Monday, October 28, 2019

Reflexões sobre o Samudra Manthana (parte final - a confusão e a tartaruga)


yadā kśayam gatam sarvam tadā viṣṇuḥ mahābalaḥ |
amṛtam saḥ aharat tūrṇam māyām āsthāya mohinīm ||

Quando tudo caminhava para aniquilação, Vishnu, de poder supremo,
assumindo sua forma ilusória de Mohinī, capturou depressa o néctar. (Ramâyâna, 1-45-42)

A vitória pela ilusão

O que ocorreu após Shiva salvar o universo bebendo o veneno foi também aterrador e colossal. Agora que o batimento do oceano tinha acabado e o veneno tinha sido digerido, junto com diversas joias e coisas maravilhosas, o néctar surge no Oceano. E estoura uma luta descomunal e caótica entre os filhos de "Diti" (assuras) e os filhos de "Aditi" (devas) para decidir quem vai ficar com o "elixir da imortalidade".

É aí que Vishnu se encarna com seu famoso avatar feminino, Mohinī, aquela que causa "moha", estupidificação, confusão mental. Os assuras ficam abestalhados diante de beleza, não sabem como reagir, e calmamente Mohinī toma o néctar dos Assuras e o entrega aos Devas. 

O Ramâyâna conta que:
aditeḥ ātmajā vīrā diteḥ putrān nijaghnire |
asmin ghore mahāyuddhe daiteyā adityāyoḥ bhṛśam ||

Os filhos de Aditi, heroicos, massacraram completamente os filhos de Diti,
nessa horrenda batalha. (Ramâyâna, 1-45-44)

Um dos assuras, chamado Rahu, ainda tentou se misturar com os devas para beber o néctar, mas Chandra (a lua) e Sûrya (o sol) (que não por acaso, na literatura tântrica representam ida e pingala) avisaram Vishnu, que com seu sudarshana, o disco, cortou a cabeça do assura. Por fim, tendo sido vencedor da batalha e massacrados seus inimigos, Indra  retomou seu reino, restabeleceu a ordem, os três mundos foram beneficiados por incontáveis eras.

Colaboração das negatividades

A narrativa pode ser entendida desde muitos pontos de vista, e guarda vários segredos ou indicações indiretas cuja explicação não cabe na proposta desse blog, então me contento em apontá-las. "Mohana", por exemplo, aos que conhecem o shastra, é uma das flechas da Devî, pelo qual ela imobiliza seus adversários, e todas as outras flechas narradas nos âgamas (como a do desejo ou ira) estão presentes e são usadas rigorosamente na narrativa do batimento do oceano.

Uma das coisas notáveis na narrativa do Samudra Manthana é que o néctar só pode ser produzido pela colaboração de devas e assuras, remetendo a processos "alquímicos" usados no yoga e âgama. A segunda coisa digna de nota é que as estratégias para obter a colaboração dos assuras consistem em "enganá-los" usando seus interesses inferiores, ou seja, o usar o poder os assuras contra si mesmos. A narrativa se refere claramente à tão falada (e tão pouco compreendida) ascensão da kundalinî, tema tântrico, porém, como podemos ver, presente no coração dos Itihâsas e Purânas .

O kûrma-mudrâ

Outro ponto negligenciado é a função do avatar Kûrma, a tartaruga, que é a base de todo o processo, ligado ao elemento terra e que pode ser referido ao chamado mûlâdhâra-chakra, sem que isso esgote todo o significado. Os âgamas narram que na vida espiritual o estabelecimento de "kûrma-sthîti" é primeira coisa a ser aprendida, sem ele todo o processo pode ser destruído, e o sujeito vai para o inferno. É portanto a tartaruga que dá suporte ao mundo. Ademais, a geografia sagrada do mundo recebe uma narrativa especial no Kûrma-Purâna, um dos 18 grandes purânas.

A tartaruga não só aparece como suporte de tudo, mas como símbolo do yogue, como explica o Bhagavad Gîtâ:
yadā saṁharate cāyaṁ kūrmo'ṅgānīva sarvaśaḥ
indriyānīndriyārthebhyas tasya prajñā pratiṣṭhitā
"E quando ele (o yogue) remove os sentidos dos objetos dos sentidos, qual uma tartaruga que recolhe seus membros para dentro do casco, sua sabedoria se sustenta com firmeza." (2, 58)
*** 

Por fim, a unidade do Sanatana Dharma, inclusive a unidade entre Veda e Tantra,  é de difícil captação para os que não fazem parte da rede simbólica e das referências cruzadas em todos os shastras de todas as tradições. Os que conhecem sabem que as mesmas referências, de forma surpreendentemente exata, são distribuídas pelos Upanishades, Samhitas, nas tradições purânicas, nos Itihâsas e nos Âgamas. São só os estudiosos externos e hermeneutas textuais mais secos que têm dificuldade de visualizá-la.

***

Adendo: em outra postagem falei sobre a questão do simbolismo, e podem questionar por que uso de fato o simbolismo ao analisar a narrativa. Ora, nesse caso há tradição visível e contínua que dá suporte a esse simbolismo; o que critiquei foi o uso de simbolismo como escada epistemológica pura, que se remete só ao modo de apreensão intelectual humano e, por meio disso, tenta evidenciar tradições ou unidades tradicionais ocultas.

Saturday, October 19, 2019

Ainda sobre a reencarnação


Quando o Âtman, subsistente em um determinado corpo, abandona esse corpo que ocupava, então há a morte (praitî); quando ele obtêm um novo corpo, com outros órgãos dos sentidos, há o nascimento (bhâva) após a morte (pretya). A repetição desse processo de nascimento e morte não tem começo, mas tem fim com a libertação (apavarga).
Vatsyayânâcharya, comentário aos Nyâya-Sutras: 1,1.
Esse ciclo do samsâra pertence ao Âtman ou à mente? Se por samsâra você quer dizer a ação de receber ou deixar vários corpos, então pertence à mente, pois é a mente que de fato se move (samsarati); se por samsâra você quer dizer a experiência do prazer ou da dor, então pertence ao Âtman, pois o Âtman é o experimentador.

Udayanâcharya, Nyâya-Vartika, comentário ao verso 19.

Há quase dois anos conclui uma sequência de postagens, até agora a mais repercutida desse blog, que foi um breve estudo sobre o tema renascimento/reencarnação entre perenialistas.  Na ocasião o estudo teve uma função depurativa; eu me desvencilhei da ideia desses pensadores ocidentais sobre o assunto, buscando fontes tradicionais. Contudo, relendo a sequência, vejo hoje que o fiz de forma ainda um pouco hesitante, evitando, por exemplo, o termo “reencarnação”, pois ainda reconhecia o mérito da crítica perenialista às religiões de cunho espiritualista que adotam esse conceito (ainda reconheço alguns aspectos, mas acho a coisa menos importante do que eles fizeram parecer). 

Como eu sigo os rishis e não outros pensadores, seja das tradições acadêmicas ou esotéricas ocidentais, acho que cabe fazer algumas marcações bem definitivas e que vão deixar a questão clara e sem meias palavras. O que eu não fiz antes.

1. Usando também o termo "renascimento", que é bom, não descarto o termo reencarnação para traduzir punarjanman/pretyabhâva, pois o termo só é inconveniente dentro das precauções próprias da “militância antimoderna” dos perenialistas. Ele pode ser usado, e vou usá-lo aqui, pois de fato trata-se de uma “encarnação” repetitiva de um jivâtman (daria inclusive até para fazer a mesma defesa usando terminologia budista, mas como não sou seguidor dessa tradição, vou me abster). 

2. Além do mais, ao evitar o termo reencarnação, eu estaria dando a entender que me acomodo sob os marcadores ideológicos binários do tipo “Tradição x Modernidade” ou “Iniciação x Contra-Iniciação” e às suas implicações políticas diretas ou indiretas, o que não é o meu caso. Na minha opinião, dá para dizer que o cristianismo inteiro já é de certa forma uma “modernidade”, pois já surgiu dentro da Kali-Yuga, segundo a datação do shastra (e não de acadêmicos); ou ainda, o cristianismo (ao menos o que se tornou influente e organizado) tem um vínculo, se não causal, ao menos de continuidade inevitável com a tal modernidade e seus valores.

3. Não só o tema da reencarnação existe, mas é central, pois está vinculado ao “diagnóstico” dos rishis sobre a condição humana, e é diretamente ligado ao “remédio” oferecido. A compreensão incorreta (mithyajñana) ou a dúvida sobre o tema pode colocar a perder os métodos oferecidos pelos rishis e levar as pessoas a ações ou esforços incorretos ou inefetivos para eliminar as causas do sofrimento.

4. Portanto, e isso deveria ficar claro, a reencarnação é de um jivâtman segundo seu princípio causal último(karana-sharîra), não do Paramâtman (Espírito Supremo), pois este é independente (svatantra) de qualquer princípio causal. Quaisquer que sejam, portanto, as divergências entre os pontos de vista doutrinais (vâda) sobre a relação metafísica entre Paramâtman e jivâtman (não-dualidade, dualidade) isso é irrelevante para o tema da reencarnação. A alegação de que não há reencarnação pois não há um “eu” é assim sofística, e propositalmente confunde os planos superiores e inferiores.

5. A crítica de que a reencarnação seria de fundo “moralista” e que isso seria ausente em tradições orientais, tem razão em parte. Contudo, se por um lado não há “moralismo”, de fato há uma efetividade causal na “ética” ou no dharma. O “papa” (demérito) e “punya” (mérito), bem como os as ações concretas da mente, fala ou corpo são causas eficientes da reencarnação, e às vezes o mérito e demérito pode se cruzar com elementos morais.

6. A reencarnação não é de uma entidade coletiva, nem genética, nem de DNA, nem associada a totens tribais, nem associada a “daimons” da espécie como quer Évola. É realmente declarada como o desfrute de méritos e deméritos de um jivâtman individual.

7. As doutrinas espíritas e teosóficas têm impropriedade desde o ponto de vista dhármico, pois suas descrições se inserem em outro “framework” e têm lastros próprios da mentalidade ocidental como o denunciado “moralismo” ou  o “evolucionismo”; em alguns casos até são francamente positivistas como no caso dos espíritas, além de não enfatizarem a libertação como fim último do homem e não admitirem que homens e devas possam involuir. Contudo, é preciso dizer que as doutrinas espíritas e teosóficas, se têm essas impropriedades, estão, (ao menos) formalmente, mais próximas das doutrinas dhármicas do que, por exemplo, as doutrinas do pecado original, queda ou salvação, que são conciliáveis só por meios de ocultismo, simbolismos e intérpretes não validados.

8. As tradições espirituais que não ensinam a reencarnação não têm condições de ensinar o samsâra, nem as causas do samsâra, nem os meios de eliminar essas causas, nem a libertação. Portanto, sua doutrina não é dhármica. São doutrinas incorretas e seus benefícios, se ocorrem, se dão indiretamente, não pelo ensinamento mesmo.

9. Somente com apelo à insanidade é possível negar o extenso tratamento do tema nos shastras. O único ponto em que alguns mestres e rishis negam a coisa é quando usam, desde o ponto de vista do advaita-vedânta, o chamado modo discursivo “paramarthika” (de objetividade suprema). Isso diz respeito à unidade entre Paramâtman e jivâtman, que, uma vez aceita, invalida a independência do jivâtman, e, por conseguinte, sua autonomia metafísica.

Assim, continuar dizendo que o tema não existe, não é tratado, é tratado de forma periférica, ou é tratado de forma meramente “exotérica” é desonestidade para com os rishis e sábios védicos. Eu não defendo qualquer modalidade de opinião conciliadora desse tipo.

Acho que agora sim o tema está concluído com clareza e de forma definitiva.

Wednesday, October 16, 2019

Reflexões sobre o Samudra Manthana (Parte 4 - O veneno)

"Os devas foram ao Brahma, sentado seu trono celestial, e disseram 'Senhor, estamos exaustos, não temos mais força para para bater o oceano'. O néctar ainda não apareceu(...)" (Astika Parva, 18)
O batimento do oceano durou muito tempo, contando-se em eras divinas e espirituais. Houve momentos de exaustão. Os devas não tinham energia. Nârâyana tinha de ajudá-los todo o tempo. Restituídas suas forças, retomavam a atividade, a montanha era colocada no meio do oceano, a serpente era enrolada de novo e a tarefa recomeçava.

Depois, quase num estado de torpor, fatigados, devas e assuras observaram que começava a emergir do oceano coisas maravilhosas, num processo mágico. E a cada coisa que aparecia todo o universo era modificado.

A primeira coisa a surgir, como num lampejo violento, foi Surabhi, a vaca sagrada que viveria depois com rishi Vasishta, o brâmane, e que seria cobiçada por Vishvamitra, o kshatriya, causando um conflito sem dimensões entre os dois (mas essa é uma outra história). O fato é que o batimento gerou tal vaca, adorada daí em diante por todos os deuses, e foi realmente um fato assombroso.

A segunda coisa que surgiu tomando o espaço, foi Varunî, esposa de Varuna e Deusa do vinho. Ela surgiu em êxtase transcendental, seus olhos estavam focados na sua testa manifestando o chamado "shambavî mudra" de significados esotéricos. Muitos nomes da divindade suprema estão associados ao vinho e a esse mudra.

Depois disso veio a árvore de Parijata, que também concede todos os desejos. A árvore surgiu perfumando a atmosfera, e era como se fosse a primavera cósmica. Em seguida, dançando, apareceram a horda inabarcável de apsarâs, dançarinas divinas. E por fim, emergiu do oceano a lua de raios refrescantes, que foi capturada por Shiva.

Após algum tempo de silêncio, levantou-se uma fumaça fétida, preta, asfixiando devas e assuras, e entenderam que se tratava do veneno chamado Kâlakuta, que é a "ilusão do tempo". O veneno foi envolvendo o universo como um fogo esverdeado de fumaça negra, e numa velocidade incrível a manifestação parecia chegar ao fim. Nem Brahma, nem Vishnu sabiam o que fazer diante de tal aparição inesperada, então eles se prostaram diante de Shiva, que atendeu aos pedidos e surgiu, bebendo o veneno. 

Parvati, esposa querida de Shiva, ficou aterrorizada com tal ato e o enforcou, segurando por um tempo o veneno em sua garganta. O veneno de fato parou ali, e sua garganta ficou azul. Desde então, um dos nomes de Shiva é Nilakantha (garganta azul), ou então Vishakantha (que tem o veneno na garganta), pois durante o batimento do oceano de leite, na busca de devas e assuras pelo néctar da imortalidade, Shiva salvou o universo digerindo os produtos negativos dos trabalhos divinos.

Tuesday, October 15, 2019

Reflexões sobre o Samudra Manthana (Parte 3 - No meio do oceano)

"Então, ó brâmane, das profundezas veio um grande urro, como o trovão das nuvens da dissolução universal. Muitos animais aquáticos foram esmagados pela imensa montanha, muitos habitantes das regiões inferiores e dos reinos de Varuna foram mortos. As árvores cheias de pássaros, muitas delas foram arrancadas pela raiz, caindo no mar durante do giro da montanha A fricção dessas árvores batendo umas nas outras também produzia um chama brilhante que aparecia de tempos em tempos. A montanha então parecia uma massa de nuvens negras carregada de trovões. O fogo se espalhou na montanha consumindo leões, elefantes, e outras criaturas que viviam ali, e Indra, fazendo a chuva descer ia extinguindo os focos do fogo." (Adi Parva: 18, 26)
Pensando sobre as imagens do oceano, me vem à mente de imediato a imagem do sol vermelho nascente que se tornou notória na cultura popular pela bandeira japonesa. Na tradição deles o sol vermelho nascendo no horizonte se associa à deusa Amaterasu, que está associada também às  suas dinastias reais. O meio do oceano, idealmente infinito na medida em que dispõe o chamado "horizonte" (também ideal), pode ser ocupado por distintas "estações", dinâmicas e estáticas. Entre shaktas o sol vermelho surgindo no oceano é Arunâ. Aqueles que adoram a Deusa no formato do sol vermelho se tornam grandes poetas e são capazes de encantar as criaturas, dizem as escrituras. 

Em aspecto estático, narra-se em vários momentos que no meio do oceano há uma ilha ou uma montanha. A ilha do meio do oceano de néctar tem um palácio de joias preciosas onde reside a divindade suprema. A montanha Mandara, como sabemos, também está no meio do oceano. É preciso dizer que ela não corresponde ao chamado monte Meru, há distinções. 

Conta-se que Mandara foi gerada providencialmente por Ananta, a serpente, à pedido de Vishnu. É uma montanha onde reside a corte de Kubera e está próxima a outra montanha famosa, o Kailasa. Oitenta e oito mil gandharvas e trezentos e cinquenta e dois mil Yakshakinnaras residem no topo dessa montanha, junto com Kubera e um Yaksha chamado Manivara. 

Essas informações estão, entre vários outros lugares, no Mahabharata, onde também conta-se, por exemplo que, em jornada em direção ao monte Kailasa, acompanhado por Krishna, Arjuna parou um tempo em Mandara e ali se deteve por algum tempo ouvindo as canções celestiais. Então tudo indica que a montanha é uma estação intermediária avançada para os que estão seguindo o "caminho do norte",  muito bem ilustrado no Gîtâ:
"Fogo, luminosidade, dia e a fase brilhante da lua. Os seis meses do curso do sol em direção ao norte--partindo assim, os homens que conhecem o Brahman, vão em direção ao Brahman." (8,24)
E, por fim, as relações com o Mahadeva ou Shiva, que até agora não apareceu na narrativa, também são claras, como nesse trechinho de uma jornada feita pelo rishi Ashtavakra:
"O ilustre rishi Ashtavakra partiu em direção à morada de Kubera rumo ao norte. Ele cruzou a montanha Mandara e as montanhas douradas. Além dessa região de altas montanhas está situada a excelente região onde reside o Mahadeva, vestido como modesto asceta." (Anushâsana Parva: 19, 54)

Saturday, October 12, 2019

Reflexões sobre o Samudra Manthana (Parte 2 - Devas e Assuras)

Devas e assuras 

Durvâsas se foi e sua maldição desceu como a chuva torrencial. O "poder" e a "vitalidade" lentamente foi se retirando do reino de Indra. Os três mundos foram afetados, inclusive o dos homens. Os ritos pararam de ser executados e a mente humana se degenerou de forma assombrosa. 

Foram inúmeros os efeitos: a prosperidade material acabou, as plantas secaram. Os homens não mais praticavam o dâna (caridade), seus sentidos eram facilmente instigados por todo tipo de frivolidade e não por assuntos importantes, sua atenção oscilava entre objetos de forma descontrolada como em um sonho. Acabou-se a coragem, a força e o heroísmo, todo o universo parecia triste e enfraquecido. Quase todos se tornaram obscuros e embotados em suas faculdades intelectuais, e por fim materialistas, perdendo contato com os mundos espirituais. O existir se tornara um peso para os mundos.

Havia, contudo, os filhos de Diti, chamados dânavas, que eram ambiciosos e agitados por muitas paixões, o que os conferia energia. Eles notaram a fraqueza dos devas e entenderam que era um bom momento para investir contra eles e tomar o reino de Indra impondo jugo assúrico ao universo. Os devas estavam tão apáticos que não resistiram em absoluto: foram facilmente afugentados pelos titânicos dânavas: covardemente deixaram para trás suas mulheres, seu reino e o seu dharma. 

Após vagarem miseráveis por muitos anos, escondendo-se em cavernas e florestas, vivendo com medo, apavorados, os devas se lembraram, com suas mentes ainda confusas, que era possível buscar ajuda superior. Recorreram a Brahma, que disse que não tinha como resolver a situação e nem dar-lhes energia; depois foram a Vishnu. Prostraram  humildemente diante do Narayana e expuseram em lágrimas o que havia ocorrido. Vishnu ficou comovido ao ver os seres mais nobres do universo passarem por tais sofrimentos e humilhações e resolveu ajudá-los:

"Ó, devas, eu vou renovar suas forças! Contudo, vocês têm de seguir com rigor minhas instruções para que tudo funcione: todos os devas, aliados com todos os assuras precisam ir ao oceano infinito de leite, e ali lançar todos os tipos de ervas medicinais conhecidas; daí, tomando a montanha Mandara como eixo, e enrolando a serpente Vasuki como corda ao redor da montanha, é preciso fazê-la girar no meio do oceano. Desse batimento muitas coisas serão geradas. Entre elas o néctar da imortalidade que vai salvá-los da maldição de Durvâsas."

Os devas se animaram, pois lembraram que Durvâsas tinha de fato mencionado tal coisa. Mas eles  ainda não sabiam como seria possível conseguir ajuda de assuras, inimigos imemoriais dos devas, e, parte deles, agora regentes do universo. 

Vishnu se antecipou, lendo suas mentes:

"Para conseguir ajuda de assuras, é preciso entender a natureza deles: vocês devem se aproximar em paz e prometer oferecê-los parte generosa do fruto do trabalho, instigando sua imaginação. Expliquem para eles que, bebendo do  néctar da imortalidade produzido pelo batimento do oceano de leite eles se tornarão ainda mais poderosos e, agora, absolutamente indestrutíveis. A ambição deles vai tomar as rédeas. Eu, Vishnu, vou ajudá-los no processo, para ter certeza de que ao fim de tudo os assuras não cheguem a beber o líquido e causem ainda mais problemas."

E assim ocorreu. A natureza dos assuras era previsível. Houve uma inusitada aliança entre devas e assuras para a obtenção da bebida da imortalidade. Saíram todos coletando as ervas medicinais prescritas no Atharva-Veda, lançando-as incansavelmente no oceano de leite durante muitos dias e noites. Quando todos os ingredientes foram oferecidos ao oceano, devas e assuras tomaram como centro a pontiaguda montanha Madara, e enrolaram ao seu redor a serpente Vasuki.

Deram inicio ao processo de agitamento do oceano, começando devagar, girando de um lado para outro, por fim atingindo grande velocidade, movendo grande volume de líquido no meio do oceano. Instruídos por Vishnu, os devas seguravam a cauda da serpente, e os daityas e dânavas seguraram a cabeça e o pescoço. A serpente ficou irritada ao ser enrolada e puxada, e começou a lançar chamas nos assuravas, que seguravam a cabeça, causando-lhes considerável dano. O calor que era emitido em um dos lados da montanha empurrava as nuvens para o outro, e os devas recebiam vesto refrescante e uma leve chuva.

Quem sustentava a base da montanha, o eixo do mundo, dentro do oceano de leite era avatar de Vishnu em forma de tartaruga, Kurma. Vishnu também se fazia presente de inúmeras outras formas, como prometido, supervisionando o processo para que nada saísse errado. 

Wednesday, October 9, 2019

Reflexões sobre o Samudra Manthana (Parte 1 - Durvâsas)

O Samudra Manthana, traduzido por alguns como Batimento do Oceano de Leite, é dos episódios mais conhecidos e menos compreendidos da literatura purânica. O episódio apresenta toda a cosmologia védica, toda a microcosmologia, e quase todas as principais divindades estão envolvidas no processo. É pouco compreendido, até pela abundância de referências esotéricas, tântricas, pelo número de forças divinas e assúricas envolvidas, pela quantidade de acontecimentos intercalados, e por ser, no fim das contas, o tema central e mais superior do Veda mesmo, que é o néctar da imortalidade, amṛta

Alguns aspectos da história são ligados à prática tântrica e shakta, e isso é muito pouco notado. Basicamente, os acontecimentos se desencadeiam quando o rishi Durvâsas fica irado com Indradeva e o amaldiçoa juntamente com toda a corte de devas. Para entender isso, e entender o fato de uma maldição do rishi Durvâsas descadear uma série de eventos, é bom remontarmos (e ficarmos atentos aos sinais) até à sua própria vida, ou antes mesmo disso, à vida de seus pais.

Durvâsas e o caminho tântrico

O rishi Durvâsas é o "fundador" sempre associado direta ou indiretamente a várias paramparas e ensinamento tântricos e/ou shaktas; é dele, por exemplo, a "regência" ou "visão" (para não usar o termo "composição") dos 61 shlokas do Shakti Mahimna Stotram em louvor à Tripura Sundarî. Ele também é o regente do mantra secreto de uma das 15 categorias de upâsaka-s cifradas em obras como o Saundarya Laharî de Shankarâchârya, os Shaktopanishads ou no Kularnava Tantra. É ele o preceptor do Shri Vidyâ, e o shivaísmo da Caxemira também remonta a Durvâsa, por meio de Somânanda, vidente inicial dessa escola.

Munis, Devas e Esposas fieis

Shilavati é conhecida como a esposa mais casta e mais fiel, o que tem um ressonância tântrica clara. Em obras como o Devî Bhagavatam ou no Lalitâ Sahasranâma a Devî se manifesta sempre como  e esposa casta de Sadâ Shiva e protetora das esposas castas (que têm poder de invocação e maldição equivalente ao dos rishis); assim, a Devî sempre atende preferencialmente aos apelos de tais esposas. O marido de Shilavati, Ugrashravas, por outro lado, era o pior dos esposos: sem entrar em detalhes, basta contar a história que nos interessa mais diretamente, em que ele, leproso e tomado de luxúria, obriga sua mulher a carregá-lo nas costas, de madrugada, até um prostíbulo. 

Quando Shilavati estava à caminho do prostíbulo, com o marido doente e cheio de luxúria em suas costas, o Muni Mandavya, um sábio, avista a cena e, enraivecido pela feiura e pela incongruência da situação, lança uma maldição contra Ugrashravas: que ele morreria antes de o sol nascer. Shilavati, não podendo cancelar a maldição do Muni, e tomada de angústia e dor pela iminente morte do marido, lança uma outra maldição dizendo que o sol não nasceria naquele dia. Dado o poder de sua castidade, o sol de fato não nasce, o que causa uma convulsão em todo o cosmos.

Os devas que cuidam do ritmo do universo tiveram que ir até Brahma, que por sua vez recorreu a Shiva e este a Vishnu. Quando nenhuma das três divindades (a trimûrti) acharam solução, eles convocaram o rishi Atri e sua esposa Anusûyâ, e foram todos juntos até Shilavati para tentar convencê-la a retirar a maldição, garantindo-lhe que, sob os auspícios divinos, seu marido não morreria se o sol nascesse; Shilavati retirou enfim a sua maldição; a outra, lançada pelo Muni foi cancelada pelos três devas, e o universo prosseguiu com seu ritmo.

A trimûrti, contente com o poder persuasivo de Anusûyâ, que tinha sido fundamental para convencer Shilavati, concedem-lhe um pedido. Anusûyâ desejou então que a Trimûrti nascesse em seu ventre como avatares, e isso lhe foi concedido. O avatar de Vishnu foi Dattatreyâ, o de Brahma foi Chandra e o de Shiva, o rishi Durvâsas. 

Essa é uma das narrativas do nascimento de Durvâsas, e é suficiente para o nosso texto. 

O sábio irado

Durvâsas era temido por deuses e mortais por ter temperamento muito raivoso, e, sendo um siddhâ, quando lançava maldições elas aconteciam inevitavelmente. 

Em certa ocasião, as dançarinas do deva-loka presenteram o sábio Durvâsas com uma guirlanda de flores, como é costume presentar sábios. Durvâsas, que então visitava a corte de Indra resolveu lhe oferecer a guirlanda, como símbolo de apreciação e gentileza. Indra pegou a guirlanda e colocou displicentemente na cabeça de seu elefante, Airavâta. O elefante por sua vez, sentindo o cheiro agradável da guirlanda pegou-a com sua tromba, brincou com ela um pouco e depois jogou-a no chão pisoteando-a.

Durvâsa viu o episódio como desrespeitoso e imediatamente lhe ferveu o sangue. Foi quando ele amaldiçou toda a corte dos devas: "a guirlanda que eu lhe dei, você a tratou dessa forma desatenta e desrespeitosa! Que vocês devas sejam amaldiçoados e pereçam!"

Indra, conhecendo a ira de Durvâsas, pediu perdão, implorou, tentou fazê-lo mudar de ideia, mas Durvâsas foi peremptório: "Meu coração não é mole, e você bem sabe que o rishi Durvâsa não perdoa! Basta de rishis como Gautama e Vasishta mimando vocês, devas! Vocês realmente pagarão pelos seus erros!"

Contudo, dizem que o rishi, antes de sair de lá, olhou para trás e declarou: "a única forma de vocês escaparem da desgraça que se abaterá é bebendo o amṛta, o elixir da imortalidade".

E é assim que começa o episódio que levaria ao Batimento do Oceano de Leite, do qual vamos falar na outra postagem.