yadā kśayam gatam sarvam tadā viṣṇuḥ mahābalaḥ |
amṛtam saḥ aharat tūrṇam māyām āsthāya mohinīm ||
Quando tudo caminhava para aniquilação, Vishnu, de poder supremo,
assumindo sua forma ilusória de Mohinī, capturou depressa o néctar. (Ramâyâna, 1-45-42)
A vitória pela ilusão
O que ocorreu após Shiva salvar o universo bebendo o veneno foi também aterrador e colossal. Agora que o batimento do oceano tinha acabado e o veneno tinha sido digerido, junto com diversas joias e coisas maravilhosas, o néctar surge no Oceano. E estoura uma luta descomunal e caótica entre os filhos de "Diti" (assuras) e os filhos de "Aditi" (devas) para decidir quem vai ficar com o "elixir da imortalidade".
É aí que Vishnu se encarna com seu famoso avatar feminino, Mohinī, aquela que causa "moha", estupidificação, confusão mental. Os assuras ficam abestalhados diante de beleza, não sabem como reagir, e calmamente Mohinī toma o néctar dos Assuras e o entrega aos Devas.
O Ramâyâna conta que:
aditeḥ ātmajā vīrā diteḥ putrān nijaghnire |
asmin ghore mahāyuddhe daiteyā adityāyoḥ bhṛśam ||
Os filhos de Aditi, heroicos, massacraram completamente os filhos de Diti,
nessa horrenda batalha. (Ramâyâna, 1-45-44)
Um dos assuras, chamado Rahu, ainda tentou se misturar com os devas para beber o néctar, mas Chandra (a lua) e Sûrya (o sol) (que não por acaso, na literatura tântrica representam ida e pingala) avisaram Vishnu, que com seu sudarshana, o disco, cortou a cabeça do assura. Por fim, tendo sido vencedor da batalha e massacrados seus inimigos, Indra retomou seu reino, restabeleceu a ordem, os três mundos foram beneficiados por incontáveis eras.
Colaboração das negatividades
A narrativa pode ser entendida desde muitos pontos de vista, e guarda vários segredos ou indicações indiretas cuja explicação não cabe na proposta desse blog, então me contento em apontá-las. "Mohana", por exemplo, aos que conhecem o shastra, é uma das flechas da Devî, pelo qual ela imobiliza seus adversários, e todas as outras flechas narradas nos âgamas (como a do desejo ou ira) estão presentes e são usadas rigorosamente na narrativa do batimento do oceano.
Uma das coisas notáveis na narrativa do Samudra Manthana é que o néctar só pode ser produzido pela colaboração de devas e assuras, remetendo a processos "alquímicos" usados no yoga e âgama. A segunda coisa digna de nota é que as estratégias para obter a colaboração dos assuras consistem em "enganá-los" usando seus interesses inferiores, ou seja, o usar o poder os assuras contra si mesmos. A narrativa se refere claramente à tão falada (e tão pouco compreendida) ascensão da kundalinî, tema tântrico, porém, como podemos ver, presente no coração dos Itihâsas e Purânas .
O kûrma-mudrâ
Outro ponto negligenciado é a função do avatar Kûrma, a tartaruga, que é a base de todo o processo, ligado ao elemento terra e que pode ser referido ao chamado mûlâdhâra-chakra, sem que isso esgote todo o significado. Os âgamas narram que na vida espiritual o estabelecimento de "kûrma-sthîti" é primeira coisa a ser aprendida, sem ele todo o processo pode ser destruído, e o sujeito vai para o inferno. É portanto a tartaruga que dá suporte ao mundo. Ademais, a geografia sagrada do mundo recebe uma narrativa especial no Kûrma-Purâna, um dos 18 grandes purânas.
A tartaruga não só aparece como suporte de tudo, mas como símbolo do yogue, como explica o Bhagavad Gîtâ:
yadā saṁharate cāyaṁ kūrmo'ṅgānīva sarvaśaḥindriyānīndriyārthebhyas tasya prajñā pratiṣṭhitā
"E quando ele (o yogue) remove os sentidos dos objetos dos sentidos, qual uma tartaruga que recolhe seus membros para dentro do casco, sua sabedoria se sustenta com firmeza." (2, 58)
***
Por fim, a unidade do Sanatana Dharma, inclusive a unidade entre Veda e Tantra, é de difícil captação para os que não fazem parte da rede simbólica e das referências cruzadas em todos os shastras de todas as tradições. Os que conhecem sabem que as mesmas referências, de forma surpreendentemente exata, são distribuídas pelos Upanishades, Samhitas, nas tradições purânicas, nos Itihâsas e nos Âgamas. São só os estudiosos externos e hermeneutas textuais mais secos que têm dificuldade de visualizá-la.
***
Adendo: em outra postagem falei sobre a questão do simbolismo, e podem questionar por que uso de fato o simbolismo ao analisar a narrativa. Ora, nesse caso há tradição visível e contínua que dá suporte a esse simbolismo; o que critiquei foi o uso de simbolismo como escada epistemológica pura, que se remete só ao modo de apreensão intelectual humano e, por meio disso, tenta evidenciar tradições ou unidades tradicionais ocultas.