Tuesday, July 29, 2014

Ensaios sobre o Individualismo

Essais sur l'individualisme -- une perspective anthropologique sur l'ideologie moderne

Partindo do chamado "universal antropológico" para comparar distintas civilizações, Louis Dumont, discípulo do famoso antropológo Marcel Mauss, traz alguns ensaios sobre a ideologia moderna chamada individualismo, traçando sua gênese religiosa e política . Os dois primeiros ensaios (Gênese 1 e 2) são os mais substanciais, ao passo que os restantes são aplicações mais ou menos contingentes dos princípios e das oposições apresentadas. Nos últimos ensaios há reflexões de interesse mais específico  para as áreas antropológica e sociológica, como é o caso das reflexões sobre a obra e a biografia intelectual de Marcel Mauss, e a importância desse autor para o desenvolvimento e a compreensão das ciências sociais.

Antes de descrever o que o autor entende por "individualismo" é preciso compreender que o "indivíduo" ou o "homem individual", pode tanto ser tanto entendido como o indivíduo empírico, fenômeno universal, como o indivíduo enquanto "ente moral", ou seja, como unidade independente, autônoma e essencialmente "não-social". Esse segundo caso é predominante especialmente no que o autor chama de "ideologia moderna" que é objeto de estudo da obra. O individualismo é, portanto, a estrutura ou a interface social e ideológica que privilegia, valoriza  ou possibilita o surgimento do indivíduo como entidade autônoma de consciência moral (É claro que eventualmente suas possibilidades de ação concreta será obstaculizada juridicamente ou politicamente).

O individualismo existe em oposição ao "holismo", assim como as sociedades modernas, não hierárquicas, existem em oposição às sociedades tradicionais, hierárquicas. O autor chega a essa conclusão através de seu estudo sobre o sistema de castas e o sistema de estágios da vida, característicos da sociedade tradicional hindu. Em sociedades tradicionais, a presença do indivíduo como unidade de consciência moral se articulava com a hierarquia, de maneira que, no momento em que o indivíduo atingia uma "verticalidade" moral, ou seja, que se concebia como indivíduo a partir de autonomia metafísica (e não social), ele estava concretamente no topo da sociedade, e portanto, de certa forma, fora da sociedade em termos de possibilidade de ação política, dando origem a uma hierarquia de valor e não de poder. Tínhamos assim, a casta dos brâmanes, que detinha a autoridade espiritual porém nenhuma autoridade temporal, e também a função do "sannyasa" que é o indivíduo real, autônomo, porém essencialmente um "indivíduo-fora-da-sociedade"; essa articulação entre o surgimento do indivíduo e sua colocação "fora da sociedade" caracterizava, portanto, o que o autor chama de "holismo":  uma dinâmica entre poder e hierarquia  favorecia a existência e harmonia da sociedade sem impedir a existência do indivíduo autônomo.

Dumont traça a surgimento dessa perspectiva, a mudança do holismo para o individualismo no Ocidente, dentre certas soluções apresentadas para a tensão natural (da revelação cristã) entre "César" e "Deus". Essa tensão é resolvida através de diferentes configurações ideológicas e políticas ao longo do tempo, contudo, o fato é que, já em Agostinho, pode-se ver uma inversão das relações holísticas, em que o indivíduo, que no cristianismo retira sua legitimidade existencial apenas a partir da reflexão interior, começa a penetrar na sociedade e tornar-se um indivíduo-dentro-da-sociedade. O autor traça como essa tendência de infiltração do indivíduo dentro das estruturas políticas e religiosas teve implicações históricas profundas, levando à confusão entre os domínios da autoridade espiritual e temporal, chegando por fim criar estruturas sociais "absolutizadas" dentro do temporal, o que teria sua coroação definitiva na ideologia calvinista. 

As reflexões deixadas pelo autor são férteis para pensar a modernidade e em muitos pontos vão ao encontro de outras oposições conceituais caras aos tradicionalistas, o que lhe rendeu críticas e muitas vezes a percha de conservadorismo. A concepções de Dumont também são importantes para a reflexão sobre a questão da articulação entre o conhecimento superior e as massas, tema presente na República de Platão. Poderíamos apenas observar criticamente que, pelo menos nesses ensaios, seus pontos de vista carecem de complexidade e de problematização mais concreta. Ainda assim o autor dá conta de manter suas "oposições metodológicas"  ao longo dos ensaios contraponda-as a certos fatos concretos e históricos e servindo-se delas de forma muito interessante para explicar e elucidar muitos aspectos da modernidade incorporados em conceitos como igualdade, propriedade, contrato social e soberania política. Nota-se no entanto, curiosamente,  uma especial simpatia do autor pelos ideais românticos do século XIX e especialmente pelo socialismo utópico no que diz respeito às possibilidades "holísticas" ali contidas.  É um bom livro e fica a recomendação.


Thursday, March 20, 2014

O argumento "ontológico" desde um ponto de vista vedântico

Algumas reflexões sobre o possível uso da estrutura do "argumento ontológico" desde um ponto de vista vedântico não-dual:

1) A dificuldade que as pessoas em geral têm na compreensão do chamado "argumento ontológico" em qualquer uma das suas modalidades se dá, segundo eu entendo, pela perda da noção do infinito metafísico. 

2) Ora, o infinito metafísico, como explica René Guénon, não pode implicar nenhuma contradição ou limitação. Qualquer limitação (seja em quantidade ou qualidade), por outro lado, implica dialeticamente sua superação, e por conseguinte, o infinito.

3) A contemplação do infinito por parte da mente é necessariamente uma limitação do infinito, ainda que, como explicam os vedânticos, seja, na verdade, um sobreposição insondável de falsidade. O infinito é simultaneamente dentro e fora da mente, de outra forma não seria Infinito.

4) A contemplação de objetos, no que diz respeito ao mundo dos sentidos e à experiência de vigília , é feita através da alternância possível entre a captação interna (ato interno de conhecimento) e a realidade dada externamente (mundo dos fatos), de maneira que é possível, em dois momentos diferentes, captar um conceito internamente e logo em seguida verificar se esse objeto tem correspondência com a realidade.

5) Isso não se dá no caso do Infinito uma vez que não é possível sair do Infinito para verificá-lo; o que ocorre é que o conceito mental do infinito é simultaneamente verdadeiro e falso. Ele é verdadeiro intencionalmente porque capta corretamente seu objeto ainda que de forma negativa; e ele é falso materialmente, pois ele cria, através da sua veiculação por meio de instrumento psicológico subjetivo, uma limitação no infinito como se fosse possível contemplá-lo externamente. A natureza dessa "falsidade" é o que se chama de "avidya" entre os vedantinos, e a contemplação verdadeira do infinito seria, de maneira inexpressável (anirvacaniya), o término do infinito enquanto objeto mental e enquanto objeto separado de um sujeito individual.

6) O intelecto, ao contemplar o conceito de infinito corretamente, só pode "transformar-se" no próprio infinito. Daí que esse argumento é simultaneamente útil e inútil, pois ele requer que se vá além da mente para que seja compreendido corretamente, e quando se vai além da mente não há necessidade de compreendê-lo.

7) O uso que faço aqui do infinito metafísico, de certa forma, tem uma natureza "supra-ontológica", de maneira que não precisa nem mesmo do uso do "Ser", fugindo das objeções que lhe são direcionadas nesse plano. O limite, uma vez dado em qualquer plano concebível (qualitativo ou quantitativo), já seria suficiente para validar o raciocínio acima.