Monday, November 4, 2013

O matador do demônio Madhu e a Shakti

Na última postagem, eu falei um pouco sobre as três gunas, mas hoje vou compartilhar com os leitores aqui do blog um episódio interessante da mitologia hindu que eu tive a oportunidade de ler no Devī Bhāgavatapurāṇa e que tem uma relação interessante com o tema das três gunas. Às vezes uma narrativa vale mais que mil conceitos.

Basicamente a nossa história tem cinco personagens, Vishnu que é conhecido como o preservador do Dharma; Brahma, o criador do Universo; dois "asuras" ou "demônios", Madhu e Kaitaba e a Adi-Shakti, a grande Mãe, ou suprema energia feminina. O cenário onde ocorre a história  é a "pralaya", o intervalo entre dois ciclos cósmicos quando tudo está preenchido pelas águas.

Vishnu está deitado em sua cama de cobras em sono profundo durante a pralaya. Da cera de seus ouvidos nasceram, como sói nascer de modo estranho e imprevisto nas mitologias, dois demônios: Madhu e Kaitaba. Depois de nascidos, esses demônios perambulavam sem rumo pelas águas e sem entender muito bem sua própria condição. Ainda assim foram crescendo e se fortalecendo sozinhos no meio da indistinção primordial. Surgiu-lhes, no entanto, a curiosidade natural sobre quem eles realmente eram, de onde tinham vindo e o que estavam fazendo no meio daquelas águas sozinhos. Essa curiosidade se transformou em fervor e concentração, e seu foco se tornou uma espécie de ascetismo. Com a mente concentrada eles perceberam que eles eram na verdade uma criação da Adi-Shakti, a suprema energia. Na medida em que realizaram isso, eles ouviram ressoar no meio das águas o bija-mantra, o som primordial, e ao ouvir o mantra, começaram a recitá-lo com diligência, incansavelmente e por milênios. 

O seu esforço e diligência na prática do mantra atraiu a atenção da própria Adi-Shakti, que, impressionada com sua determinação, apareceu-lhes e concedeu-lhes um pedido. Os demônios pediram a imortalidade, mas a Shakti negou, dizendo que era um dom muito alto, de maneira que eles teriam que escolher algo inferior. Os demônios então falaram que, se tivessem de morrer algum dia, que sua morte lhes viesse por sua própria escolha, ou seja, no momento em que eles mesmo deliberassem. A Shakti então lhes concedeu esse pedido e desapareceu.

Imediatamente os demônios se encheram de orgulho e começaram a vagar pelas águas, até chegarem onde Vishnu estava adormecido. Ao chegarem perto, avistaram que do umbigo de Vishnu se erguia um fio sustentanto uma flor de lótus e, sentado na flor de lótus, estava Brahma de quatro cabeças. Sabendo-se de certa forma imortais, e tomados de orgulho, os demônios esbravejaram contra Brahma, e exigiram que ele se submetesse, e que lhes concedesse seu lugar, sob a pena de destruí-lo.

Brahma, vendo que seus adversários furiosos lhe eram superiores em força, e conhecedor dos artha-shastras (livros sobre guerra e política) tentou usar as quatro estratégias clássicas: tentou primeiramente persuadí-los, ao que os demônios se mostraram resistentes, pois não queriam ouvir ou discutir nada e, ao contrário, se tornavam cada vez mais agressivos diante das palavras; Brahma tentou oferecer-lhe riquezas, em vão, pois eles já haviam recebido o que queriam através da Adi-Shakti; tentou causar divisão entre os dois, mas foi em vão.  Por fim, reconheceu que era preciso confrontá-los diretamente. No entanto, como ele já havia notado, ele mesmo não tinha condições de fazê-lo, e única alternativa seria acordar Vishnu, que tinha o poder suficiente para aniquilar os dois demônios. 

Tentou de todas as formas acordar Vishnu, mas o seu sono permanecia imperturbável. Ocorreu a Brahma, em meditação, que Vishnu estivesse sob o efeito de algum entorpecimento mágico, e que ele deveria estar sob influência da Shakti. A única saída que restava, diante da crescente fúria dos dois demônios, era invocar a própria Shakti para que ela despertasse Vishnu. Eis então um trecho da prece de Brahma à Shakti em minha tradução:

"Dizem os sábios do Samkhya que o Purusha é o ser puro, consciente, e que Tu és a Prakriti, sem nenhuma consciência, inerte, criadora do universo; mas, Ó Mãe! será que Tu és realmente inerte como dizem esses filósofos? Nunca! se fosse assim, como é que Tu fizeste o Senhor Vishnu, o receptáculo do mundo, ficar assim inconsciente? Ó Bhavani! Tu, que estás além das gunas, projeta numa atuação dramática essas várias peças pela conjunção das três gunas. São suas três qualidades, Sattva, Rajas and Tamas, aquelas nas quais os munis meditam todos os dias de manhã, ao meio dia e à noite [...]"

A Deusa manifesta seu poder sob a invocação de Brahma e eis que desperta Vishnu que, informado por Brahma sobre o ocorrido, inicia contra os demônios uma luta épica que duraria cinco mil anos dos deuses. Vishnu fica atônito pelo fato de que nada do que ele tentava atingia os demônios e ele não conseguia lhes causar dano algum. Ao contrário, se cansava cada vez mais, correndo o risco de perder a luta. Sob a alegação de que eles eram dois demônios e alternavam entre si, fazendo a luta ficar injusta, Vishnu pede um intervalo. No intervalo, pelos seus poderes transcendentais, Vishnu percebe que os dois demônios haviam recebido algum benefício da Shakti, contra a qual ele nada podia. Daí, o próprio Hari (outro nome de Vishnu) invoca a presença da Deusa, que se manifesta pela terceira vez em nossa história. 

A Deusa se manifesta em forma tão esplendorosa e linda que os demônios ficam encantados e intoxicados tentando impressioná-la para ganhar-lhe a simpatia. Vishnu, percebendo-lhes o orgulho e a intoxicação, oferece-lhes um pedido dizendo: "vejo que sois valorosos lutadores como nunca vi antes, concedo-vos portanto um pedido". Os dois demônios querendo impressionar a Shakti mostrando seu valor e superioridade, respondem que, do contrário, eles é que estão em condições de conceder um pedido a Hari. Prontamente aceitando a proposta, Vishnu pede que os dois demônios se entregem à morte em suas mãos.

Os demônios concedem, porém, caindo em si logo depois, eles apelam para o fato de que Vishnu lhes havia oferecido um pedido primeiro, e que é obrigação que esse pedido também lhes seja concedido. O pedido dos demônios é que, se eles forem mortos por Vishnu, que eles fossem sacrificados em solo firme acima das águas.  Diante da concessão dos pedidos, se inicia uma nova batalha quando Vishnu se ergue subitamente acima das água e oferece seu colo como solo firme para que os demônios sejam sacrificados, ao que os demônios reagem crescendo milhares de vezes mais que Vishnu e tornando impossível tal coisa. Alternando-se nesses gestos, tanto Vishnu como os demônios vão crescendo acima das águas por muitos milhares de anos, até que os demônios por fim admitem derrota e escolhem ser sacrificados no solo firme do colo de Vishnu. E foi assim que Vishnu ficou conhecido como Madhusūdana, o matador do demônio Madhu.

A lição maior dessa história, no entanto, segundo eu vejo, é com certeza a compreensão da energia feminina (Shakti) e a relação dela com as três, como observa o próprio Vishnu:

"[...] É pela vontade dela que eu assumo a forma de uma Tartaruga, de Javali, do Homem-Leão e do Anão. Ninguém deseja nascer no útero de animais inferiores (especialmente pássaros). Vocês acham que Eu (Vishnu), por minha própria vontade, nasceria como avatar no útero de javalis ou tartarugas? certamente não. Quem é que, sendo independente, abandonaria o desfrute prazeroso da companhia da Laxmi para nascer em animais inferiores como peixes, ou quem é que deixaria seu trono e se envolveeria em grandes conflitos ou guerras?  Ó Swayambhu [...] Portanto, eu não sou independente, eu estou sob a influência da Shakti sob todos os aspectos, eu sempre medito naquela Shakti, e eu não conheço nada além dessa Shakti!" 

Isso renderia muita análise simbólica certamente, e dá-nos, por exemplo, uma lição concreta no nível do simbolismo comparado, como já observava René Guénon no seu livro a Grande Tríade, sobre a diferença entre a trindade hindu (Vishnu, Brahma, Shiva) que é saguna e a trindade cristã que é nirguna e corresponderia, no simbolismo hindu, a outro plano.