Sunday, November 24, 2013

Sobre os Kâma Shastras

O tratamento dado ao sexo por parte de textos hindus desperta especial curiosidade nos ocidentais. Alguns confundem essa abordagem com a tradição tântrica, ou com coisas como "sexo tântrico", matérias completamente inventadas no contexto das "terapias alternativas" ocidentais ou coisas do gênero.

Eu decidi fazer essa postagem para explicar em termos gerais como o tema deve ser entendido dentro de um contexto maior. A alguns parecerá estranho que tal tema seja tratado de maneira metódica, pois dentro das esferas intelectuais ocidentais há poucos precedentes (talvez algumas obras como "A arte de amar" de Ovídio), no entanto, seria impensável que um monge católico, por exemplo, compusesse coletâneas de técnicas de artes sensuais como é o caso do Kâma Sutra, composto por um monge vedântico. Portanto, a sexualidade nas civilizações ocidentais, com exceção talvez da muçulmana [1], é tratada como tema da pornografia ou literatura marginal.

Dentro do Sanatana Dharma, os tratados tradicionais sobre assuntos técnicos são denominados em geral como "shastras", cuja tradução poderia ser simplesmente "tratado" ou "compêndio". Assim, como os leitores do blog já tiveram acesso à distinção das quatro metas de vida, podemos simplesmente dizer que temos os Dharma Shastras, onde encontramos o famoso Manu Smriti, temos os Artha Shastras, e temos os Kâma Shastras, cada um sendo constituído de um conjunto de obras que lidam com os aspectos técnicos delimitados pelo seu escopo.

O ideal da vida humana, concebida teoricamente como tendo 100 anos, é que o indivíduo consiga equilibrar a prática das quatro metas da vida sequencialmente (dentro dos 4 ashramas, tratados em postagem anterior) de forma a harmonizá-las e evitar conflitos. Portanto a concepção de vida segundo o Dharma nunca é uma concepção parcial ou deformada, ainda que em algum momento tenha havido maior ênfase em um dos purusharthas, não se pode falar que há um conflito de base entre eles, mas sim uma hierarquia, sendo o Dharma superior a Kâma, e Kâma superior ao Artha (que é um bem instrumental).

O termo "Kâma" é compreendido como: 
"O usufruto de objetos apropriados pelos cinco sentidos -- audição, tato, visão, paladar, e olfato -- assistido pelo uso da mente, juntamente com a alma. O ingrediente nisso é um contato peculiar entre o orgão do sentido e seu objeto, e a consciência de prazer que decorre desse contato"
Os Kâma Shastras, segundo a narrativa mitologica, surgiram a partir do touro guardião de Shiva, Nandi, que teria escutado os intercursos amorosos entre seu amo Shiva e Parvati e ficou inspirado a escrever sobre a sexualidade. Têm como obra mais famosa, ainda que não seja a obra definitiva, havendo muitas outras, o tratado chamado Kâma Sutra, que é uma compilação feita pelo religioso brâmane Vatsyayana de trabalhos e opiniões de diversos autores anteriores.

O Kâma Sutra ao contrário do que se pensa não é dedicado exclusivamente à sexualidade, ainda que sua maior porção o seja de fato, e não é uma obra espiritual, nem de magia, ainda que haja pequenas alusões à magia e encantos de natureza sexual, que são tratadas em outras obras com mais profundidade. É um tratado técnico que se focaliza na obtenção do prazer sensual desde que ele não entre em conflito com o Dharma e com Artha.  Alguns comentaristas do Kâma Sutra dão exemplos e ilustrações de possibilidades de Kâma que contrariam o Artha e Dharma, porém isso é sempre observado tendo como ótica o confronto dessas práticas com a tradição de shastras e comentaristas, e dentro de uma análise técnica das práticas correntes e gerais, independentemente da origem e da licitude. 

A primeira objeção que surgiria por parte de alguns (e os comentadores do Kâma Sutra adiantam a resposta) é que a sensualidade, sendo um aspecto do homem que é compartilhado com os animais, não precisaria ser tratado nos Shastras, ou que não haveria necessidade de qualquer estudo sério de um tema que é mera extensão do exercício dos apetites. Ao que o comentarista do Kâma Sutra responde:
"O intercurso sexual sendo algo dependente do homem e da mulher requer a aplicação de meios apropriados, e esses meios são aprendidos pelo Kâma Shastra. A não aplicação dos meios apropriados, como vemos entre animais e seres brutos, é resultante do fato de os animais serem desenfreados, e pelo fato de as fêmeas serem adequadas para o intercurso sexual somente em certas estações, além de o intercurso não ser precedido [no caso dos seres brutos] por pensamento de qualquer natureza"
E segue: 
"A aquisição de cada objeto pressupõe em todos os eventos um empenho por parte do homem. A aplicação dos meios apropriados pode ser considerada como a causa da obtenção das metas, e essa aplicação dos meios apropriados sendo portanto necessária (ainda quando algo está destinado a ocorrer), segue-se que uma uma pessoa que não faz nada, não desfrutará de nenhuma felicidade"
O que caracteriza a mentalidade tanto dos compositores de obras do Kâma Shastra, como seus comentadores é um profundo realismo e pragmatismo no que diz respeito à constitução humana, uma vez que "os prazeres, sendo tão necessário para a existência e o bem estar do corpo com o alimento, são consequentemente requeridos da mesma maneira" e "o homem praticando o Dharma, Artha e Kâma desfruta de felicidade tanto nesse mundo como no outro  mundo". Dando, por fim, a hierarquia que deve ser usada para avaliar uma ação humana com meta:
"Qualquer ação que conduza à prática do Dharma, Artha e Kâma juntos, ou dois deles, ou apenas um, deveria ser executada, mas a ação que conduz à prática de um deles em detrimento dos outros dois não deveria ser executada".
Em outras obras, há articulações do Kâma com encantamentos, astrologia e magia, e há obras que têm fins mais específicos como por exemplo, manter a paixão acesa dentro da institução matrimonial, ao passo que outras obras contemplam outras possibilidade de Kâma. O Kâma Sutra, em especial, aborda desde as artes que devem ser aprendidas pelas mulheres, os tipos de prelúdios sexuais ou arranjos de ambientes, divertimentos, passatempos, posições sexuais, os tipos de mulheres e as classificações dos tipos dos seres humanos quando à intensidade sexual. Sendo obras técnicas, os shastras não têm teor moralista, pois não há confusões de níveis (espiritual e material).

Ademais, são também documentos históricos interessantes onde é possível reconstituir com boa representatividade os elementos humanos de determinados períodos, sua vida social, sua variedade, as relações concretas (e não apenas ideais) entre as castas, o refinado senso de apreciação estética e estilo de vida característico das civilizações tradicionais do Dharma.

O que deveria ficar claro, portanto, é que:
"[Os prazeres lícitos] são resultantes, portanto, do Dharma e do Artha. E devem, portanto, ser seguidos como moderação e cuidado. Ninguém se abstém de cozinhar comida porque há mendigos pedindo-a, nem de semear porque gazelas vão destruir o milho quando ele crescer"
A sexualidade abordada nessas obras é concebida dentro de um contexto civilizacional e de uma compreensão da sexualidade diferente da que temos nas classes médias atuais, que consomem literatura sexual dentro de sua própria perspectiva ou mentalidade. No shastra tudo está inserido dentro de uma mentalidade de consecução de metas humanas e procura obter, mesmo no que diz respeito aos sentidos, alguma perfeição ou traço humano que distinga a referida arte do mero exercício desenfreado dos sentidos próprio dos animais. Um último ponto, importantíssimo de ser ter em conta é que os Kâma Shastras, não sendo espirituais, não têm relação direta com os chamados Tantras ou Âgamas, cujos principais focos são a espiritualidade e os meios de libertação espiritual.


[1] O islam, de forma mais liberal, e o judaísmo, têm de fato deliberações claras sobre a vida sexual, no entanto, em nenhuma dessas tradições há a compreensão da sexualidade como arte a ser desenvolvida através de meios apropriados.