Saturday, September 5, 2015

O renascimento segundo Ānanda Kumāraswāmī

A posição de Ānanda Kumāraswāmī sobre o tema da reincarnação é, em linhas gerais, a mesma do Guénon (que veremos depois): a reincarnação é uma impossibilidade, e as doutrinas antigas falam, na verdade, de metempsicose, transmigração e/ou palingênese. Por inúmeras vezes ele defende, com muitas citações, que o Senhor (Îshvara) é o único transmigrante (samsarin). Essa é uma posição metafísica legítima (paramârtha), contudo, deve ser contrabalanceada com o ponto de vista prático (vyavahâra), o que o autor não faz. Ele tem algumas pecularidades, que merecem ilustração:

Eu compartilho da visão de René Guénon de que todas as aparentes referências à reincarnação do indivíduo nessa terra devem ser entendidas metaforicamente. […] A maioria dos textos hindus que parecem falar de ‘reincarnação’ são, ou descritivos da vida presente, ou de qualquer tipo de vida, ou da Vida que é comum a todas as coisas, e que passa de um para outro com absoluta imparcialidade. Isso não implica em negar que os leigos, partindo do pressuposto da identidade do indivíduo ao longo da vida, nunca presumiram que a ‘alma’ ou ‘personalidade’ reincarna; queremos simplesmente dizer que tal ponto de vista é heterodoxo, seja no Ocidente ou no Oriente.”

 Em seu livro “A New Approach to the Vedas”, publicado originalmente em 1933,  Kumāraswāmī parte do pressuposto de que a forma “original e pura” da doutrina do renascimento implicava um retorno da condição angélica para a condição corporal de acordo com a lei natural (shásita, rtvya, dharmya). Esse processo afetaria todos aqueles que 1) não tivessem obtido a libertação absoluta (ati-mukti), ou que 2) não tivessem nem embarcado na ‘viagem angélica’ (devayâna), nem processo de libertação gradual (krama-mukti), nem estivessem em vias de escapar da sujeição às ações apegadas (kámya-karma) que são os determinantes do mérito e demérito (punya-pâpa).  O autor utiliza ainda outro pressuposto, considerando-o (nessa ocasião) ‘menos certo’, de que o retorno (punar âvartana) se realizaria em outra era -- seja em um manvantara, yuga ou kalpa, ou mesmo em outro ‘para’ ou seja, com a ressurreição do ‘cavalo cósmico’, o nascimento de um novo Brahma-Prajapati. 
"A propósito do artigo 'Reincarnação' da sra. Rhys Davids e do artigo destaque 'Sobre o Renascimento' na edição de 8 de janeiro de 1942, e com especial referência à afirmação 'Na Índia, esse é um ponto cardeal do Dogma Hindu', eu poderia dizer que, enquanto de fato há na Ìndia uma doutrina da transmigração (no sentido da passagem de estados do ser a outros estados do ser), a Reincarnação (no sentido de retorno de indivíduos para uma encarnação na terra) não é uma doutrina hindu. A doutrina hindu é, nas palavras de Shankaracharya que 'Não há outro transmigrante (samsarin) além do Senhor (Îshvara)".  (Carta de Coomaraswamy ao sr. Light, de Londres em 21 de maio de 1942)  [1]
Às vezes Kumāraswāmī leva em conta alguns critérios de hermenêutica hindu, como o da unidade da revelação do Veda [2]:
“Os eruditos modernos em geral concordam que a ‘reincarnação’ não é uma doutrina védica, mas uma doutrina de origem popular ou desconhecida que foi adotada e tomada como certa já nos Upanishades e no Budismo. Deixando o Budismo de lado por agora, […] seria inconcebível desde o ponto de vista hindu ortodoxo e tradicional que algo que não seja parte de uma shruti possa ter sido ensinado em outra; em tal material, não é possível imaginar um hindu ortodoxo “escolhendo” entre o Rig Veda e os Upanishades, como se um deles estivesse certo e o outro errado. Essa dificuldade desaparece se acharmos que a teoria da reincarnação (distinta da metempsicose e da transmigração) não é realmente ensinada nos Upanishades: nessa conexão chamamos atenção especialmente para a afirmação do BU IV, 3.37 onde, quando uma nova entidade está ‘vindo a ser’ faz-se com que  os elementos fatoriais do novo composto digam, não “Aqui vem tal ou tal indivíduo (previamente falecido), mas “AQUI VEM O BRAHMAN”[3](“The Coming to Birth of the Spirit”: What is Civilization? And Other Essays)
Em carta à sua própria esposa, Luisa Kumāraswāmī, datada de 1932, ele expõe a interessante teoria de que o Rig Veda ensina a "ressurreição em corpo glorificado" e não a reincarnação, e que o renascimento é a transposição de uma energia, semente ou ‘tipo’ genérico:
“O Rig Veda ensina a ressureição (em corpo glorificado) e não a reincarnação no atual sentido da palavra. É duvidoso que a ‘reincarnação’ seja ensinada mesmo no budismo, onde é expressamente enfatizado que nada (no-thing) é transmitido de uma existência passada a uma futura, ainda que a posterior seja determinada pela anterior.  Isto é, no que diz respeito a nascimentos na terra, é um outro nama-rupa (individualidade) que vai colher os frutos da nossa conduta. A expressão ‘renascimento como um animal’ significaria então que, se todos os homens se comportassem de maneira animalesca, o resultado poderia ser que, com o tempo, somente  animais nasceriam na terra;  a vida, determinada por causas mediatas (karma) não encontraria senão expressões animais aqui. Falando de maneira aproximada, não é a personalidade que reincarna, nem o indivíduo, mas o tipo [...]. O que é transmitido não é uma entidade, mas um tipo de energia (virya), ou seja, na prática, é a ‘semente’, como em ‘a semente de Abraão’”
Em outra correspondência, dirigida à sra. Ruth Campbell em 1938, Kumāraswāmī diz que a transmigração não depende de espaço e tempo mas é um processo ‘interno’:
 “O que eu disse é que a reincarnação não foi ensinada [na Índia] e representava uma impossibilidade. Isso não exclui a validade da metempsicose por um lado e da transmigração por outro lado. Eu pensei que eu tinha deixado bem claro que a transmigração não tem nada a ver com o tempo ou espaço, mas ocorre inteiramente 'dentro de si', e vai da periferia ao centro do ser. Eu acho que isso está tão claro no artigo que basta uma releitura."
E no seu artigo “The Flood in Hindu Tradition” se aproxima bastante da posição ou mesmo exposição metafísica guenoniana:
“Um repetição exata de uma experiência passada é inconcebível metafisicamente, uma vez que duas experiências idênticas, vistas desde o ponto de vista do presente absoluto, no qual todas as potencialidades do ser são simultaneamente realizadas, constituem uma única e mesma experiência. A metafísica afirma o caráter único de toda mônada e é precisamente essa unicidade que faz do indivíduo, incognoscível como ele é em si mesmo, ainda que inteligível como ele é em e do Si Mesmo.” [4]
Defende, em outro artigo (The coming of birth of the Spirit), a distinção entre metempsicose, transmigração e a concepção reincarnação moderna:
"Não digo que a teoria da reincarnação (re-incorporação do mesmo homem e verdadeira personalidade do falecido) nunca foi uma crença na Índia ou em algum outro lugar,mas concordo com o sr. Guénon em que 'nunca foi ensinada na Índia, mesmo entre os budistas, e é essencialmente uma noção europeia', e ainda que 'nenhuma doutrina tradicional autêntica jamais falou de reincarnação'. Ao diferenciar a reincarnação, tal qual definida acima, da metempsicose e da transmigração pode-se acrescentar que o que se quer indicar com metempsicose é o aspecto psíquico da palingênese, ou em outras palavras, a herança psíquica, e o que se quer dizer com transmigração é uma mudança do estado ou nível de referência excluindo, por definição, a ideia de uma retorno a qualquer estado ou nível que já foi ultrapassado. A transmigração do âtman (espírito) individual só pode ser distinguida como um caso particular de transmigração do paramâtman (Espírito, Brahman).
E, da mesma forma como fazem Évola e Schuon, busca uma origem para a suposta confusão moderna entre  reincarnação e transmigração, atribuindo-a a um apego à noção de individualidade:
"A mente moderna, com seu apego à 'individualidade' e suas provas de sobrevivência da personalidade, está predisposta a interpretar incorretamente os textos tradicionais. Nós não deveríamos ler nesses textos aquilo que gostaríamos ou que 'naturalmente' esperamos encontrar neles, mas somente aquilo que eles realmente significam: mas 'para nós é difícil abandonar as coisas familiares ao redor de nós, e voltarmos ao velhor lar do que qual viemos'(Hermes, Lib. IV, 9). A individualidade, não importa o quão abracemos seus grilhões, é uma modalidade parcial e definida do ser. o "Eu" é definido pelo o que é o "não-Eu", e é assim aprisionado. É com vistas à libertação dessa prisão e essa parcialidade que nossos textos tão repetitivamente demonstram que nossa louvada individualidade não é nem uniforme, nem constante, mas composta e variável, apontando que o mais sábio é aquele que pode dizer 'Não sou agora o homem que eu era antes'. Essa é a verdadeira medida de todos os seres as coisas em desenvolvimento;mas o 'fim da estrada' (adhvanah pâram) está além da 'humanidade'. A perduração só pode ser predicada daquilo não é individual, mas universal (cósmico) , e a eternidade, sem antes ou depois, só pode ser afirmada daquilo que não é nem individual nem universal."
A título de passagem, é notável que em alguns pontos Kumāraswāmī mostre que a leitura de certos autores budistas talvez tenha sido importante para a consolidação de seu ponto de vista sobre o tema, como nesse trecho retirado de correspondência de 1946 endereçada a  H.G. Rawlinson:
"Eu concordo com estudiosos como T. W. Rhys Davids, B. C. Law, D. T. Suzuki, etc, todos os quais negam que a reecarnação fosse uma doutrina budista. Incidentalmente, a própria palavra não aparece em inglês antes de 1850, de forma similar a 'teosofia'"
E ainda, sobre a doutrina da paligênese:
“[...] a doutrina indiana da palingênese é corretamente expressa pela afirmação budista de que na 'reincarnação' nada é transmitido de uma corporalidade à outra, sendo a continuidade sendo similiar a quando uma lâmpada é acesa a partir de outra lâmpada: que os termos empregados para 'renascimento' (ex: punar janma, punar bhava, punar apâdana) são usado em pelo menos três sentidos distinguíveis: 1) com respeito à transmissão de características físicas e psíquicas de pai para filho, isto é, com respeito à palingênese no sentido biológico, definida por Webster como 'A reprodução de características ancestrais sem modificação' 2) com respeito à transição de um plano para outro de consciência efetuado no mesmo indivíduo  e geralmente na mesma vida, como no caso do renascimento implicado na máxima 'Exceto se nasceres de novo' e do qual o último termo é a deificação e 3) com respeito à 'moção' ou peregrinação do Espírito de um corpo-e-alma a outro, 'moção' que ocorre sempre que  tal veículo composto morre ou um outro é gerado, assim como a água pode ser vertida de um vaso no mar e removida por outro vaso, sendo sempre água, mas nunca -- exceto na medida em que os vasos parecem impor uma identidade temporária e forma a seus conteúdos, ou seja, a 'água' e terceiro --  nenhuma outra doutrina de renascimento é ensinada nos Upanishades, no Bhagavad Gîtâ além das que estão já implícitas no Rg Veda."
Em correspondência datada de 21 de maio de 1942, endereçada ao Sr. “Light” e já citada acima, ele sua conceito de “Único Transmigrante”, que rendeu-lhe inclusive o título de um estudo específico, e que, segundo Kumāraswāmī era verdadeira concepção Shankariana sobre o tema tal qual exposto nos Brahma-Sutras:
"Que esse ensinamento [A Transmigração do Senhor] dos Upanishades e de textos mais antigos poderia ser amplamente embasada por muitas citações, e segue diretamente da posição de que nossos poderes são 'meramente nomes de Seus atos', pois Ele é 'o único vidente, ouvinte, pensador, etc. em nós', e que da visão, comum a hindus e budistas essa é a maior das ilusões a considerar 'Eu sou a agente'. Em sucessivos nascimentos é Brahma, não o 'Eu' que vem e vai. [...] Esse é também o ensinamento do Cristo, que diz que se fossemos seguí-lo, deveríamos odiar nossas almas, e que 'nenhum homem subiu aos céus, além daquele que veio dos céus, mesmo o Filho do Homem, que é o céu'. O Senhor transmigrante ocupa, de fato, corpos dos quais o caráter é casualmente e fatalmente determinado, mas ele 'nunca se torna alguém', e segue-se que ninguém que ainda é alguém pode estar 'unido ao Senhor' de maneira a ser 'um espírito'. Pois nada do que tem começo no tempo pode chegar a ser imortal; se há um caminho de saída, só pode ser a realização de que 'Eu vivo, contudo não eu, mas Cristo (ou Brahma, ou qualquer nome pelo qual falemos de Deus) em mim'. Certamente, antes de discutirmos a 'reincarnação' deveríamos estar certos de que a doutrina da reincarnação não foi mantida por ninguém além dos teosofistas."
Em outra correspondência, enderaçada a William Ernest Hocking em 1942 ele volta a citar a máxima shankariana:
"[...] muitos textos dos Upanishades, etc. só parecem afirmar a reincarnação porque nós temos essa noção em mente. Você poderá, claro, se referir Bhagavad Gita 11.22 [5] que eu acho que muitos leitores pensariam tratar-se de uma declaração sobre reincarnação. Mas observe que Platão e Eckhart usam quase as mesmas palavras, com respeito à natureza dessa vida presente mesma. Assim, está Phaedo 87D, E: “cada alma consome muitos corpos, especialmente se o homem vive muitos anos. Pois se o corpo está constantemente mudando e sendo destruído enquanto o homem está ainda vivo, e a alma está sempre tecendo novamente o que é consumido, então quando a alma perece, ela deve necessariamente fazê-lo e sua última vestimenta" (o caso da alma não perecer se dá pelo fato de que ela sobrevive a cada uma dessas mudanças de vestimenta, e se for assim, não a última delas?). E Eckhart (Pfieffer, p 530) “Nada é suspensa da divina essência:a sua progressão é a matéria, onde a alma veste novas formas descartando as formas antigas. A mudança de uma para outra é sua morte, e aquele que ela veste, e aquele no qual ela vive'. Nos "Upanishades" ele frequentemente pressupõe que o sujeito é 'esse homem' quando na verdade é 'O Homem', e assim ele pensa que nós reincarnamos quando na verdade, como Shankara diz 'Não há, em verdade outro transmigrante além do Senhor'. 
E mantém sua posição em 1946 em correspondência ao Sr. Richard Gregg.
"Em qualquer caso, 'reincarnação' é somente um modo de dizer, associado e inseparável da postulação de um Ego; é um processo, não o mesmo 'indivíduo' que reincarna; e, de fato, nesse sentido, a 'reincarnação' ou 'vir-a-ser' dos quais se obtém libertação é aquilo que segue acontecendo todo o tempo, de momento a momento; vir a ser em uma vida futura é somente a continuação desse presente vir a ser; ninguém que ainda é alguém escapa disso."
CONCLUSÃO

Kumāraswāmī acredita, diferindo de outros estudiosos orientalistas e concordando com a hermeneutica do mimâmsâ, que, sobre o tema da reincarnação, há uma unidade da shruti (samhitas e upanishades) e não só isso, mas (nesse caso assumindo posição heterodoxa), a visão dos budistas é, no fim das contas, a mesma dos Vedas. Em alguns artigos ele articula a noção de transmigração com a dos ciclos cósmicos hindus em intricadas elucubrações simbólicas. Chega a dizer que a reincarnação é uma transmissão de um gênero, ou tipo de semente e usa para isso alguns trechos da shruti com interpretação que, no advaita-vedânta, chama-se pâramârthika satya, desconsiderando os outros trechos onde se estabelece o vyâvahârika-satya. Sua interpretação é, em grande parte, inovadora, como explicarei futuramente na exposição das visões ortodoxas sobre o tema. Em alguns pontos Kumāraswāmī é consciente de que está propondo uma tese nova. Em seu livro sobre o Veda ele admite que a tese da transmigração atrelada à passagem da eras é fraca. Em outras ocasiões ele abandona essa restrição acadêmica, provavelmente diante da aceitação da posição lógico-metafísica de Guénon. [6]

Próxima postagem: o renascimento segundo René Guénon

NOTAS:

[1] É importante notar que o trecho em que Shankarâchârya utiliza a noção de que 'o único transmigrante é o Senhor', é um trecho muito específico em que o santo hindu está refutando a doutrina sâmkhya de que a Pradhâna ou Prakrti é o único transmigrante. Desde um ponto de vista absoluto, poderíamos dizer, na verdade, que o Senhor não transmigra absolutamente e teríamos abundantes trechos declarando isso no mesmo tratado. Creio que há uma confusão, proposital ou não, de Kumāraswāmī nesse ponto, ao qual voltaremos futuramente, e há inclusive uma apropriação indevida desse trecho de Shankarachârya como se fosse uma máxima central ou algo assim. Não é.
[2] Esse também é um ponto curioso. Whitall Perry, em prefácio a uma coletânea de correspondências de Kumāraswāmī, observa que a ênfase do autor cingalês se dava porque ele se dispunha a refutar a “noção popular” de reencarnação em vigor na Índia e que havia se tornado quase um “dogma”. Contudo, segundo o norte-americano, essa posição crítica rendera a Kumāraswāmī crítica justamente por parte de eruditos hindus que, a não ser por isso, admiravam sua obra.
[3] Capitalização feita pelo autor.
[4] Pretendo em postagens futuras fazer uma análise dessa noção metafísica confrontando-a com opiniões védicas ortodoxas.
[5] O trecho citado do Gîtâ não faz especial referência à reincarnação. Tradução livre: "Os Rudras, Adityas, Vasus, os Sadhyas, Os Vîshve devas, as duas Ashvins, os Maruts, Os Ushmapas, as hordas de Gandharvas, Yakshas, Asuras, e seres perfeitos, contemplam-te espantados."
[6] Os interessado em conferir a grande quantidade de citações de Kumāraswāmī, bem como as correspondências citadas aqui podem consultar as seguintes obras ou artigos: "The Selected Letters of Ananda Coomaraswamy", "A New Approach to the Vedas - An Essay in Translation and Exegesis",
"The Essential of Ananda Coomaraswamy", "The Flood in the Hindu Tradition" (artigo) e "On the Only and One Transmigrant" (artigo).