Tuesday, December 15, 2015

A sabedoria dos videntes antigos


Peguei o livro sem compromisso, para dar uma olhada, e acabei lendo tudo. The Wisdom of Ancient Seer – Mantras of the Rig Veda de David Frawley é uma proposta de tradução e comentário de alguns mantras do Veda. O autor também atende por Vâmadeva Shâstri, presidente do American Institute of Vedic Studies, tem trabalhos no campo da Ayurveda e da astrologia védica. Não me chamava a atenção antes, talvez pela escolha ruim dos títulos de suas obras mais famosas, suas associações meio nova-eristas e suas terapias, que também pareciam-me coisas desses nichos. Tampouco tinha entusiasmo por suas ideias ingênuas de 'religião global',  similares a de figuras como Vivekananda. Contudo, eis que o livro valeu a pena.

Os hinos védicos jamais receberam atenção de tradutores com conhecimento metafísico ou de simbolismo esotérico. Coomaraswamy lembrava em seu tempo que, nenhuma das traduções mais famosas, notáveis por suas preocupações etimológicas, se comparam, nem de longe, a uma Enéadas de A.H Armstrong ou do 'Guia dos Perplexos' de Friedlander. Nada mudou tanto de lá para cá.

O que fica evidente no caso do Veda é que os tradutores tinham seu primeiro contato relevante com temas metafísicos, espirituais ou simbólicos na tradução mesma. O resultado era um trabalho quase que de 'reconstrução textual’, enfatizando aspectos linguísticos ou secundários, e considerando os 'autores do Veda' sujeitos simplórios e primitivos (o que não é o caso). Isso tudo gerou resultados ruins, até desastrosos. Só por buscar uma alternativa, mostrando um aspecto mais 'glorioso' da poesia védica, Frawley obtém resultados bem melhores.

Diz o autor:
“Minha preocupação com esse livro são suas verdades internas de consciência e de transformação desde o ponto de vista prático da vida espiritual. Essas verdades eternas são apresentadas poderosamente na linguagem universal do mantra no Rg Veda, e a tentativa aqui é sugerir isso em inglês, na medida do possível. Naturalmente, como ocorre com qualquer poesia, em particular a que é muito antiga, isso requer entortar a linguagem, e, na melhor das hipóteses, o que se consegue é só insinuar o poder real dos hinos.”
O autor não menciona, mas ele segue o método de tradução criado por Shri Aurobindo, exposto em 'The Secret of The Veda' (que comecei também a ler). É a chamada ‘abordagem psicológica’, em oposição à puramente filológica. Diz o indiano:
  
“Nossa primeira tarefa, portanto, é determinar se, além da figura e do símbolo, há na linguagem clara dos hinos, substância suficiente de noções psicológicas para justificar-nos na suposição de um sentido superior ao sentido bárbaro e primitivo dos Vedas. Depois, temos de descobrir, na medida do possível, a partir da evidência interna dos Suktas mesmos, a interpretação de cada símbolo e imagem e a função psicológica de cada um dos deuses. Um sentido firme e não flutuante, fundado em boa justificação filológica e se adequando naturalmente no contexto, onde quer que ocorra, deve ser encontrado para cada termo fixo do Veda.”
Ainda assim, está faltando uma tradução ótima, e do texto integral, em língua ocidental. Mas o livro de Frawley tem seus méritos: traz-nos lampejos da verdade primordial, com boas imagens poéticas de trechos seletos, de profunda ressonância na psique humana.  Acho que a obra peca porque tem liberdade demais: o autor confia muito em sua própria ‘clarividência’ hermenêutica na decodificação dos símbolos. Na introdução dizem até que o sujeito é um Rshi Moderno, o que é bem bobo.  A própria interpretação psicológica mesma é limitada. A leitura é impactante e até hipnótica no começo, mas aos poucos, o excesso disso, sem consistência metafísica, acaba perdendo o vigor.

Max Müller, no século XIX, disse que os Vedas ocupariam os estudiosos bastante nos séculos vindouros. E ainda vão: tudo o que se fez até agora é pouco, e continuamos (público profano) sem saber quase nada sobre os hinos, mesmo achando que sabemos o suficiente para fazer julgamentos definitivos e graves. Preconceitos e atitudes metodológicas do século XIX persistem, assim como uma curiosa arrogância por parte dos orientalistas, que querem ser autoridades exclusivas num assunto no qual são, não raro, quase incompetentes.

Saturday, September 5, 2015

O renascimento segundo Ānanda Kumāraswāmī

A posição de Ānanda Kumāraswāmī sobre o tema da reincarnação é, em linhas gerais, a mesma do Guénon (que veremos depois): a reincarnação é uma impossibilidade, e as doutrinas antigas falam, na verdade, de metempsicose, transmigração e/ou palingênese. Por inúmeras vezes ele defende, com muitas citações, que o Senhor (Îshvara) é o único transmigrante (samsarin). Essa é uma posição metafísica legítima (paramârtha), contudo, deve ser contrabalanceada com o ponto de vista prático (vyavahâra), o que o autor não faz. Ele tem algumas pecularidades, que merecem ilustração:

Eu compartilho da visão de René Guénon de que todas as aparentes referências à reincarnação do indivíduo nessa terra devem ser entendidas metaforicamente. […] A maioria dos textos hindus que parecem falar de ‘reincarnação’ são, ou descritivos da vida presente, ou de qualquer tipo de vida, ou da Vida que é comum a todas as coisas, e que passa de um para outro com absoluta imparcialidade. Isso não implica em negar que os leigos, partindo do pressuposto da identidade do indivíduo ao longo da vida, nunca presumiram que a ‘alma’ ou ‘personalidade’ reincarna; queremos simplesmente dizer que tal ponto de vista é heterodoxo, seja no Ocidente ou no Oriente.”

 Em seu livro “A New Approach to the Vedas”, publicado originalmente em 1933,  Kumāraswāmī parte do pressuposto de que a forma “original e pura” da doutrina do renascimento implicava um retorno da condição angélica para a condição corporal de acordo com a lei natural (shásita, rtvya, dharmya). Esse processo afetaria todos aqueles que 1) não tivessem obtido a libertação absoluta (ati-mukti), ou que 2) não tivessem nem embarcado na ‘viagem angélica’ (devayâna), nem processo de libertação gradual (krama-mukti), nem estivessem em vias de escapar da sujeição às ações apegadas (kámya-karma) que são os determinantes do mérito e demérito (punya-pâpa).  O autor utiliza ainda outro pressuposto, considerando-o (nessa ocasião) ‘menos certo’, de que o retorno (punar âvartana) se realizaria em outra era -- seja em um manvantara, yuga ou kalpa, ou mesmo em outro ‘para’ ou seja, com a ressurreição do ‘cavalo cósmico’, o nascimento de um novo Brahma-Prajapati. 
"A propósito do artigo 'Reincarnação' da sra. Rhys Davids e do artigo destaque 'Sobre o Renascimento' na edição de 8 de janeiro de 1942, e com especial referência à afirmação 'Na Índia, esse é um ponto cardeal do Dogma Hindu', eu poderia dizer que, enquanto de fato há na Ìndia uma doutrina da transmigração (no sentido da passagem de estados do ser a outros estados do ser), a Reincarnação (no sentido de retorno de indivíduos para uma encarnação na terra) não é uma doutrina hindu. A doutrina hindu é, nas palavras de Shankaracharya que 'Não há outro transmigrante (samsarin) além do Senhor (Îshvara)".  (Carta de Coomaraswamy ao sr. Light, de Londres em 21 de maio de 1942)  [1]
Às vezes Kumāraswāmī leva em conta alguns critérios de hermenêutica hindu, como o da unidade da revelação do Veda [2]:
“Os eruditos modernos em geral concordam que a ‘reincarnação’ não é uma doutrina védica, mas uma doutrina de origem popular ou desconhecida que foi adotada e tomada como certa já nos Upanishades e no Budismo. Deixando o Budismo de lado por agora, […] seria inconcebível desde o ponto de vista hindu ortodoxo e tradicional que algo que não seja parte de uma shruti possa ter sido ensinado em outra; em tal material, não é possível imaginar um hindu ortodoxo “escolhendo” entre o Rig Veda e os Upanishades, como se um deles estivesse certo e o outro errado. Essa dificuldade desaparece se acharmos que a teoria da reincarnação (distinta da metempsicose e da transmigração) não é realmente ensinada nos Upanishades: nessa conexão chamamos atenção especialmente para a afirmação do BU IV, 3.37 onde, quando uma nova entidade está ‘vindo a ser’ faz-se com que  os elementos fatoriais do novo composto digam, não “Aqui vem tal ou tal indivíduo (previamente falecido), mas “AQUI VEM O BRAHMAN”[3](“The Coming to Birth of the Spirit”: What is Civilization? And Other Essays)
Em carta à sua própria esposa, Luisa Kumāraswāmī, datada de 1932, ele expõe a interessante teoria de que o Rig Veda ensina a "ressurreição em corpo glorificado" e não a reincarnação, e que o renascimento é a transposição de uma energia, semente ou ‘tipo’ genérico:
“O Rig Veda ensina a ressureição (em corpo glorificado) e não a reincarnação no atual sentido da palavra. É duvidoso que a ‘reincarnação’ seja ensinada mesmo no budismo, onde é expressamente enfatizado que nada (no-thing) é transmitido de uma existência passada a uma futura, ainda que a posterior seja determinada pela anterior.  Isto é, no que diz respeito a nascimentos na terra, é um outro nama-rupa (individualidade) que vai colher os frutos da nossa conduta. A expressão ‘renascimento como um animal’ significaria então que, se todos os homens se comportassem de maneira animalesca, o resultado poderia ser que, com o tempo, somente  animais nasceriam na terra;  a vida, determinada por causas mediatas (karma) não encontraria senão expressões animais aqui. Falando de maneira aproximada, não é a personalidade que reincarna, nem o indivíduo, mas o tipo [...]. O que é transmitido não é uma entidade, mas um tipo de energia (virya), ou seja, na prática, é a ‘semente’, como em ‘a semente de Abraão’”
Em outra correspondência, dirigida à sra. Ruth Campbell em 1938, Kumāraswāmī diz que a transmigração não depende de espaço e tempo mas é um processo ‘interno’:
 “O que eu disse é que a reincarnação não foi ensinada [na Índia] e representava uma impossibilidade. Isso não exclui a validade da metempsicose por um lado e da transmigração por outro lado. Eu pensei que eu tinha deixado bem claro que a transmigração não tem nada a ver com o tempo ou espaço, mas ocorre inteiramente 'dentro de si', e vai da periferia ao centro do ser. Eu acho que isso está tão claro no artigo que basta uma releitura."
E no seu artigo “The Flood in Hindu Tradition” se aproxima bastante da posição ou mesmo exposição metafísica guenoniana:
“Um repetição exata de uma experiência passada é inconcebível metafisicamente, uma vez que duas experiências idênticas, vistas desde o ponto de vista do presente absoluto, no qual todas as potencialidades do ser são simultaneamente realizadas, constituem uma única e mesma experiência. A metafísica afirma o caráter único de toda mônada e é precisamente essa unicidade que faz do indivíduo, incognoscível como ele é em si mesmo, ainda que inteligível como ele é em e do Si Mesmo.” [4]
Defende, em outro artigo (The coming of birth of the Spirit), a distinção entre metempsicose, transmigração e a concepção reincarnação moderna:
"Não digo que a teoria da reincarnação (re-incorporação do mesmo homem e verdadeira personalidade do falecido) nunca foi uma crença na Índia ou em algum outro lugar,mas concordo com o sr. Guénon em que 'nunca foi ensinada na Índia, mesmo entre os budistas, e é essencialmente uma noção europeia', e ainda que 'nenhuma doutrina tradicional autêntica jamais falou de reincarnação'. Ao diferenciar a reincarnação, tal qual definida acima, da metempsicose e da transmigração pode-se acrescentar que o que se quer indicar com metempsicose é o aspecto psíquico da palingênese, ou em outras palavras, a herança psíquica, e o que se quer dizer com transmigração é uma mudança do estado ou nível de referência excluindo, por definição, a ideia de uma retorno a qualquer estado ou nível que já foi ultrapassado. A transmigração do âtman (espírito) individual só pode ser distinguida como um caso particular de transmigração do paramâtman (Espírito, Brahman).
E, da mesma forma como fazem Évola e Schuon, busca uma origem para a suposta confusão moderna entre  reincarnação e transmigração, atribuindo-a a um apego à noção de individualidade:
"A mente moderna, com seu apego à 'individualidade' e suas provas de sobrevivência da personalidade, está predisposta a interpretar incorretamente os textos tradicionais. Nós não deveríamos ler nesses textos aquilo que gostaríamos ou que 'naturalmente' esperamos encontrar neles, mas somente aquilo que eles realmente significam: mas 'para nós é difícil abandonar as coisas familiares ao redor de nós, e voltarmos ao velhor lar do que qual viemos'(Hermes, Lib. IV, 9). A individualidade, não importa o quão abracemos seus grilhões, é uma modalidade parcial e definida do ser. o "Eu" é definido pelo o que é o "não-Eu", e é assim aprisionado. É com vistas à libertação dessa prisão e essa parcialidade que nossos textos tão repetitivamente demonstram que nossa louvada individualidade não é nem uniforme, nem constante, mas composta e variável, apontando que o mais sábio é aquele que pode dizer 'Não sou agora o homem que eu era antes'. Essa é a verdadeira medida de todos os seres as coisas em desenvolvimento;mas o 'fim da estrada' (adhvanah pâram) está além da 'humanidade'. A perduração só pode ser predicada daquilo não é individual, mas universal (cósmico) , e a eternidade, sem antes ou depois, só pode ser afirmada daquilo que não é nem individual nem universal."
A título de passagem, é notável que em alguns pontos Kumāraswāmī mostre que a leitura de certos autores budistas talvez tenha sido importante para a consolidação de seu ponto de vista sobre o tema, como nesse trecho retirado de correspondência de 1946 endereçada a  H.G. Rawlinson:
"Eu concordo com estudiosos como T. W. Rhys Davids, B. C. Law, D. T. Suzuki, etc, todos os quais negam que a reecarnação fosse uma doutrina budista. Incidentalmente, a própria palavra não aparece em inglês antes de 1850, de forma similar a 'teosofia'"
E ainda, sobre a doutrina da paligênese:
“[...] a doutrina indiana da palingênese é corretamente expressa pela afirmação budista de que na 'reincarnação' nada é transmitido de uma corporalidade à outra, sendo a continuidade sendo similiar a quando uma lâmpada é acesa a partir de outra lâmpada: que os termos empregados para 'renascimento' (ex: punar janma, punar bhava, punar apâdana) são usado em pelo menos três sentidos distinguíveis: 1) com respeito à transmissão de características físicas e psíquicas de pai para filho, isto é, com respeito à palingênese no sentido biológico, definida por Webster como 'A reprodução de características ancestrais sem modificação' 2) com respeito à transição de um plano para outro de consciência efetuado no mesmo indivíduo  e geralmente na mesma vida, como no caso do renascimento implicado na máxima 'Exceto se nasceres de novo' e do qual o último termo é a deificação e 3) com respeito à 'moção' ou peregrinação do Espírito de um corpo-e-alma a outro, 'moção' que ocorre sempre que  tal veículo composto morre ou um outro é gerado, assim como a água pode ser vertida de um vaso no mar e removida por outro vaso, sendo sempre água, mas nunca -- exceto na medida em que os vasos parecem impor uma identidade temporária e forma a seus conteúdos, ou seja, a 'água' e terceiro --  nenhuma outra doutrina de renascimento é ensinada nos Upanishades, no Bhagavad Gîtâ além das que estão já implícitas no Rg Veda."
Em correspondência datada de 21 de maio de 1942, endereçada ao Sr. “Light” e já citada acima, ele sua conceito de “Único Transmigrante”, que rendeu-lhe inclusive o título de um estudo específico, e que, segundo Kumāraswāmī era verdadeira concepção Shankariana sobre o tema tal qual exposto nos Brahma-Sutras:
"Que esse ensinamento [A Transmigração do Senhor] dos Upanishades e de textos mais antigos poderia ser amplamente embasada por muitas citações, e segue diretamente da posição de que nossos poderes são 'meramente nomes de Seus atos', pois Ele é 'o único vidente, ouvinte, pensador, etc. em nós', e que da visão, comum a hindus e budistas essa é a maior das ilusões a considerar 'Eu sou a agente'. Em sucessivos nascimentos é Brahma, não o 'Eu' que vem e vai. [...] Esse é também o ensinamento do Cristo, que diz que se fossemos seguí-lo, deveríamos odiar nossas almas, e que 'nenhum homem subiu aos céus, além daquele que veio dos céus, mesmo o Filho do Homem, que é o céu'. O Senhor transmigrante ocupa, de fato, corpos dos quais o caráter é casualmente e fatalmente determinado, mas ele 'nunca se torna alguém', e segue-se que ninguém que ainda é alguém pode estar 'unido ao Senhor' de maneira a ser 'um espírito'. Pois nada do que tem começo no tempo pode chegar a ser imortal; se há um caminho de saída, só pode ser a realização de que 'Eu vivo, contudo não eu, mas Cristo (ou Brahma, ou qualquer nome pelo qual falemos de Deus) em mim'. Certamente, antes de discutirmos a 'reincarnação' deveríamos estar certos de que a doutrina da reincarnação não foi mantida por ninguém além dos teosofistas."
Em outra correspondência, enderaçada a William Ernest Hocking em 1942 ele volta a citar a máxima shankariana:
"[...] muitos textos dos Upanishades, etc. só parecem afirmar a reincarnação porque nós temos essa noção em mente. Você poderá, claro, se referir Bhagavad Gita 11.22 [5] que eu acho que muitos leitores pensariam tratar-se de uma declaração sobre reincarnação. Mas observe que Platão e Eckhart usam quase as mesmas palavras, com respeito à natureza dessa vida presente mesma. Assim, está Phaedo 87D, E: “cada alma consome muitos corpos, especialmente se o homem vive muitos anos. Pois se o corpo está constantemente mudando e sendo destruído enquanto o homem está ainda vivo, e a alma está sempre tecendo novamente o que é consumido, então quando a alma perece, ela deve necessariamente fazê-lo e sua última vestimenta" (o caso da alma não perecer se dá pelo fato de que ela sobrevive a cada uma dessas mudanças de vestimenta, e se for assim, não a última delas?). E Eckhart (Pfieffer, p 530) “Nada é suspensa da divina essência:a sua progressão é a matéria, onde a alma veste novas formas descartando as formas antigas. A mudança de uma para outra é sua morte, e aquele que ela veste, e aquele no qual ela vive'. Nos "Upanishades" ele frequentemente pressupõe que o sujeito é 'esse homem' quando na verdade é 'O Homem', e assim ele pensa que nós reincarnamos quando na verdade, como Shankara diz 'Não há, em verdade outro transmigrante além do Senhor'. 
E mantém sua posição em 1946 em correspondência ao Sr. Richard Gregg.
"Em qualquer caso, 'reincarnação' é somente um modo de dizer, associado e inseparável da postulação de um Ego; é um processo, não o mesmo 'indivíduo' que reincarna; e, de fato, nesse sentido, a 'reincarnação' ou 'vir-a-ser' dos quais se obtém libertação é aquilo que segue acontecendo todo o tempo, de momento a momento; vir a ser em uma vida futura é somente a continuação desse presente vir a ser; ninguém que ainda é alguém escapa disso."
CONCLUSÃO

Kumāraswāmī acredita, diferindo de outros estudiosos orientalistas e concordando com a hermeneutica do mimâmsâ, que, sobre o tema da reincarnação, há uma unidade da shruti (samhitas e upanishades) e não só isso, mas (nesse caso assumindo posição heterodoxa), a visão dos budistas é, no fim das contas, a mesma dos Vedas. Em alguns artigos ele articula a noção de transmigração com a dos ciclos cósmicos hindus em intricadas elucubrações simbólicas. Chega a dizer que a reincarnação é uma transmissão de um gênero, ou tipo de semente e usa para isso alguns trechos da shruti com interpretação que, no advaita-vedânta, chama-se pâramârthika satya, desconsiderando os outros trechos onde se estabelece o vyâvahârika-satya. Sua interpretação é, em grande parte, inovadora, como explicarei futuramente na exposição das visões ortodoxas sobre o tema. Em alguns pontos Kumāraswāmī é consciente de que está propondo uma tese nova. Em seu livro sobre o Veda ele admite que a tese da transmigração atrelada à passagem da eras é fraca. Em outras ocasiões ele abandona essa restrição acadêmica, provavelmente diante da aceitação da posição lógico-metafísica de Guénon. [6]

Próxima postagem: o renascimento segundo René Guénon

NOTAS:

[1] É importante notar que o trecho em que Shankarâchârya utiliza a noção de que 'o único transmigrante é o Senhor', é um trecho muito específico em que o santo hindu está refutando a doutrina sâmkhya de que a Pradhâna ou Prakrti é o único transmigrante. Desde um ponto de vista absoluto, poderíamos dizer, na verdade, que o Senhor não transmigra absolutamente e teríamos abundantes trechos declarando isso no mesmo tratado. Creio que há uma confusão, proposital ou não, de Kumāraswāmī nesse ponto, ao qual voltaremos futuramente, e há inclusive uma apropriação indevida desse trecho de Shankarachârya como se fosse uma máxima central ou algo assim. Não é.
[2] Esse também é um ponto curioso. Whitall Perry, em prefácio a uma coletânea de correspondências de Kumāraswāmī, observa que a ênfase do autor cingalês se dava porque ele se dispunha a refutar a “noção popular” de reencarnação em vigor na Índia e que havia se tornado quase um “dogma”. Contudo, segundo o norte-americano, essa posição crítica rendera a Kumāraswāmī crítica justamente por parte de eruditos hindus que, a não ser por isso, admiravam sua obra.
[3] Capitalização feita pelo autor.
[4] Pretendo em postagens futuras fazer uma análise dessa noção metafísica confrontando-a com opiniões védicas ortodoxas.
[5] O trecho citado do Gîtâ não faz especial referência à reincarnação. Tradução livre: "Os Rudras, Adityas, Vasus, os Sadhyas, Os Vîshve devas, as duas Ashvins, os Maruts, Os Ushmapas, as hordas de Gandharvas, Yakshas, Asuras, e seres perfeitos, contemplam-te espantados."
[6] Os interessado em conferir a grande quantidade de citações de Kumāraswāmī, bem como as correspondências citadas aqui podem consultar as seguintes obras ou artigos: "The Selected Letters of Ananda Coomaraswamy", "A New Approach to the Vedas - An Essay in Translation and Exegesis",
"The Essential of Ananda Coomaraswamy", "The Flood in the Hindu Tradition" (artigo) e "On the Only and One Transmigrant" (artigo).

Saturday, February 7, 2015

O renascimento segundo Frithjof Schuon

A abordagem do suíço sobre os estados póstumos tem contornos bem peculiares. Enquanto Guénon, se firma só no ponto de vista metafísico, Schuon busca enfrentar as 'dificuldades teóricas' em outros planos, buscando uma 'solução' original [1]. Acaba criando uma posição um tanto incompatível com as diversas exposições tradicionais, e até sincrética, como veremos.

Seus comentários sobre a transmigração -- que têm boníssimas intuições e tocam em pontos cruciais -- buscam, no fim das contas, a síntese entre as escatologias semíticas, para as quais a processão post-mortem é linear e sem retorno, e os 'transmigracionistas asiáticos', que adotam, com diferentes abordagens e cores, a visão cíclica ou samsárica. Schuon toca em temas como a 'eternidade do inferno', o purgatório, o limbo, a existência póstuma de animais, etc.

Schuon e os Estados Múltiplos do Ser

Schuon, no geral, está de acordo com o raciocínio metafísico dos Estados Múltiplos do Ser e o argumento lógico de Guénon, ou seja, da processão helicoidal ou espiral do Ser e sua absoluta irrepetibilidade:
"[...] a infinitude divina exige que a transmigração se efetue segundo um modo «espiral»: o ser não pode regredir nunca à mesma terra, seja qual seja o conteúdo de sua nova existência, que é «terrena» porque é composta de prazer e dor."(Compreender o Islam, cap. III)
Contudo, desaprova postura dogmática de Guénon, que advoga a ausência completa de ideias reincarnacionistas em textos ortodoxos hindus:
"No fim de um capítulo de seu 'Teosofia: a História de uma Pseudo-Religião', Guénon declara que, no Oriente, não existe nada que, mesmo remotamente, se pareça com a ideia de reencarnação; será que ele nunca leu o Mânava-Dharma-Shâstra? É extremamente penoso, quando não se tem interesse em criticar Guénon -- pelo contrário, quando se tem, a priori, interesse em apoiá-lo -- ter de reconhecer que seus adversários estão mais informados e algumas vezes mostram mais compreensão do que ele; é ainda mais penoso ver que não foram eles que puxaram a briga. Seja como for, o que é importante para nós não é o prestígio de determinado autor, mas a Verdade; e o próprio Guénon não deixou de insistir expressamente nessa 'distinguo'!"  (René Guénon: Algumas Observações) [2]
Diante dessa divergência, e do reconhecimento de que textos e santos hindus interpretavam a reencarnação em sentido literal, o suíço reconhecia as dificuldades e inconvenientes de uma síntese entre as cosmologias e escatologias, e dizia que esse empreendimento sintético só se tornava necessário pela 'condição cíclica' excepcional:
“Numa época espiritualmente normal e em um mundo tradicional homogêneo, todas essas considerações sobre as diferentes formas de enfocar a sobrevivência [póstuma] seriam praticamente supérfluas ou inclusive nocivas -- e além disso, tudo está implicitamente contido em certas enunciações escriturais --, mas no mundo em dissolução no qual vivemos, tornou-se indispensável mostrar o ponto de confluência em que as divergências entre o monoteísmo semítico-ocidental e as grandes tradições originárias da Índia se atenuam ou se resolvem. Esses confrontamentos, claro, raramente são completamente satisfatórios -- no que diz respeito à cosmologia -- e em cada pontualização corre-se o risco de projetar novos problemas. Mas essas dificuldades só mostram, em suma, que se trata de terreno infinitamente complexo que nunca se revelará adequadamente à nossa compreensão terrena. De certo modo, trata-se [no caso das considerações cosmológicas] mais de «captar» os abismos imensuráveis da manifestação do Absoluto do que o próprio Absoluto." (Comprender o Islam, cap. III)
Aproxima-se algumas vezes da elaboração evoliana de 'consciência samsárica', ou seja, explicando que as dificuldades de uma abordagem suficiente do tema se davam em função de uma alteração cognitiva significativa entre os homens antigos e os atuais:
"O homem antigo era altamente sensível às intenções inerentes às expressões simbólicas, como é provado, por um lado, pela efetividade dessas expressões por muitos séculos e, por outro, pelo fato de que o homem antigo era, sob qualquer critério, um ser perfeitamente inteligente; quando lhe contavam a história de Adão e Eva, ele captava tão claramente o cerne da história – a evidência é de fato fascinante – que ele nem sonhava em divagar sobre o ‘porquê’ ou o ‘como’; pois carregamos a história do Paraíso e da Queda em nossa própria alma e em nossa própria carne. Era assim para todo simbolismo escatológico: a ‘eternidade’ do além denota, acima de tudo, um contraste em relação ao aqui-agora, ou seja, uma dimensão de absolutismo que se mantém em oposição a nosso mundo de contingências vãs e efêmeras; isso é o que importa e nada mais, e essa é a intenção divina da imagem; em simbolismos transmigracionistas, ao contrário, essa ‘vaidade’ se estende também ao além ao menos em algum grau e em razão de uma profunda diferença de perspectiva; ai também ninguém está preocupado com o ‘porquê’ ou o ‘como’ na medida em que a intenção impressionante do símbolo foi capturada, por assim dizer, na própria carne.” (Forma e Substância nas Religiões, cap. ‘A Margem Humana’)
Essa dificuldade cognitiva, sintomática da nossa época, leva à interpretação literal dos textos religiosos e à caducidade dos símbolos, desembocando em interpretações abusivas do reencarnacionismo:
"Um dos sinais desse obscurecimento [característico da Kali-Yuga] é a interpretação literal de textos simbólicos sobre a transmigração, o que dá origem à teoria reencarnacionista: esse mesmo literalismo quando aplicado a imagens dá origem à idolatria. Se não fosse por esse aspecto pagão, que na prática contamina o culto de tantos hindus de casta baixa, o Islã não poderia ter causado uma impressão tão profunda no mundo hindu. Se, para defender as interpretações reencarnacionistas das escrituras hindus deposita-se a confiança no sentido literal dos textos seria bem lógico interpretar tudo nelas de maneira literal -- e aí teríamos não só um antropomorfismo grosseiro , mas também uma adoração monstruosa e crua da natureza sensorial seja na forma de elementos, animais ou objetos: o fato de que muitos hindus realmente interpretem o simbolismo da transmigração segundo a letra não prova nada além de decadência intelectual quase normal na Kali-Yuga e prevista pelas escrituras." (Unidade Transcendente das Religiões, cap. V) 
E sobre as interpretações literalistas por parte de santos, Schuon explica que há uma diferença entre conhecimento cosmológico e metafísico:
"Mesmo admitindo que um grande santo hindu adote uma interpretação literalista das escrituras em relação à questões cosmológicas como a transmigração isso ainda não provaria nada contra sua espiritualidade uma vez que é possível conceber um conhecimento que é independente da realidades puramente cosmológicas, e que consista de uma visão interna e sintética da Realidade Divina. O mesmo não poderia se aplicar no caso da pessoa cuja vocação era expor ou comentar especificamente sobre doutrina cosmológica; mas, em razão de leis espirituais que governa nosso tempo, tal vocação raramente surgiria dentro da estrutura de uma religião particular" (Unidade Transcendente das Religiões, cap. V) 
Em outro momento, buscando ser coerente com seu critério de que todas as religiões são absolutamente válidas, explica que alguns dados inconsistentes das revelações não se devem apenas à dificuldades cognitivas ou degeneração cíclica, mas às próprias intenções divinas ao fazer suas revelações: 
"O que importa para Deus, com relação aos homens, não é tanto oferecer informações científicas sobre coisas que a maioria não pode compreender, mas sim desencadear um «choque» por meio de determinado conceito-símbolo; esta é exatamente a função da 'upâya'. Nesse sentido, a função da alternativa violenta «céu-inferno» na consciência do monoteísmo é muito instrutiva: o «choque», com tudo o que implica para o homem, revela muito mais da verdade que determinada exposição «mais verdadeira», ainda que seja menos assimilável e menos eficaz, e por conseguinte, «mais falsa» para determinados entendimentos. Trata-se de «compreender», não só com o cérebro, mas como todo o nosso «ser», e, portanto, também com a vontade; o dogma se dirige mais à substância pessoal que ao pensamento, pelo menos nos casos em que o pensamento corre perigo de não ser mais que uma superestrutura; ele não fala ao pensamento, a não ser quando este é capaz de comunicar concretamente com o nosso ser inteiro, e nesse aspectos os homens são diferentes. Quando Deus fala ao homem não conversa, ordena; não quer informar ao homem, senão na medida em que pode modificá-lo; agora bem, as ideias não atuam sobre todos os homens da mesma maneira, e é daí que surge a diversidade das doutrinas sagradas."(Compreender o Islam, cap. III) 
Monoteísmo semítico e tradições da Índia e Extremo-Oriente

Schuon, em vários pontos de sua doutrina, faz uso do critério exegético eminentemente hindu chamado 'adhikâri-bheda', que consiste basicamente em dizer que as aparentes contradições de uma determinada revelação se dão em função das diferentes qualificações humanas:
"[...] o exoterismo semítico nega a transmigração da alma e consequentemente a existência de uma alma imortal em animais: e também nega a dissolução cíclica total que os hindus chamam de mahâ-pralaya, uma dissolução que implica a aniquilação de toda a Criação (samsâra). Essas verdades de forma alguma são indispensáveis para a salvação e envolvem até certos perigos para mentalidades para as quais as doutrinas exotéricas são endereçadas: assim, um exoterismo é sempre obrigado a manter em silêncio quaisquer elementos esotéricos que são incompatíveis com sua própria forma dogmática ou mesmo negá-los"  (A Plenitude de Deus, cap. II) 
E explica o seu conceito de 'nacionalismo da condição humana', segundo o qual as religiões semíticas se encerravam, por uma necessidade salvífica, apenas no estritamente necessário para salvação e a avaliação da condição humana em relação a Deus, desconsiderando todo o resto:
"As perspectivas a priori dinâmicas - o monoteísmo semítico-ocidental -- consideram, como por uma espécie de compensação, os estados póstumos em um aspecto estático, e, portanto, definitivo; pelo contrário, as perspectivas a priori estáticas, isto é, mais contemplativas e portanto menos antropomorfistas - da Ìndia e do Extremo Oriente -- veem esses estados sob um aspecto de movimento cíclico e de fluidez cósmica. Ou ainda: se o Ocidente semítico representa os estados post-mortem como algo definitivo, tem implicitamente razão no sentido de que, diante de nós há como que dois infinitos: o de Deus e o do macrocosmo ou do labirinto imensurável e indefinido do samsâra; este é, em última instância, o inferno «invencível», e é Deus que, na realidade, é a Eternidade positiva e beatífica; e se a perspectiva hindu e budista insiste na transmigração de almas, é, como já dissemos, porque seu caráter profundamente contemplativo lhe permite não se deter em uma só condição humana e porque, por esse mesmo fato, sublinha forçosamente o caráter relativo e inconstante de tudo o que não é o Absoluto; para ela o samsâra só pode ser expressão de relatividade. Sejam quais forem estas divergências, o ponto de confluência das perspectivas se faz visível em conceitos como «resurreição da carne», a qual é perfeitamente uma «reencarnação» [3]." (Compreender o Islam, cap. III)
Os infernos

Na sua análise dos infernos, Schuon recorre à distinção metafísica entre 'perpetuidade' e 'eternidade'; segundo essas distinção, nenhum estado de ser pode ter o atributo realmente de eternidade, que só pertence ao Absoluto e aqui adota a perspectiva hindu para complementar a semítica, dizendo que depois de um 'período' nos infernos, o indivíduo retornará na forma de seres inferiores:
"É fácil captar que o Paraíso é eterno uma vez que ele se abre para a Eternidade; mas qual é o significado da 'eternidade' do inferno? Essa expressão não significa que ele é realmente eterno, o que seria metafisicamente e moralmente absurdo, mas simplesmente que os que estão em danação estão efetivamente excluídos do Paraíso humano; esse caráter definitivo é expresso pela noção simbólica de 'eternidade' que sugere algo absoluto ou então irreversível. Na realidade os condenados no fim das contas deixarão o inferno e vão entrar na transmigração inferior com a possibilidade no fim de nascer em um estado análogo ao estado humano, que se abra portanto a um Paraíso análogo ao Paraíso humano" (Cristianismo e Islam, Seleção de Cartas, Carta No.19)
E aqui usa a noção de espiralidade metafísica, que é desenvolvida melhor em livros como o Simbolismo da Cruz, de René Guénon:
"Infere-se a grandeza do homem pela gravidade do inferno, e não, inversamente, a suposta injustiça do inferno da aparente inocência do homem. O que pode desculpar em certa medida o emprego habitual da palavra «eternidade» para designar uma condição que, segundo as terminologias escriturais, não é mais que uma «perpetuidade» -- e não sendo esta nada mais que um «reflexo» da eternidade -- é que, analogicamente falando, a eternidade é um círculo fechado, pois não há nela nem princípio nem fim, enquanto que a perpetuidade é um círculo espiral, e por tanto, aberto em razão de sua própria contingência. Em compensação, o que mostra toda a insuficiência da crença corrente em uma sobrevivência simultaneamente individual e eterna -- e esta sobrevivência é necessariamente individual no inferno, mas não no cume transpessoal da Felicidade -- e o postulado contraditório de uma eternidade que tem um começo no tempo, ou de um ato -- logo, de uma contingência -- que tem uma consequência absoluta. "(Compreender o Islam, cap. III) 
Destinos póstumos dos animais

Schuon dá especial atenção a esse tema e, de fato, é um dos pontos teológicos mais difíceis na conciliação entre as doutrinas hindus e semíticas, novamente ele faz uso do conceito de 'nacionalismo da condição humana' para explicar a falta de reflexão sobre o tema nas religiões semíticas, o que Schuon atribui a um 'desinteresse':
"[...] as teologias [semíticas] estão interessadas somente no homem, e levam somente ele em conta. Elas não têm interesse nem nos animais nem nos condenados, ou melhor, no seu destino pós-humano, para falar em termos teológicos; os animais são 'destruídos' assim como a danação é 'eterna'; 'e esteja encerrada a questão'. Agora, animais, não sendo seres centrais como o homem, na verdade continuam pela transmigração, ainda que talvez haja uma possível exceção aqui, que é a dos animais nobres que viveram no ambiente de um santo ou em um santuário e que são puxados para cima, até o Paraíso do santo ou dos santos do santuário; assim, dizem que o gato de Jalal al-Din Rumi—cheio de barakah— subiu ao Paraíso no encalço do mestre." (Cristianismo e Islam, Seleção de Cartas, Carta No.19)
E aqui discorda às claras dos monoteísmos semíticos:
"A subjetividade de um animal superior é demasiadamente pessoal para ser reduzida ao nada; ora, o 'nada' aqui é de fato sinônimo de 'transmigração'. Uma vez que a transmigração não é admitida no monoteísmo semítico, ela é substituída por 'nada' e assim fica-se livre da responsabilidade doutrinal que uma teologia monoteísta, tendo de permanecer centrada no homem e no humano, não pode assumir." (A Plenitude de Deus, cap. VII)
E mas de uma vez mantém essa posição:
"[...]a teologia -- tanto a islâmica como a cristã -- ensina que os animais estão compreendidos na «ressurreição da carne»: mas enquanto que os homens são enviados , seja ao Paraíso, seja ao inferno, os animais serão reduzidos ao estado de pó, pois se considera que não têm «alma imortal»; esta opinião se baseia no fato de que o intelecto não se encontra atualizado nos animais, daí a ausência de faculdade racional e da linguagem. Na realidade, a situação infra-humana dos animais não pode significar que careçam de subjetividade submetida à lei do karma e comprometida com a «roda dos nascimento e mortes», e isto diz respeito também, não a tal ou qual planta isolada sem dúvida, mas sim às espécies vegetais, cada uma das quais corresponde a uma individualidade, sem que se possa discernir quais são os limites da espécie e que grupos constituem simplesmente modos dela." (No Rastro da Religião Perene, Escatologia Universal) 
Algumas vezes Schuon se distancia de Guénon, como ao dizer que a imortalidade só pode ser obtida a partir do estado humano, o que o francês negava com sua metafísca impessoal [4]:
" [...] é preciso dizer que a negação teológica [da imortalidade da alma no caso de animais]  é justificada no sentido de que um ser de fato não pode obter a imortalidade enquanto preso ao estado animal uma vez que esse estado, assim como os estados vegetal e mineral, é periférico e a imortalidade e a libertação podem ser obtidas somente a partir do ponto inicial de um estado central como o estado humano. Com esse exemplo dá para ver que a negação religiosa, que é dogmática em caráter, nunca carece de significado. Em segundo lugar, sobre a recusa em admitir a maha-pralaya, devemos acrescentar que essa negação não é estritamente dogmática e que a dissolução cíclica total que completa a 'vida de Brahmâ' é claramente atestada por passagens escriturais como: "Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra." (Mateus 5: 18); "Onde [eles, os khâlidîn] permanecerão eternamente, enquanto perdurarem os céus e a terra, a menos que teu Senhor disponha de outra sorte" (Corão, 11:107)." (A Plenitude de Deus, cap. II)
Problemas escatológicos

Schuon busca algumas vezes encontrar maneiras de resolver os 'problemas escatológicos' das religiões [5]:
"Na lógica da escatologia, o dogma católico do purgatório provém da ideia de justificação pelas obras, enquanto que a negação Protestante do purgatório resulta da ideia de justificação pela fé. Do lado católico, haverá a objeção de que a negação do purgatório leva a indiferença e assim compromete a salvação; do lado Protestante, vão pensar, pelo contrário, que a ideia de purgatório compromete a confiança salvífica (a prapatti dos hindus) e leva a um excesso de penitencialismo e ao abuso das indulgências; em ambos os casos, as reprovações são injustas, ainda que cada lado tenha um elemento de verdade. Seja como for, se a negação protestante do purgatório leva a complacência e descuido, como os católicos pensam, e se desde o ponto de vista protestante a ideia de purgatório leva ao culto das obras em detrimento da verdade, os hindus e budistas, com não menos razão, poderiam expressar objeções análogas contra a ideia monoteísta de um inferno eterno: eles poderiam alegar que esse conceito é, não só absurdo em si mesmo, uma vez que ele abusa da noção de eternidade, mas também favorece o desespero e, numa análise final, à descrença e indiferença. Os transmigracionistas portanto vão pensar que a reação protestante ao purgatório não é nem pior nem melhor do que a rejeição monoteísta da transmigração, um conceito que também, e necessariamente, possui virtudes psicológicas, morais e místicas." (A Plenitude de Deus, cap. VII)
Aqui ele busca uma síntese entre tradições semíticas e indianas fazendo exegese de trechos escriturais:
"[...] a segunda morte da que fala o Apocalipse, assim como a reserva expressa no Corão ao apresentar determinadas palavras sobre o inferno depois da frase 'a menos que teu Senhor queira de outro modo' (illâ mâ shâ’ a-Llâha), indicam um ponto de intersecção entre a concepção semítica do inferno perpétuo e a concepção hindu e budista da transmigração; dito de outro modo, os infernos são, no fim das contas, passagens para ciclos individuais não humanos, e assim, em direção a outros mundos. O estado humano -- ou todo estado «central» análogo- está como que rodeado de um círculo de fogo: só há uma escolha, ou escapar da «corrente das formas» por cima, em direção a Deus, ou sair da humanidade por baixo, através do fogo, que é a sanção da traição dos que não realizaram o sentido divino da condição humana. Se a «condição humana é difícil de obter», como pensam os asiáticos «transmigracionistas», ela é igualmente difícil de abandonar, pela mesma razão de posição central e de majestade teomorfa. Os homens vão ao fogo porque são deuses, e saem dele porque não são mais que criaturas; só Deus poderia ficar eternamente no inferno, se pudesse pecar."  (Compreender o Islam, cap. III)
E ainda:
"As grandes Revelações têm, em graus variados um caráter tanto total como fragmentário: é total em razão de seu conteúdo absoluto ou de seu esoterismo, e fragmentário em razão de seu simbolismo particular ou de seu exoterismo; mas mesmo esse exoterismo sempre contém elementos que fazem com que seja possível reconstituir a verdade total. No Islam, por exemplo, um desses elementos é a ideia, expressa de várias maneiras, da relatividade — ou não-eternidade—do inferno; nada equivalente, pelo que sabemos, foi formulado sobre o Paraíso, exceto—da parte dos sufis— de que é a “prisão do gnóstico”; o Corão mesmo afirma que “Tudo quanto existe na terra perecerá. e só subsistirá a Face (Essência) de Allah”. O significado profundo de todas essas alusões é o seguinte: aproximando-se a completude de um ciclo maior, nas palavras do hadith: “as chamas do inferno esfriarão”; correlativamente, porém sem haver uma simetria verdadeira— uma vez que 'Minha Misericórdia é maior que Minha Ira'—os Paraísos, diante da aproximação da apocatástase, vão, por necessidade metafísica, revelar seu aspecto limitador, como se eles tivessem se tornados menos vastos ou como se Deus estivesse menos próximo do que antes; eles experimentarão um tipo de nostalgia pelo Um-sem-segundo e pela Essência, pois proximidade não é Unidade e carrega um elemento de alteridade e separatividade. Sem envolver qualquer tipo de sofrimento, o que seria contrário à própria definição de Paraíso, o aspecto 'diferente de Deus' vai se sobrepor ao aspecto 'próximo de Deus'. (Forma e Substância nas Religiões, Comentários sobre o Problema Escatológico) 
Perspectivas transmigratórias

O conceito do 'nacionalismo da condição humana':
"[A transmigração] permanece totalmente fora da «esfera de interesse» do Monoteísmo, que é uma espécie de «nacionalismo da condição humana» e por essa razão só considera o que diz respeito ao ser humano como tal. Fora do estado humano, e sem falar dos anjos e dos demônios, para essa perspectiva o que há é somente uma espécie de nada; ser excluído da condição humana equivale para o Monoteísmo, à condenação."(No Rastro da Religião Perene, Escatologia Universal)
Às vezes, como Evola, atribui um certo elitismo às religiões orientais não-semíticas:
"Os «paganismos» ofereciam o acesso aos Campos Elíseos ou às Ilhas dos Bem-Aventurados, somente aos iniciados nos Mistérios, e não à massa dos profanos; e o caso das religiões «transmigracionistas» é mais ou menos similar. O fato de que a transmigração a partir do estado humano comece quase sempre com uma espécie de purgatório, reforça evidentemente a imagem de uma «perdição», quer dizer, de uma desgraça definitiva desde o ponto de vista humano." (No Rastro da Religião Perene, Escatologia Universal)
Também faz uso da distinção metafísica entre 'perpetuidade' e 'eternidade' [6]
"Falando rigorosamente, o inferno também é, no fim de contas, uma fase da transmigração, mas antes de libertar a alma para outras fases ou estados, a aprisiona «perpetuamente», mas não «eternamente»; a eternidade só pertence à Deus, e de certo, modo, ao Paraíso, em virtude de um mistério de participação na Imutabilidade divina. O inferno cristaliza uma queda vertical; é «invencível» porque dura até o esgotamento de um certo ciclo cuja extensão somente Deus conhece. Entram no inferno não os que pecaram acidentalmente, com seu «córtice» por assim dizer, mas os que pecaram substancialmente com seu «núcleo»,  e esta é uma distinção que pode não ser perceptível desde fora; em todo caso, são eles os orgulhosos, os malvados, os hipócritas, ou seja, todos aqueles que são o contrário dos santos e dos santificados." (No Rastro da Religião Perene, Escatologia Universal) 
E da distinção entre as diferentes abordagens epistemológicas válidas, própria do Vedanta:
"Desde o ponto de vista da transmigração, insiste-se na relatividade de tudo o que não é o «Si Mesmo» ou o «Vazio» e dirão que o que é limitado em sua natureza fundamental será necessariamente também em seu destino, de alguma maneira; de modo que é absurdo falar de um estado contingente em si mas livre de toda contingência na «duração». Em outros termos, se as perspectivas hindu e budista diferem da do monoteísmo, é porque estando centradas no puro Absoluto e na Libertação, sublinham a relatividade dos estados condicionados e não se detêm neles; insistirão por conseguinte na transmigração como tal, sendo aqui o relativo sinônimo de movimento e instabilidade."(Compreender o Islam, cap. III) 
Limbos

Schuon usa a doutrina católica do limbo infantil para resolver algumas distinções [7]:
"Há contudo, entre esta maneira de ver [a das religiões semíticas] e a dos transmigracionistas —hindus e budistas principalmente— um ponto de união, e é a noção católica de «limbo infantil», onde se considera que permanecem sem sofrer, as crianças mortas sem batismo; pois bem, este lugar, ou está condição, não é outra que a transmigração, em mundos distintos do nosso e, por conseguinte, através de estados não-humanos, inferiores e superiores, segundo os casos. «Pois larga é a porta e amplo o caminho que conduz à perdição, e numerosos são os que os percorrem»: como, por um lado, Cristo não pode querer dizer que a maioria dos homens vão para o inferno, e como, por outro lado, a «perdição» em linguagem monoteísta e semítica significa também a saída do estado  humano, é preciso concluir que a frase citada diz respeito, de fato, à massa dos fracos e mundanos que ignoram o amor a Deus — inclusos os incrédulos que se beneficiam de circunstâncias atenuantes—, e que merecem, se não o inferno, ao menos a expulsão deste estado privilegiado que é o homem; privilegiado porque dá imediatamente acesso à Imortalidade paradisíaca." (No Rastro da Religião Perene, Escatologia Universal) 
E aqui novamente:
"O batismo dos recém-nascidos tem por objeto — além de sua finalidade intrínseca— salvá-los dessa desgraça [do inferno], e tem, de fato, o efeito de mantê-los, em caso de falecimento, no estado humano, que nesse caso será um estado paradisíaco, de maneira que o resultado prático —buscado pelo «nacionalismo do estado humano»— coincide com a finalidade que persegue o sacramento para os adultos: e com a mesma motivação os muçulmanos pronunciam no ouvido dos recém nascidos o Testemunho de Fé, o que, ademais, evoca todo o mistério do poder sacramental do Mantra." (No Rastro da Religião Perene, Escatologia Universal) 
Transmigração dos Boddhisâttvas

O suiço não deixou de considerar o caso excepcional dos boddhisâttvas:
"A intenção é inversa no caso muito particular da transmigração voluntária dos bodhisattvas, que passa somente por estados «centrais», logo análogos ao estado humano; pois o bodhisattva não deseja se manter na «prisão dourada» do Paraíso humano, mas quer poder irradiar-se em mundos não-humanos até o fim do grande ciclo cósmico. Trata-se de uma possibilidade que a perspectiva monoteísta exclui e que é inclusive característica do Budismo Mahâyâna, sem contudo se impor a todos os mahayanistas, mesmo entre santos; os amidistas, particularmente, não aspiram senão ao Paraíso de Amitâbha, que equivale praticamente ao Brahma-loka hindu e ao Paraíso das religiões monoteístas, e que é considerado, não como um «beco sem saída celestial», se for possível dizer assim, mas, ao contrário, como uma virtualidade do Nirvâna." (No Rastro da Religião Perene, Escatologia Universal) 
Conclusão

"Distinguimos cinco saídas póstumas da vida humana terrena: o Paraíso, o limbo ou lótus, o purgatório, o limbo-transmigração e o inferno. As três primeiras saída mantêm o estado humano, a quarta faz sair dele; a quinta o mantêm para finalmente fazer sair dele. O Paraíso e o lótus estão além do sofrimento; o purgatório e o inferno são estados de sofrimento em diversos graus; a transmigração não é necessariamente dolorosa no caso do bodhisattvas, mas está mesclada de prazer e dor nos demais casos: há duas esperas no Paraíso, uma doce e outra rigorosa, ou seja, o lótus e o purgatório; e há duas exclusões do Paraíso, uma doce e uma rigorosa, ou seja, a transmigração e o inferno; nesses dois casos há perda da condição humana, seja imediatamente, no caso da transmigração, seja no 'fim das contas' no caso do inferno. No que diz respeito ao Paraíso, é o cume bem-aventurado do estado humano e não tem um contrário simétrico propriamente falando, apesar das esquematizações simplificadoras com intenção moral; pois o Absoluto, a que o Mundo celestial pertence «por adoção» não tem oposto, senão em aparência." (No Rastro da Religião Perene, Escatologia Universal) 
Há para Schuon também o caso da 'metempsicose' no sentido que Guénon a define, ou seja, a transmissão de elementos psíquicos após a morte que é diferente de todos os outros casos.

Na próxima postagem colocaremos citações de Ananda Kumârasvâmî sobre o tema.

NOTAS:


[1] As delimitações epistemológicas do 'empreendimento schuoniano' estão presentes principalmente no seu livro chave "Unidade Transcendente das Religiões", contudo, é possível ter uma noção geral de seu projeto na capítulo 'Premissas Epistemológicas' do livro 'No Rastro da Religião Perene'. 
[2] Lendo algumas correspondências e referências perenialistas, temos a clara noção de que eles tinham um acesso bem precário a escrituras orientais. Schuon se refere algumas vezes o Manu Smriti, como é feito na citação, como se fosse fonte exclusiva e notável sobre esse tema específico, porém, se tivesse lido quaisquer outras escrituras, principalmente os Purânas, não haveria nada de surpreendente no tipo de simbolismo. Inclusive, parece, por indicações diversas, que Guénon leu os Brahmâ-Sûtras nas traduções de George Thibaut e não no original.
[3] Não consegui encontrar os desenvolvimentos dessa hipótese, se é que são feitos. De qualquer forma, não é uma conclusão óbvia como o autor quis fazer parecer.
[4] Esse é um ponto importante de discordância entre os dois autores. Em um compêndio de notas schuonianas sobre Guénon (René Guénon: Some Observations), Schuon chega a dizer que Guénon tinha 'um tipo de alergia a tudo o que é propriamente humano' e ainda que 'com sua aversão matemática a tudo o que seja concreto e humano, estranhamente -- e tragicamente -- perde de vista a qualidade intrínseca da subjetividade' e daí seu empenho para 'dissolver a pessoa humana', que para o francês seria algo 'detestável' para seu sistema de 'abstrações numéricas'.
[5] De fato é um empreendimento no mínimo ousado, uma vez que, segundo os próprios critérios schuonianos, se as religiões estão de fato focadas na salvação, e se esse é justamente o motivo 'econômico' de se expressarem como se expressam (e não de forma esotérica como supostamente é a do Schuon), e se suiço está confundindo ou retirando esse foco expressivo, seu trabalho, por consequência lógica, traz consigo o risco de tirar de algumas pessoas a possibilidade de salvação.
[6] Para mais informações sobre essa distinção, um bom livro é 'Tempo e Eternidade' de Ananda Kumârasvâmî.
[7] A doutrina do limbo infantil é fraca mesmo entre católicos. Parece-me sinceramente uma tese ad-hoc de Schuon.
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