisheshika. Aqui vamos tentar aprofundá-los um pouco.


Bhâvatva-Astitva-Sattâ

Os três aspectos do real, por assim dizer são: astitva, bhâvatva e sattâ, que traduziremos como 'ser', 'realidade' e 'existência. Daí temos três planos ontológicos:


1. Astitva: todos os entes têm alguma realidade ou astitva, exceto os impossíveis e absurdos.
2. Bhâvâtva: todos os entes têm esseidade ou bhâvatva, exceto os que são 'abhâva'.
3. Sattâ: Todos os entes têm existência ou sattâ, exceto os que são abhâva e os que são svâtmasattva.

Os nyâya-vaisheshika não admitem agnosticismo, fenomenologismo, idealismo ou subjetivismo dentro de seu escopo teórico, portanto, a tudo que é atribuído astitva, também se atribui jñeyatva e abhidheyatva. 

A astitva de algo não é um gênero ou classe que tornam as coisas comuns entre si, e nem tem existência separada, mas é o que faz com que as coisas sejam realidades últimas em si mesmas. Se parece que as reúne ou que exista separado, é somente por acomodação gramatical; cada astitva é a coisa mesma em sua peculiaridade e singularidade intransferível.

O mesmo não se dá com sattâ, que é o chamado parasamânya, gênero supremo, a síntese última. Não sendo portanto responsável por distinção existencial alguma, inclui todas as coisas, e existe separadamente de forma eterna, tendo sua própria astitva. 

Os nyâyas-vaisheshikas, diferindo do pensamento normal dos ocidentais, acreditam que é possível atribuir realidade e até particularidade ao não-ser, portanto, como foi notado acima, abhâva é titular também de astitva, e distintas não-existências podem dar origem a distintas cognições positivas, perfeitamente funcionais, inclusive.

O bhavâtva é, no geral, qualquer positividade em relação a sattâ, ao passo que abhâvatva é um negatividade em relação à sattâ. Os entes com svâtmasattva são indiretamente positivas em relação a sattâ e portanto, são também bhavâsvarûpa (têm um corpo de bhâva, tem bhâvatva, ou não têm abhâvatva).

Jâti ou samânya

1. O chamado jâti ou samânya é a realidade percebida como unidade, percebida como necessária em toda experiência, e que é a causa da concepção idêntica que subsiste em dois ou mais particulares numericamente distintos. O jâti é eterno, é comum a particulares, e está nos particulares a título de inerência (samavâya).

2. Diz-se que o jâti é eterno, pois se não o fosse ele seria idêntico a uma qualidade adventícia, que entre os nyâyas é chamada de upadhi.

3. Diz-se que o jâti é comum, o que o exclui, por exemplo, de entes singulares que não tem outros em sua classe, como o akasha. Ora, a espacialidade do espaço não é um jâti pois não se diz que há dois espaços individuais, a não ser figurativamente ou como atributo indireto.

4. Diz-se que o jâti é inerente porque a sua relação com os particulares não é de identidade, nem de diferença, ele está em vários, e ainda assim permanece separado.

5. O jâti pode ser objeto de percepção ou não, contudo, quando é, ele só é percebido por meio do particular, e nunca como separado. Contudo o jâti inere também e realidades não perceptíveis como o átomo, a mente, o âtmâ etc.

6. O jâti é radicalmente diferente do particular, ainda que o particular possa ser semelhante a outro particular por meio do jâti.

7. O jâti gera causalidade, ou seja, se a causalidade ocorresse entre dois particulares, sempre teríamos um efeito particular e não haveria nenhuma ciência possível. Nem mesmo a expectativa de que uma vaca tivesse bezerros ou tivesse leite, e uma vaca poderia causar efeitos de cavalo. A experiência comum indica que a causalidade implica o jâti, pois diferentes jâtis produzem diferentes efeitos.

8. O jâti não é gênero ou espécie no sentido lógico, pois o gênero ou espécie não tem necessariamente causalidade observável. O jâti está presente, na forma de atributo ou propriedade 'de nascimento' da coisa, ao passo que gêneros e espécies são obtidas posteriormente, observando-se as coisas que tenham o mesmo jâti e reunindo-as em uma classe.

9. Nem toda propriedade é jâti, mas somente aquelas de 'nascimento', as demais propriedades são chamadas de upadhi-s, e há 6 índices de que algo é um upadhi e não um jâti:
a) Se for inerente em uma única realidade não é jâti, por exemplo, a espacialidade do espaço.
b) Dois jâtis que são distintos em nome mas têm mesmo significado são apenas um jâti e não dois.
c) Ou o jâti é inerente a todos o particulares ou a nenhum. No caso de características como 'murtatva' (magnitude física) e 'bhûtatva' (elementaridade física), há inerencia em alguns casos e em outros não, por exemplo, akasha tem bhutatva, junto com os outros  4 elementos, mas não tem murtatva; de forma que murtatva não serve como jâti dos 5 bhûtas.
d) Não pode haver um jâti que leve ao regresso infinito, por exemplo, jâtitva não pode ser um jâti, mas é um upadhi do jâti.
e) As particularidades últimas não podem ser jâti, o que seria contraditório com sua natureza mesma. Se a particularidade fosse um jâti presente em todo particular, então a diferença mútua seria eliminada.
Vishesha

Poderíamos dizer que o vishesha absoluto é astitva, e o jâti absoluto é sattâ. Contudo, em todos os outros casos intermediários, algo pode ser tanto Vishesha como Samânya, a depender do ponto de vista. Por exemplo, dravyatva é um samânya, pois inclui vários particulares, tornando-os comuns. Contudo, da mesma forma é um vishesha, na medida em que diferencia esse grupo de particulares de outros grupos. As observações sobre jâti valem portanto para o vishesha.

Samavâya

A conjunção de coisas da mesma categoria, por exemplo, duas dravya-s, se dá por pela chamada conjunção (samyoga). A diferença entre a conjunção e a inerência (samavâya), é que a inerência não pode ser desfeita, é uma relação ou propriedade desde a eternidade.  Por exemplo, a relação entre parte e todo, atributo e objeto, ação e substrato,  jâti e vyakti (membro da jâti), visheshas e dravya-s eternas etc.

Abhâva

É importante não deixar de mencionar a categoria de não-ser, cuja posição é também motivo de polêmica entre nyâyas e vaisheshikas, mas que é importante. O não-ser é dividido em 4 categorias:

1. Prâgabhâva: não-ser antecedente, ou seja, aquela não-existência que não tem começo, mas que tem um fim, dando lugar a um existente.
2. Pradhvamsâbhâva: não-ser subsequente, que é aquele que tem um começo, mas sucedendo uma anterior existência.
3. Atyânthabhâva: não-ser perpétuo, nunca existiu, nem vai existir. Alguns traduzem como não-existência absoluta, mas eu acho a tradução inadequada, pois podem confundi-la com o nada absoluto, quando na verdade essa categoria é a anti-substância, anti-qualidade, etc.
4. Anoyonyâbhâva: não-ser recíproco, é a negação mútua de identidade entre duas coisas.

E esses são os conceitos mais básicos para a compreensão dos prameyas (objetos de conhecimento) segundo os sábios dos pontos de vista nyâya e vaisheshika, que seguem a autoridade do Veda.

Monday, March 5, 2018

Os nyâya-vaisheshika e as categorias do real (parte I)

Ainda sobre os lógicos/epistemologistas e os cosmologistas hindus, vale a pena sair um pouco do nosso tom costumeiro e dar aqui uma modesta introdução sobre o arcabouço conceitual, de modo mais protocolar, até para futura referência. Faço-o propositalmente ignorando problemas ou até discordâncias menores entre os dois pontos de vista e os respectivos autores, enfatizando só os pontos em comum.

As categorias usadas pelos hindus são todas articuladas entre si, e fica difícil abordar uma delas sem dar ao menos uma explicação básica de todas. Essas categorias servirão de base, ou poderão ser aproveitadas, para outras discussões, até mesmo para entender as contendas dialéticas entre hindus, que as discutem entre si e com os jainas, budistas e materialistas.

É notável também que os nyaya-s e vaisheshikas não começam sua instrução ou exposição por meio da apresentação dessas categorias abstratas, mas adapto aqui ao nosso blog e ao público, para facilitar a aproximação e tornar mais interessante o assunto.

1. A realidade (vastu) tem duas divisões: bhâva e abhâva, o que poderia ser entendido, sem muito prejuízo, como semelhante aos conceitos de Ser e de 'não-ser relativo' nas filosofias ocidentais. O Não-Ser absoluto, que é a impossibilidade, seria 'avastu', e nos shastras hindus eles adoram falar que essa é a categoria dos 'filhos da mulher infértil' ou dos 'chifres do coelho'.

2. Há dois modos pelo qual se pode pertencer a 'bhâva' -- sattâ-samavayin, e svâtmasattva. No primeiro caso participa-se do bhâva diretamente por meio da inerência no gênero supremo sattâ (existência), no segundo caso, indiretamente, por uma subsistência autônoma (mas também existente). Os dois casos são alvos de muito debate, mas deve-se apontar que a subsistência do seguindo caso não é exatamente 'sattâ',  tampouco é inexistência ou não-ser relativo (abhâva), então mereceria atenção especial. É bom dizer aqui também que os lógicos hindus acreditam e usam a não-existência de forma muito hábil e frequente em suas relações com a existência, tanto no campo lógico como epistemológico.

3. A tríade realista dos 'prameyas' (objetos de conhecimento) é a seguinte: todas as categorias tem 'astitva', que seria a vishesha (individualidade) última, exceto o avastu, de forma que poderíamos já traduzir astitva provisoriamente como realidade, os prameyas tem não só astitva, mas também jñeyatva (cognoscibilidade) e abhideyatva (são objetos de nome), é bom frisar.

4. Há três entes, possuidores de astitva e que são bhâva por sattâ-samavâyin: dravya, guna e karman, que poderiam ser traduzidos como substãncia, atributo e ação respectivamente. E há três entes que são bhâva indiretamente e tem subsistência própria como astitva, contudo não tem 'sattâ', eles são: samânya, vishesa e samavãya, que poderiam ser traduzidos por universal, particular, e inerente respectivamente.

Os entes desse segundo caso, nunca são percebidos em si mesmos, e não podem aplicar-se mutuamente uns aos outros, o que resultaria em regresso infinito: eles tem bhâva indireto, se dão na cognição através de suas relações com drayva-guna-karman.

Vamos dar um exemplo: o cachorro, apreendido como unidade, segundo sattâ, é um dravya, é constituído por um gênero, dado pelo seu nome, e propriedades, gunas e karman-s. Sua universalidade é seu 'samânya', a sua individualidade é dada pelo seu vishesha,  e as relações entre o cachorro enquanto astitva, sua individualidade e sua generalidade são dadas por samavâya ou inerência.

5.  Recapitulando: todas essas categorias são prameyas, que por sua vez são astitva, e que por sua vez são nomeáveis (abhideyatva) e cognoscíveis (jñeyatva). Entres os vaisheshika os prameyas constituem basicamente a totalidade de seu campo de investigação, ao passo que os nyaya-s lançam seu olhar mais sobre outros aspectos, chamados de pramana-s (meios de conhecimento).

O 'pramatâ' (conhecedor) é entendido como o Âtman também pelos nyâya-vaisheshika, e é o perfeito conhecimento desse que leva ao apavarga (libertação). Contudo, para eles o Âtman é uma 'dravya' que existe por inerência de 'sattâ'; em outras darshanas o pramatâ ganha uma importância diferenciada, recebendo seus fundamentos a partir de Cit (samkhya, yoga, âgamas) e/ou Ânanda (vedânta-s, âgamas).

Em alguma outra  postagem futura, talvez não imediatamente posterior a essa, vou falar um pouco sobre as categorias svâtmasattva, suas complexidades, sua natureza.



Saturday, March 3, 2018

O Âtman segundo lógicos e cosmologistas hindus

Kanada Rshi
O objeto de investigação de todos os pontos de vista hindus tradicionais é o Âtman, como foi explicado em postagem anterior. O Âtman, sendo o sujeito intimíssimo, é compreendido tanto por intuição direta, como por autoridade do Veda. 

Contudo, há pessoas, que, magnetizadas pelo poder dos sentidos ou por raciocínios errados, duvidam que haja o Âtman, ou atribuem a natureza de Âtman àquilo que é não-Âtman. Isso justifica que o tema seja não só objeto de intuição direta ou de autoridade dos rishis, mas também de argumentos e análise. É aí que entram os pontos de vista dos lógicos hindus, que tentam, a partir de meios de conhecimento acessíveis a qualquer pessoa, oferecer argumentos que apaziguem a dúvida, uma vez os lógicos lidam com a dúvida e resolução da dúvida, o que distingue sua ciência do  Âtmâ-vidya do Veda, que não é objeto de dúvida ou prova racional, mas de intuição transcendental, ou da ciência dos yogues que usa estados de consciência especiais. 

Esse conhecimento é chamado de Ânvîkshikî, ciência ou 'vidyâ' da investigação racional. E ele procede por uma série de passos dialéticos e lógicos, e de técnicas de demonstração e refutação especializada que não cabe abordar aqui nessa postagem.

Para dar um exemplo de como isso é pensado, tomemos um raciocínio simples (os lógicos procuram sempre se manter perto do senso comum) -- ao dizer 'eu estou feliz' ou 'eu sei', esse "eu" se refere ao Âtman segundo intuição direta interna. Mas isso pode também validado por exclusão, pois 'eu estou feliz' não pode ser objeto de experiência de nenhum dos 5 sentidos. Se 'eu estou feliz' se referisse ao corpo, a felicidade seria um objeto de percepção como um vaso de barro, ou uma pintura, ou corresponderia absolutamente a gestos corporais ou a alterações que possam ser objeto de algum dos cinco sentidos. Se fosse assim, todas as experiências internas estariam disponíveis para a intuição sensível de terceiros exatamente segundo o mesmo método de conhecimento que o sujeito utiliza para intuir a si mesmo.

Há vários outros raciocínios, por exemplo: observa-se que ao tocar um vaso de barro, e ao ver o vaso de barro, o sujeito usa dois sentidos e percebe um único objeto (como se fosse um sujeito dentro de uma casa com várias janelas). Se não houvesse uma unidade entre os 5 sentidos, cada sentido seria um Âtman, e não haveria percepção alguma da unidade do objeto mesmo, de maneira que seriam dois vasos, e dois sujeitos.

Mas qual é a definição do Âtman afinal? Os lógicos dizem que o Âtman (que dentro de seu ponto de vista se refere sempre ao jivâtman), é uma substância, ou seja, não tem outra coisa como seu substrato, e é assim substrato último de qualidades e ações, de conjunções e disjunções com outras substâncias. É eterno, é do tamanho do espaço, é o substrato da consciência psicológica por sua conjunção temporal com a mente e os sentidos corporais. O jivâtman é suporte também de qualidades como desejo, repulsa, dharma, adharma, impressões (samskaras), número, dimensão, etc.

O jivâtman é substrato da cognição. Como a cognição tem diversas formas, ela pode ser dividida em duas categorias principais -- vidyâ (ciência) e avidyâ (nesciência). A conjunção dos sentidos com os respectivos objetos é indeterminada (nirvikalpa), quando os sentidos entram em conjunção com a mente, que está, por sua vez, em conjunção com o jivâtman, e tendo o objeto como magnitude,  temos  atribuição de universalidade, particularidade, e inerência através da associação do nome, e dá-se a cognição determinada (savikalpa). Se não houvesse conjunção com o jivâtman, a cognição seria totalmente inconsciência, como a fricção de dois vasos de barro.

Diz-se que o jivâtman é do tamanho do espaço, pois de outra forma ele teria que se mover constantemente no tempo e espaço para possibilitar a cognição, o que é característica da mente. Da mesma forma, diz-se que é eterno, pois se não o fosse, seria impossível a conjunção com o movimento da mente, que é temporal. Todas as coisas de magnitude intermediária (nem atômica, nem onipresente) são produzidas e tem partes, portanto, se o jivâtman fosse produzido, ele teria partes, e seu contato com a mente e com o corpo se daria em alguma de suas partes apenas, dividindo-o e tornando impossível a unidade de apercepção. E por fim, é também distinto substancialmente e é 'contemporâneo' ao tempo (kâla), de forma que não entra em conjunção com o a tríade temporal do passado, presente e futuro (trikâla).

Como os cosmologistas e lógicos hindus entendem que a consciência é a conjunção do jivâtman com a mente e os objetos dos sentidos, e como eles investigam somente o aspecto de 'sat', ou seja, tentam provar a existência do jivâtman, eles não incluem em sua investigação o aspecto de Cit e Ânanda, e portanto, para eles a libertação espiritual, distinguindo-se da consciência psicológica, que é a única consciência que está dentro do campo de investigação desse ponto de vista, faz concluir o jivâtman é 'jada', ou seja, substrato da consciência, porém inconsciente (ainda que eles digam que essa inconsciência se distingue tanto da potencialidade da noite cósmica, como da inconsciência própria aos objetos dos sentidos).

O conhecimento das distinções entre o jivâtman (enquanto prameya, objeto de conhecimento), corpo, órgãos dos sentidos, objetos dos sentidos, intelecto, mente, intenção, defeitos mentais, renascimento, fruto das ações e dor levam à discriminação entre Âtman e Não-Âtman, e elimina a ignorância; eliminando-se a ignorância os defeitos mentais são eliminados; eliminando-se os defeitos mentais, a ação com motivação incorreta é eliminada; com isso elimina-se a causa dos sucessivos renascimentos, e por fim elimina-se a dor de forma definitiva, e atinge-se o bem absoluto proposto por esse ponto de vista.

Para os lógicos e cosmologistas hindus, os jivâtman-s são distintos qualitativamente segundo os dharmâdharma (méritos e demérito das ações passadas). Há opiniões minoritárias que dizem que, na libertação, essas diferenças são apagadas, e todos os jivâtman-se tornam apenas um Âtman, mas quase todos os lógicos rejeitam essa possibilidade, que leva a consequências lógicas absurdas, e dizem que o jivâtman mantém eternamente sua conjunção com a mente, mesmo após a libertação, e que essa mente lhe serve de 'vishesha' ou princípio individuante, de forma que se mantém a pluralidade de jivâtman-s.

Resta ainda dizer que, para esse ponto de vista, Deus é o Âtman supremo (paramâtmân), substancialmente e qualitativamente distinto dos infinitos jivâtman-s. No que diz respeito à religiosidade, tanto os vaisheshikas (cosmologistas) como os nyâyas (lógicos e epistemologistas) costumam ser shaivas, em oposição aos samkhyas, que em geral são vaishnavas. O supremo para eles é Îshvâra, senhor da manifestação, preservação e destruição, e controlador das leis invisíveis do karma,  distribuindo-o a cada ciclo universal de acordo com o mérito ou destino invisível (adrishta), e que, por ser absolutamente espiritual, é eternamente distinto dos 5 elementos, nunca se tornando causa material do universo.