Wednesday, January 10, 2018

As três flechas da batalha humana

A sabedoria tradicional vedântica explica que a ação pode ser entendida em três planos. Para captar isso o mais importante é compreender primeiro que a ação humana, em função de sua liberdade específica, tem a possibilidade de, por assim dizer, alterar o equilíbrio da totalidade, exigindo em seguida uma reparação da ordem: 'criando destinos' e gerando resultados.

A ilustração tradicional, tomando o ponto de vista do indivíduo que age no campo de batalha, usa a figura do arqueiro, seu arco, suas flechas e o alvo. Há flechas que ainda não foram atiradas, há flechas que estão nesse momento à mão para serem atiradas, e há as flechas que já foram atiradas (e estão no ar em direção ao alvo). A flecha que está em nossa mão nesse momento representa uma possibilidade frustrável, pode-se atirá-la ou não, e com isso, gerar novos resultados, isso é chamado na doutrina hindu de agami-karma. As flechas que estão na aljava são o samchita-karma, ações acumuladas, marcas (samskaras), sementes internas que, em algum momento se tornarão agami-karma e terão de ser ou lançadas, ou destruídas. A flecha uma vez lançada foge a todo controle e seus efeitos serão experimentados necessariamente, e esse é o chamado prârabhda-karma.

Fabre d'Olivet, em seu maravilhoso comentário dos Versos Áureos de Pitágoras, ainda que tomando-a desde um ângulo macrocósmico, expõe exatamente a mesma doutrina dos três planos da ação: o Destino é representado pelo homem material e pela natureza (incluindo aí a sociedade), a liberdade é a Vontade humana, e a Providência é a sujeição, desde a eternidade, da Vontade humana. Comparando essa doutrina, de inspiração pitagórica, com a dos estoicos, d'Olivet chega à seguinte conclusão:
"A confusão de palavras só podia produzir, e de fato produziu, entre os estoicos, uma inversão de ideias que foi um resultado muito infeliz; pois, como eles estabeleceram, de acordo com seu sistema, uma cadeia de bem e mal que nada poderia romper ou alterar, poder-se-ia facilmente inferir que, estando o Universo sujeito à atração da fatalidade cega, todas as ações estão aqui necessariamente determinadas antecipadamente, forçadas, e portanto em si mesmas indiferentes; de forma que o bem o e  mal, a virtude e o vício, são palavras vãs, coisas cuja existência é puramente ideal e relativa."
Ele inclui em sua crítica ainda os platonistas (ainda que não critique Platão) por adotarem a interpretação que se tornaria comum entre diversas seitas gnósticas, e que consiste no erro de confundir a Providência com a Vontade:
"O grande erro dos platonistas, exatamente contrário ao dos estoicos, foi confundir o poder da Vontade com o da Providência, e tendo instituído este último como princípio do bem foram colocados na posição de manter que há duas almas no mundo, uma beneficente, Deus, e uma maléfica, a Matéria. Esse sistema, aprovado por muitos homens celebrados na antiguidade [...] oferece, como eu observei, a grande desvantagem de dar ao Mal uma existência necessária, quer dizer, uma existência independente e eterna." 
Aliás, é bom acrescentar que nas escrituras hindus nem os animais, nem os devas têm à sua disposição o agami-karma, o que mostra que o aspecto dinâmico do equilíbrio/desequilíbrio da totalidade cósmica está justo na mão dos humanos, e daí sua posição axial na ordem das coisas. Tendo compreendido isso, e entendendo também a polissemia do termo karma, fica fácil captar o seguinte trecho do Gîtâ:

Devân bhâvayatanena
Te devâ bhâvayantu vah
Parasparam bhâvayantah
Shreyah param avâpsyatha

(Por esse sacrifício) que tu possas alimentar os devas
Que os devas possam alimentar-te,
Alimentando-vos uns aos outros, 
Obtereis (devas e homens) o bem supremo.

BG, III -11

Aqui o termo 'bhâva' é crucial. Ele pode significar tanto 'existência', 'vir-a-ser', como 'nutrir', no sentido de 'dar a vida' ou 'alimentar'. Daí que a tradução pode contemplar até mesmo a reciprocidade ontológica, no sentido de 'gerarem-se mutuamente'.

O filósofo Mário Ferreira dos Santos, fazendo bom uso dos mitos dados por Platão em seu Protágoras, não deixou de tangenciar a questão, criando a distinção dinâmica entre possibilidades epimeteicas e prometeicas -- essas entregando o fogo na mão dos humanos, aquelas representando o Destino, o prârabhda-karma que não pode ser mais modificado. O agora, que é experimentado como presença simultânea e absoluta no campo metafísico da Providência, é dado no campo da ação humana interseccionado por  muitos vetores: é o futuro possível, sem deixar de ser livre-arbítrio presente, e condicionamento do passado inalterável.  

Isso cria uma notável distinção, no campo conceitual ao menos, entre a ação desapegada praticada por estoicos, por exemplo, e o karma-yoga preconizado no Bhagavad Gîtâ: os estoicos grecorromanos, se fossem seguir as consequências lógicas de suas doutrinas (e em geral não seguem, e nisso são positivos), praticariam o desapego tanto quanto ao Destino como quanto à Providência, uma vez que, em última instância eles compreendem que ambas são a mesma coisa.

Portanto, não é exagero dizer que qualquer doutrina que falhe em dar conta das relações entre Providência, a Vontade e o Destino, acaba fracassando em vários outros pontos necessariamente, e impede assim a compreensão da articulação prakrítica da situação humana (rajásica) em relação a seus complementares tamásicos (mundo da natureza) e sáttvicos (mundo divino).

Sunday, January 7, 2018

O caminho dos perplexos

Começo a ler a tese de Christopher Beckwith de que o pirronismo tem estreitíssimas relações com o budismo (Greek Buddha). Em princípio, gosto de julgar que é verdade. Gosto inclusive de crer que os filósofos antigos empreendiam jornadas com o objetivo exato de realizar esse tipo de intercâmbio, e gosto de pensar que as civilizações antigas eram bem menos isoladas em seus aspectos intelectuais do que se pensa, de forma que essas viagens eram não só comuns como eram o próprio movimento de respiração das culturas antigas.

Não afirmo que é fato no caso do fundador histórico, e um tanto mítico, do ceticismo ocidental, nem até que ponto Pirro absorveu o budismo antigo em sua doutrina: deixo a polêmica aos mais eruditos, aplicados e competentes. O fato é que há aí, ainda que em modestos e precários registros, o suficiente para reconhecer, ao menos estruturalmente, uma inegável irmandade de caminho, que eu vou chamar aqui de caminho dos perplexos.

Em postagem anterior escrevi um pouco sobre o caminho da ‘busca da desonra’ dos cínicos. Faço essas postagens como singela menção honrosa, nota mnemônica jogada no espaço virtual, porque entendo que toda escola filosófica solidamente constituída é, de certa forma,  devoção a um aspecto da divindade, que é em si mesma inesgotável. Vendo assim, entendo que até céticos e niilistas participam da grande devoção (voluntária e involuntária) que todos prestam ao princípio inefável de todas as coisas.

O Buda, é só o que se fala por aí, se recusou a responder questões teológicas e metafísicas – o budismo não quer lidar, ainda que escorregue no seu voto às vezes, com categorias conceituais como Deus, mundo, alma, eu. Narram que o príncipe xátria ensinou que ‘todos os dharmas são anitya (impermanentes), todos os dharmas são duhkha (instáveis, segundo Beckwit), todos os dharmas são anâtman (sem uma identidade ou si mesmo inato). Ora, curioso - dizem que Pirro de Élis, o objeto dessa postagem,  afirma a respeito dos ‘pragmata’ que ‘todos são diaphora (indiferenciados), são astathmêta (instáveis) e anepikrita (não fixados).

Beckwith observa que o termo pragma significa ‘algo, coisas’, mas tem o sentido abstrato de ‘objeto de cogitação ou disputa’ (além de alguns outros, confiram na obra), mas que a ênfase deveria ser coloca nas disputas entre diversas escolas. Plutarco usa o termo da seguinte forma:‘eles discutem sobre se o pragma é bom ou mal, ou preto ou branco’. Pirro teria assim preocupações, não metafísicas, mas éticas (pragmas), de forma que o termo toma um sentido parecido com o de dharma, em um dos significados acentuados pelas tradições budistas.

O caminho cético de Pirro, como muitos  outros da antiguidade, qual indicado pela  tese de Hadot, é um caminho espiritual. E assim, as três características dos pragmata apresentam, no fim das contas, a estrutura fundamental usada pelo cético na busca da ‘apatheia’ seguida pela ataraxia, que seria o fim último do ceticismo pirrônico (e que o autor do livro aqui comentado compara com nirvana, o que, creio eu, é exagero, mas reiteiro, sejam céticos, confiram lá a obra. É boa.).

Beckwith faz ainda interessante observação sobre o desleixo na tradução clássica do termo duhkha. Ainda que no budismo atual o termo tenha sido traduzido, celebrado e entendido como sofrimento, puro e simples, e com todas as conotações que carrega na mente popular, há´evidências etimológicas que colocam dúvidas sobre se era assim mesmo no budismo antigo.

Monnier-Williams, talvez a mais notória referência ocidental quando se fala do sânscrito, propõe que o termo  duhkha seja derivação ou adaptação prakrítica de duh-stha, que por sua vez é um composto com a raiz stha (origem do estar, stand); o mesmo ocorre com sukha, oposto de duhkha, que derivaria de suh-stha, cuja tradução seria algo como 'ter um bom eixo de rotação', como a roda de uma carruagem que corre livremente por estar num eixo firme.  Assim duh-stha seria mais apropriadamente ‘instável’ o que é exatamente o significado do astathmêta de Pirro, e suh-stha, estável (ao redor de um eixo), e não dor e prazer como se quer nas traduções correntes. Assim, dá para dizer que o ceticismo, tanto no caso do budismo como do pirronismo, quer que nos sustentemos no eixo das coisas sem aderir internamente a nenhum ponto de vista: estáveis, sem movimento interno, em perfeita tranquilidade, indiferentes a todas as disputas.

Aliás, é necessário notar também, antes de seguir adiante e antes que me esqueça: o famoso tetralemma usado por Nagarjuna, aparece também entre os céticos gregos, e era desconhecido em todas as outras escolas gregas, então a coisa nos deixa pensando...

E  caímos no Diógenes Laércio, fonte incontornável: ele diz que Pirro, que acompanhou Alexandre em suas viagens, de fato se encontrou com os famosos magos persas, e também com os tão falados gimnosofistas, chamados às vezes de shramanas; e foi justo a admoestação de um desses ascetas que levou Pirro à vida espiritual. A coisa ocorreu assim: parece que o nosso filósofo escrevera um poema louvando Alexandre, o que lhe rendeu dinheiro e algum reconhecimento. Em determinado ocasião ouviu um dos tais gimnosofistas censurar seu próprio mestre Anaxarco por se vender aos reis e aos palácios, e parece que a carapuça lhe serviu e ele tomou a repreensão para si de tal forma dolorosa que se retirou da vida social e foi viver em solidão.

Aparece em outras narrativas, retratando-o de certo sua idade avançada, considerado como santo pelos seus compatriotas, sendo inclusive liberado de pagar impostos em sua cidade. Não faltam as anedotas que o tipificam às vezes como um sujeito bem estranho. Tem a história de que permaneceu tranquilo quando todos desesperavam no navio, com a chegada da tempestade -- notando ali um porco que continuava comendo sem se importar com o temporal,  apontou a ‘apatheia’ do animal como modelo. Em outra história, meio difícil de encaixar em qualquer esquema, foi visto correndo amedrontado de um cachorro (chegou a subir em uma árvore, dizem). Ao ser questionado sobre tal reação pouco filosófica, respondeu que ‘não era fácil se livrar de toda a natureza humana’. Antígono de Caristo dizia que se comportava como um louco, andando a esmo, se colocando em perigo, tentando se jogar de precipícios, sem distinguir entre o que era bom e mau (o que me parece mais uma personificação anedótica do que realidade), e o imortal Aristóteles, belicoso e astuto, confirma em sua metafísica que essa é mesmo a atitude de alguém que nega o princípio da não-contradição (o que um cético poderia achar injusto, pois Pirro não negava ou afirmava nada)

E não é só no budismo ou no ceticismo que a perplexidade ou a suspensão do julgamento é um caminho (ou uma paragem?):  de fato, em toda escola mística a adoção de um ponto de vista (darshana) é que é algo temporário, uma espécie de sâdhana ou prática preparatória para coisas mais profundas. Parece que muitos hoje tomam as doutrinas como elaborações lógicas ou sistemáticas definitivas, e, aliás, é  nesse sentido que o trabalho do supracitado Hadot (que talvez eu resenhe no futuro), tenha surgido, e recentemente se popularizado, como remédio eficaz para esse tipo particular de ignorância das classes intelectuais.

Como terminar essa postagem sem fazer aqui menção a tantos outros perplexos diante do não-saber luminoso? Plotino em suas Enéadas titubeando e se enrolando diante da definição do Uno, e Dionísio Areopagita diante da treva luminosa, ou o não-saber em Nicolau de Cusa, em Mestre Eckhart ou no anônimo do clássico medieval Nuvem do Não-Saber? Lembramos também o fértil uso do paradoxo na tradição zen ou nas histórias Mula Nasrudin.  Como ignorar a prática da ‘destruição mental’ (manonasha) dos vedânticos, ou os livros religiosos tardios dos sikhs dizendo que todos louvam o Absoluto com qualquer filosofia ou até  com xingamentos e impropérios?

Os céticos são um espinho, sempre nos lembrando da inanidade dos projetos conceituais humanos, e apontam sempre que as modestas aquisições que temos nesse setor, quando cooptadas pelo orgulho e pelo ego acabam sendo sempre pequenas repetições da Torres de Babel em cada indivíduo, cada geração, cada cultura.

Deve o homem desesperar diante do não-saber? Não. Se Diógenes toma um cão por mestre, Pirro toma até mesmo um porco. A tempestade passará. A lição cética é também a de tranquilidade; a caravana de Pirro não é de desepero - não devemos confiar demais na capacidade racional e discursiva. A ataraxia que os cínicos obtinham pelo desapego à opinião alheia, os céticos obtinham pela suspensão do apego à mente discursiva em suas pretensões absolutistas: através de um corredor espelhado de indução de perplexidade o cético permanecia impassível e tranquilo.  Permaneciam no eixo das coisas, dentro daquele instante indizível entre o sonho e o estado de vigília, o segundo anterior ao nascer ou por do sol no simbolismo tradicional. E quase ia me esquecendo, mas a imagem que encabeça essa postagem é da deusa Baglamukhi cortando a língua do linguarudo; inspiração que nos vem naturalmente ao contemplarmos o tema, e que dispensa explicações.

Friday, January 5, 2018

As doutrinas de renascimento - conclusões (parte II)



Nâsato vidyate bhâvo (O asat não tem existência)
Nâbhâvo vidyate satah (O sat não tem não-existência)
Ubhayor api drshto ‘ntas (Essas duas proposições são vistas com certeza)
Tvanayour tattva darshibhih (Por aqueles que percebem a verdade)

Bhagavad Gîtâ 2,16

Eu fiz e refiz essa postagem inúmeras vezes, indo pelo caminho puramente lógico e metafísico. Contudo, decidi fazer a coisa de forma bem mais simples e direta: vou apenas indicar que a doutrina do Guénon e do Kumâraswâmî sobre o tema do renascimento é interpretação livre do Veda, original e diferente das expressas pelos âchâryas hindus, e que é parcialmente fundada na interpretação advaita-vedânta de Shankarâchârya; de forma que a visão do Guénon sobre a Possibilidade Universal é nada mais que a chamada doutrina mâyâvada, já conhecida entre os hindus, e que tem já histórica oposição em diversas escolas, por diferentes ângulos. Para estudarem essas refutações leiam Ramanujâchârya, Madhwâchârya, Vadirajâchârya ou Abhivavaguptâchârya.

Vamos aos três trechos da demonstração guenoniana destacados na postagem anterior:
I- A Possibilidade universal e total é necessariamente infinita e não pode ser concebida de outro modo, já que, ao compreender tudo e ao não deixar nada fora dela, não pode estar limitada por nada absolutamente; uma limitação da Possibilidade universal, posto que deve lhe ser exterior, é própria e literalmente uma impossibilidade, quer dizer, um puro nada.
As categorias dadas diretamente nos Upanishades são sat, asat, e sat-âsat. 

A Possibilidade Universal, usada por Guénon, é o que os vedânticos chamam de Mâyâ, que segundo Shankarâchârya não é nem ‘sat’ nem ‘asat’, e portanto os proponentes dessa doutrina dizem que é anirvachanîya (inefável). 

A processão do Ser Real (Âtman) pelos diversos Graus de Ser (na terminologia guenoniana) seria assim uma produção dessa Mâyâ. Quando vista desde o ponto de vista do Âtman, essa Mâyâ se chama avidya (ignorância). Essa é em linhas gerais a doutrina que se chama mâyâvâda. O universo é uma processão do Ser Real por estados de cumulativa obscuridade cruzada (limitações compossíveis, negações) ou ignorância de Si Mesmo (ajñâna). A libertação (mukti) seria a eliminação súbita ou gradual (kramamurti) desses véus e a identidade suprema com o Brahman (eliminação que na verdade também é irreal, pois a ignorância também é irreal).

Bom, comecemos pensando que, se Mâyâ não é nem sat nem asat, nem satâsat, como é que alguém pode deduzi-la por inferência, se ela não se refere a nenhuma das categorias de conhecimento? 

Portanto, quando Guénon diz que a Possibilidade Universal é infinita, ela só pode ser Infinita Possibilidade e não Infinita Realidade, Verdade ou Existência (sat). Assim, não tendo essa positividade metafísica, a Mâyâ só pode ser destituída de um Si Mesmo (Âtman), de maneira que a postulação da existência do universo precisaria logicamente, e precisa de fato de um Ato Universal deliberativo, vindo do Brahman. E é assim que está no Veda quando se diz, em frase memorável, que o Brahman quis tonar-se muitos (bahu syâmi).

Sobre esse tema muita confusão vem talvez da dificuldade de entender camadas da linguagem: os trechos excepcionais do Veda que dizem que 'no princípio era asat', na verdade dizem, como explicam os âchâryas nos Brahma-Sûtras, que há dois modos de usar o termo sat, e que em comparação com o sat de 'todos esses seres', divididos entre jîvas (sencientes) e jagad (insencientes), Brahman coloca-se como se fosse asat (e é daí que vem a expressão neti-neti, pois Brahman não é uma jîvâ, nem é jagad), pois não é afetado pelas limitações daqueles, e é desse modo, um tanto metafórico, esguelhado, talvez poético mesmo, que é compreendido e chamado de Não-Ser (Brahma-Sûtras I, 4, 15).

Portanto, segundo o Veda o Brahman é melhor e mais apropriadamente compreendido como sat, ainda que de seja um sat dito de maneira inefável e, sei lá, análoga. Deve ser  portanto compreendido como asat de forma metafórica em relação ao cosmos. Ao passo que o cosmos  ou a totalidade, pode ser compreendida mais apropriadamente como satâsat, ou, de forma metafórica, como sat.

Assim, se formos pensar bem, Mâyâ não tem condições de compreender sat e transcendê-lo positivamente (espalhando ignorância e ilusão), pois se fosse o caso ela correria por fora do fio ou coluna que liga Brahman a todos os seres, tornando-se um abismo entre duas positividades. Em alguns casos, quando contemplamos sob certo aspecto,  e sob efeito da fraqueza mental humana, chega a parecer que de fato há uma força de absurdo avançando por cima do Ser - Plotino, o filósofo grego, digamos aqui de passagem, chega perto de posições desse tipo, absurdistas, gnosticistas, dando uma efetividade ao não-ser da matéria, e depois, em outros lugares, recua e notamos que foi uma espécie de fraqueza da expressão.

No fim das contas, não tem sentido dizer que a Possibilidade Universal pode ou não pode ser limitada em si mesma, como se fosse entidade positiva ou uma legítima opositora lógica do asat, pois ela não tem um ‘Si Mesmo’ que possa ser sujeito de limitações, e quando se diz que é ilimitada, ela é ilimitada enquanto possibilidade objetiva, criada, desde o ponto de vista humano, para entender a amplitude da Icchâ-Shakti (Vontade Divina) que nos parece 'bifurcada'.
II - Supor uma repetição no seio da Possibilidade universal, como se faz ao admitir que haja duas possibilidades particulares idênticas, é supor uma limitação, já que a infinidade exclui toda repetição: não é senão no interior de um conjunto finito onde se pode voltar duas vezes a um mesmo elemento, e mesmo esse elemento não seria rigorosamente o mesmo senão sob a condição de que esse conjunto forme um sistema fechado, condição que não se realiza nunca efetivamente.
As possibilidades particulares são ou jagad ou jîvâs. Que a jîvâ não pode ser ao mesmo tempo duas jîvâs é óbvio; que a jîvâ é idêntica a si mesma é também óbvio. Que ela seja idêntica ao jagad, ou que o jagad seja o si mesmo da jîvâ não é verdade. Ou seja, a coisa é simples: as jîvâ mantém sua unidade no lînga-sharira e nas disposições do buddhi individual cruzando os diversos mundos e sendo destruido na pralaya, essa é sua ‘possibilidade particular’ e não alguma composição com o corpo de cinco elementos.
III- Uma vez que o Universo é verdadeiramente um todo, ou melhor, o Todo absoluto, não pode haver em nenhuma parte um ciclo fechado: duas possibilidades idênticas seriam uma só e mesma possibilidade; para que sejam verdadeiramente duas, é necessário que difiram por uma condição ao menos, e então não são idênticas. Nada pode voltar nunca para mesmo ponto, e isto inclusive em um conjunto que é em si mesmo indefinido (e não já infinito), como o mundo corporal: enquanto se traça um círculo, se efetua um deslocamento, e assim o círculo não se fecha senão de uma maneira inteiramente ilusória, e há nisso mera analogia, mas pode servir para ajudar a compreender que, «a fortiori», na existência universal, o retorno a um mesmo estado é uma impossibilidade: na Possibilidade total, estas possibilidades particulares que são os estados de existência condicionados são necessariamente em multiplicidade indefinida; negar isto, é querer limitar a Possibilidade; é necessário, pois admiti-lo, sob pena de contradição, e isso basta para que nenhum ser possa voltar a passar duas vezes pelo mesmo estado.
Tendo portanto comentado a Possibilidade Universal desde o ponto de vista das escrituras, evito mergulhar de cabeça no turvo campo lógico, insuficiente quando o assunto em si mesmo não é matéria de inferência (ainda que Guénon o faça).  Ao transferimos tudo para o campo da tal Possibilidade Universal, dentro da qual cabem coisas que ninguém sabe, que não têm nenhuma medida com nada, e que está inclusive acima do Ser (que a limita), não há base nenhuma para pensar.

Ademais, se é a postulação dialética do nada absoluto que permite-nos subir até a esfera dos princípios, ficamos totalmente sem ferramenta (e sem tapete) quando Guénon nos diz que o nada absoluto se opõe é à Possibilidade Universal e não ao Ser, sem demonstrar onde é que ele conseguiu instrumentos para optar pelo seu ponto de vista ao invés do contrário.

Resta-nos, portanto, apenas olhar para a interpretação de Kumâraswâmî sobre a transmigração como ocorrendo entre dois ciclos que são, por sua vez, os Estados de Ser da teoria guenoniana. A teoria deles é a seguinte:

1) Há um dilúvio (ou mini-pralaya) entre cada manvantara.
2) Esse dilúvio elimina o nosso mundo dos cinco elementos e sobe até perto da esfera da lua destruindo todo o resto que está na atmosfera.
3) As jîvâs ficam lá na esfera da lua (sendo alimento para os deuses), esperando os patriarcas  que vão chegar no dilúvio, e que só voltam ao mundo individual dos cinco elementos físicos no manvantara seguinte.
4) Essa transição entre dois manvantaras é símbolo para a transição entre dois Estados de Ser segundo a representação geométrica guenoniana.

É uma interpretação simbólica interessante, e explicaria algumas coisas. Contudo, deve ser colocada no seu lugar apropriado.

A primeira tese, de que há um dilúvio entre cada manvantara (além dos dois grandes dilúvios ao fim do kalpa, e ao fim da vida do Brahmá), é uma interpretação (interessante, inclusive), e Kumaraswami mesmo sabe disso: não há narrativa purânica, nem confirmação alguma de que o tal dilúvio ocorra regularmente em todos os 14 manvantaras, ou quiçá em ciclos ainda menores como yugas. Ademais, no samkhyakarika é dito, por exemplo, que o linga-sharîra é criado no 'começo' e destruído somente no pralaya, o que leva a crer que sua unidade se mantém por um kalpa inteiro, e, como ele é feito de elementos sutis, nada impede que volte ao mundo físico no mesmo manvantara, ou seja, antes da hipótetica destruição dos cinco elementos contemplada por Kumâraswâmî. 

Que a transição entre dois manvantaras seja uma transição entre dois Estados de Ser, ao modo guenoniano, é também uma possibilidade interpretativa criativa e fértil, contudo, nenhuma dessas interpretações é claramente expressa por nenhum âchârya védico. Podemos elocubrar simbolicamente que quando se diz que as jîvâs viram alimento para os devas, elas perdem a sua individualidade original e descem com outro envoltório (essa especulação eles nem fazem, mas já faço logo, por via das dúvidas). Isso é pouco provável pois a disposição do linga-sharîra se dá com elementos sutis próprios, constantes e individuais que vão manter a unidade do buddhi (diferenciando-se da prakrti) durante todo o processo.

É possível dizer que a doutrina é a mesma dos kardecistas? Não. Há similaridades estruturais, digamos, na descrição, e uma montanha de diferenças relevantes e incontornáveis. Contudo, o erro guenoniano foi tentar ocultar até o que era francamente parecido, o que é uma atitude muito estranha e muto pouco espiritual inclusive.  Schuon chegou a confessar em suas observações que era frustrante tentar ajudar o Guénon contra os teósofos, e vê-los ter mais razão sobre o tema. E ceteris paribus a doutrina dos teósofos está de fato mais próxima das descrições védicas (esotéricas ou não) do que a do Guénon, que é um modo de representar a coisa (geometria tridimensional) completamente inusitada nas fontes ou grandes nomes tradicionais hindus.

As provas lógicas do Guénon contra a reencarnação, baseadas no conceito de Possibilidade Universal e sua ilimitação (ou limitação), no meu modesto entendimento, não podem levar à definição de uma identidade unívoca das possibilidades particulares, pois na ordem da razão humana o possível é inferido a partir do real e não o contrário. Tampouco uma suposta intuição direta do Guénon resolveria (segundo ele todo possível é real, e somente o metafísico é real, então concluam algo com isso); uma intuição individual tem de ser corroborada pela autoridade da shruti segundo métodos muito bem delimitados de hermenêutica e dialética, de forma que ele segue em conflito com muitos âchâryas e comentaristas tradicionais hindus que resolvem a questão de outras forma como, por exemplo, usando a vontade ativa do Brahman ao invés de uma processão de negações.

É necessário, e justo, dizer que tanto Guénon, como Shankârâcharya, não negam que, desde o ponto de vista da não-dualidade, a Mâyâ é também Icchâ-Shakti de Brahman  (Guénon de fato o nota em seus livros). Contudo pede-se implicitamente aqui a adesão ao bilogismo advaitino (solução não-védica, herdada do budismo de Nagarjuna), que é apenas uma das formas de resolver a questão. Se os não-dualistas mâyâvadas entendem que, em algum sentido, a Shakti é poder transitivo do Ato Universal, um poder de Brahman, é inevitável fixar que, para os seres, essa Shakti se torna uma 'opressão' ontológica e gnosiológica chamada avidya. A questão pode deslizar indefinidamente, e entreter-nos em definições circulares, e pode inclusive levar a acreditar que o ponto de vista do Guénon é indestrutível, qual o deus grego Proteu, ganhando o direito de defender contradições, pulando de um nível para outro quando pressionado logicamente e mudando de forma ao ser atacado.

Em alguns pontos o que parece separar as águas é a questão axiológica ou ética. Guénon responderia que a dificuldade é meramente humana, o que nos remete à necessidade de um discurso e autoridade não-humana, eterna, que é o próprio Veda. Se Guénon adere a essa autoridade, para ser coerente, ele deveria se colocar como representante de uma das escolas ortodoxas de interpretação do Veda e falar em nome delas e não como muçulmano.

Contudo, e esse é um bom ponto, o Brahman guenoniano segue sendo livre de qualquer limitação, porém não livre para limitar (svâtantrya), a não ser esquecendo de Si mesmo, desconhecendo-se enquanto limita, ou desconhecendo as limitações que produziu (esquecendo inclusive as possibilidades particulares irrepetíveis). O Brahman guenoniano quando lembra de Si Mesmo desconhece o mundo, e inclusive desconhece a obra guenoniana, seus argumentos, desconhece o próprio Guénon e sua preocupação com a Modernidade e suas crises, é completamente indiferente.

A minha conclusão sobre o punarjanman, ainda que pouco esclarecedora, parece-me que é a mais justa e a única possível, não tendo intuição direta sobre a coisa. Basicamente, após alguns anos meditando sobre a questão, sou levado a dizer que não há uma definição exata, matemática ou dogmática do punarjanman: o conceito dá-se em campo operacional e simbólico flexível, escorrega nas definições, pode ser matéria de fé ou de autoridade escritural entre hindus, ou ainda matéria de conhecimento direto yóguico, dizem. Lemos nas escrituras hindus, como o Garuda Purâna, por exemplo, um rico quadro imagético das punições dos infernos e das delícias dos paraísos. O Manusmriti, por outro lado, é rigoroso e legalista, descreve renascimentos baseando-se em infrações muito exatas. Os Samhitas pouco ou nada dizem sobre o tema -- o que Evola não deixou de observar. O Vedânta narra sobre o yogue sendo puxando pelo Homem de dentro do Sol e saindo do samsâra, lemos no Mahâbhârata as operações da lei invisível do karma ligando todas as esferas do Universo: devas, humanos e animais interagindo e trocando de lugar numa ciranda estonteante de personagens e de sacrifícios (yajñas) em inúmeras esferas, onde se confundem as limites nos apresentando o tempo eterno de infinitas possibilidades.

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