Wednesday, April 12, 2017

Tu és o meu único refúgio, ó Bhavâni! (português)


Dadarchi Bhavani (Mumbai)

(Adi Shankârâcharya)

Nem pai, nem família, nem mecenas, nem mãe
Nem criado, marido, nem filho ou filha
Nem esposa, sabedoria, profissão:
Tu és o meu único refúgio, ó Bhavâni.

No oceano infinito da existência,
Temendo o grande mal -- bêbado, caído,
Lascivo, egoísta, amarrado no samsâra:
Tu és o meu único refúgio, ó Bhavâni.

Não conheço meditação, nem caridade,
Desconheço o tantra, desconheço mantra,
Não sei práticas de yoga, nem rituais,
Tu és o meu único refúgio, ó Bhavâni.

Desconheço, ó Mãe, peregrinação, virtude, 
Caminho da libertação, não me concentro,
Desconheço devoção, ou votos sagrados,
Tu és o meu único refúgio, ó Bhavâni.

Pelo mal eu agi, andei, pensei, servi
Destruí a tradição, com conduta infame,
Tive malícia no olhar e falei o mal,
Tu és o meu único refúgio, ó Bhavâni.

Lembrei-me de Brahma, Rama, Shiva e Indra,
E às vezes de  Surya, o Sol, Chandra, a Lua,
Mas não conheço outros deuses senão a Ti:
Tu és o meu único refúgio, ó Bhavâni.

Conflitos, descuido, viagem, desespero,
Entre inimigos, n'água, no fogo, em montanhas
Na floresta, levanto meus olhos a Ti:
Tu és o meu único refúgio, ó Bhavâni.

Indefeso, pobre, na velhice, em doença,
Pálido rosto,  grande miséria, fraqueza,
Eu, demolido, atolado, perdido, sempre...
Tu és o meu único refúgio, ó Bhavâni.

(Versão: Giuliano Morais)

Saturday, April 8, 2017

Ode à Beleza dos Três Mundos (Poema Completo)



Ode à Beleza dos Três Mundos
(Adi Shankarâchârya)

Refugio-me na Beleza dos Três Mundos¹:
Esposa do Supremo Deus, o de Três Olhos²;
Nos bosques da árvore cadamba ³ Ela vaga:
Cumulo-nimbo dos infinitos Munis;
Seus quadris superam as montanhas da terra,
É servida pelas ninfas de ancas largas
Seus dois olhos brilham como pérolas,
Ó Cinza-Escura, que anuncia a chuva.

Refugio-me na Beleza dos Três Mundos:
Esposa do Supremo Deus, o de Três Olhos;
Vagando no bosque das árvores cadamba,
Um alaúde dourado leva conSigo;
Adornada com preciosíssimas joias,
Ao sabor do vinho ⁴ Sua face resplandece;
Concedendo riqueza, estende as mãos:
Seus olhos, brilhantes, apreensivos, se movem.

D'Ela, que vive junto às árvores cadamba,
É essa glória inefável ⁵ que nos protege;
Guirlandas de flores nos seios imponentes, 
Que sublimes, superam em nobreza as colinas;
Fluxos cintilantes da graça do Guru⁶,
Intoxicantes, enrubescendo Sua face;
Balbucia: entoando canções de mel,
Azul-'scura, sólida, nos dá proteção.

Refugio-me na Beleza dos Três Mundos:
Esposa do Supremo Deus, o de Três Olhos;
Que no meio do bosque d' árvore cadamba
Se encontra sentada no mandala dourado;
Habita os seis lótus ⁷que crescem na água,
Banhando de luz os Siddhas⁸, eternamente;
Arremedando em fulgor a cor do hibisco;
Na cabeça, por joia fulgurante, a Lua.

Refugio-me n'Aquela de voz melíflua,
Nascida ao sábio Matanga, o grande asceta⁹;
Seu colo é realçado pelo alaúde,
Com divinas tranças, os cabelos adorna;
No lótus repousa, estendendo-se nas águas¹⁰,
Adversária, hostil aos perversos de alma¹¹;
Os olhos se lhe injetam --volúpia do néctar,
Ao Matador do Cupido desorienta¹².

Refugio-me na Beleza dos Três Mundos:
Esposa do Supremo Deus, o de Três Olhos;
Que carrega a flor ¹³ favorita do Cupido,
Com pontos vermelho-sangue na roupa azul¹⁴;
Segura em Suas mãos o pote de mel,
Revirando os olhos ¹⁵, embriagada de néctar;
Tem o colo elevado, de seios firmes¹⁶,
Cabelos desengrenhados¹⁷: Ó Deusa negra!

Em prece ¹⁸contemplo a imagem¹⁹ d'A Mãe: 
Como o hibisco florindo, Ela irradia;
Seu vestido²⁰ é ornado com rubras guirlandas,
A todos os seres vivos, Ela fascina²¹;
Levando a flecha, o arco, o gancho e o laço²²,
Com o olhar, serenamente, Ela sorri²³;
Tem o rosto lambuzado de pó vermelho²⁴,
Beijando seus cabelos: o aroma do almíscar.

Ofereço louvores à Mãe d' Universo
Que das celestes damas é imperatriz²⁵:
Suas tranças excelsas cuidadas co' esmero
Pela dama do Destruidor de Fortalezas²⁶;
E a esposa fiel do Ancestral dos Homens²⁷
Com pasta de sândalo refresca Seus pés,
Enquanto a adorada de Mukunda²⁸
Jubilosa A ostenta como amuleto.

॥Aqui termina a Ode de oito estrofes à Beleza dos Três Mundos॥

(Versão de Giuliano Morais)

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NOTAS



[1] Tripura são as três cidades ou fortalezas que entoadas no mantra Gayatri (terra, atmosfera, céu). Assim, o Império da Deusa se estende pelos três planos do universo e os transcende. Ela está, portanto, acima, porém presente nas três gunas, nos três estados de consciência, nos três envoltórios (corpo, alma, espírito), nas três dimensões de espaço, nos três pontos do tempo (passado, presente, futuro) etc.
[2] Os três olhos de Shiva representam a visão sintética que supera a dualidade.
[3] Há um jogo de palavras intraduzível com o termo 'kadamba' que pode significar a árvore, e também uma acumulação --no poema indicando tanto a aglomeração de sábios silenciosos (munis) como de nuvens de chuva. As flores da árvore cadamba tem a característica de se abrir e emitir um aroma especial quando está prestes a chover, ou, dizem, quando troveja. O bosque das árvores cadamba vai representar aqui, entre outras coisas, os seres do universo, que dependem da chuva da graça divina.
[4] A intoxicação, o vinho ou o néctar são o 'elixir da imortalidade'; ou, em simbolismo ocidental, a 'água viva' -- quem quer que a beba não experimenta a morte.
[5] O termo em sânscrito é lîla, que significa a atividade divina que é livre, sem necessidade ou compulsão, mas como estou fazendo versão poética, achei o termo aplicável no contexto, sem prejuízo.
[6] O Guru aqui é obviamente Shiva. Parece uma referência à revelação do Âgama, que é feita por meio de conversas entre Shiva e Shakti.
[7] O mandala dourado e os seis lótus se referem à kundalinî.
[8] Siddhas são os seres que através de tapasya, ascetismo, obtiveram a perfeição e poder.
[9] Esse verso se refere a Matangi, filha do Muni Matanga. A Memória narra que esse sábio obteve a graça, pelo seu ascetismo, de receber a deusa (avatâra) nascida como sua própria filha.
[10] O lótus tem um lugar especial para os poetas do Dharma; não raro se referem à planta por meio de metáforas. Nessa shloka o lótus é indicado como 'aquele que está estendido nas águas'; como a Deusa está sentada 'naquele que está estendido nas águas' achei interessante transferir a adjetivação para a própria Deusa.
[11] Aqui há um jogo de palavras com 'kuṭila' que primeiro se refere às tranças da Deusa, e depois aos homens de 'mente trançada', 'coração trançado', ou seja, os 'perversos de coração'.
[12] Kâmadeva (demônio do amor erótico) é praticamente a mesma figura do Cupido grego; inclusive o fato de atirar flechas aos corações. O Cupido conseguiu perturbar até mesmo Brahmá, o Demiurgo, mas não Shiva, que o fulminou com o raio do seu terceiro olho (que vê além das dualidades). Contudo, Kâmadeva está sob controle da Shakti, e, se Shiva de fato escapa do Cupido, não pode escapar da Shakti mesma.
[13] Aqui tanto o termo 'pushpinî' como 'smara' têm mais de um sentido: o primeiro indica tanto o botão de flor da planta, como a primeira menstruação da menina; o segundo também, é tanto um dos nomes do Cupido, como também o tipo de obsessão amorosa que consiste em ficar lembrando do objeto amado (memória).
[14] Aqui Shankara faz o uso polissemia das palavras: temos tanto no tecido azul manchado com sangue (da menstruação), como a roupa que é a azul e vermelha. Transparece aqui simbolismo tântrico do 'bindu vermelho' que é um dos tattvas da manifestação.
[15] Aqui o texto indica que os olhos reviram ou se movem rapidamente, como ocorre em algumas formas de transe místico. É uma referência também ao 'shâmbavî mudrâ'.
[16] É notável que a Deusa se manifesta com guirlandas de flores, com o alaúde e agora com o seios nus, o simbolismo é o do vestido de negrura, ou 'de noite'.
[17] Vimos antes que a deusa mantinha seus cabelos trançados, bem arranjados, como é comum das senhoritas e senhoras hindus. Os cabelos soltos indicam uma espécie de frenesi. A estrofe faz clara referência tanto ao aspecto obscuro (Deusa negra) como à 'mania divina' (θεία μανία) que descende sobre alguns místicos.
[18] Traduzi o termo 'japa' por 'prece', contudo 'japa' não é bem uma prece, mas uma recitação, em voz baixa, dos nomes divinos (de regra, acompanhada de um 'rosário' chamado 'mâlâ'). Shankara faz ainda uso de outro termo próximo -- 'japâ' -- que é um dos nomes do 'hibisco', flor vermelha; usa também o termo 'kusuma' que pode significar 'fruto', 'menstruação', 'flor' e até 'fogo'. No poema temos o composto 'japā.kusuma': se levarmos adiante a tradução de 'japa' como prece, daria para obter coisas como 'prece ígnea', 'prece sem flor', 'hibisco ígneo', dentre várias outras variantes que qualificam (seja como adjetivo, genitivo, ou dativo) e se articulam com a 'Ela que irradia'. Seguindo a imaginação poética daria para entender até: 'que pela sua irradiação faz da menina florescer a mulher'.
[19] Como foi dito, além de significar 'memória', o termo 'smara' é também é um dos nomes do Cupido. O devoto, portanto, ao 'lembrar' da imagem da Mãe transmitida nesse verso (trazer à memória), entra em estado de fascinação mais intenso do que o das pessoas apaixonadas.
[20] A 'vestimenta' ou o 'vestido', indicado pelo termo 'ambara', pode ser também 'espaço', 'céu' ou 'éter'; ou seja, daria para transpor a manifestação da Mãe ao nível cósmico, oferecendo imagem poética sublime: 'o céu ornado de guirlandas vermelhas'. Esse tipo de imagem é comum em outros textos tântricos, e indica o período do nascer e pôr-do-sol em que o céu fica avermelhado.
[21] A Beleza tem o poder de confundir ou intoxicar todos os seres; nas escrituras há exemplos de como isso é usado contra o mal e para salvar o Dharma. O termo usado no poema é Mohinī, que é o nome do avatar feminino de Vishnu, que seduziu o demônio Bhasma fazendo-o destruir a si mesmo, libertando assim o cosmos de seu jugo.
[22] Tripura tem quatro mãos (vejam na representação acima): em uma das mãos carrega cinco flechas, em outra um arco feito de cana-de-açúcar, o laço e o gancho. Os tântricos dão diferentes significados a essas quatro coisas: desde a representação metafísica do homem (as flechas seriam os 5 elementos, o arco seria a Mente etc.), até complicados esquemas esotéricos. De forma simples e poética diríamos que Tripura-Sundarî captura o devoto com seu gancho na roda do mundo pela doçura, o eleva pelo seu gancho e o amarra a Si mesma, 'salvando-o' pelo amor e pela estupefação diante da beleza.
[23] O termo 'hasita' indica 'tipo de sorriso' como o arco do cupido. É importante dizer que na poesia e na dança tradicional hindu distinguem-se seis tipos diferentes de sorriso -- 'hasita' é o sorriso com o movimento dos lábios formando um arco (o arco do Cupido).
[24] Esse pó tem o nome de kumkum ou vermelhão. É bastante conhecido na Índia.
[25] Shankara, como em outras obras poéticas como o Saundarya Laharî, aqui também faz questão de deixar claro que Tripura Sundarî é superior às três gunas e, portanto, está acima das shaktis ou poderes divinos específicos.
[26] O Destruidor das Fortezas, no caso, é Shiva. Contudo, a propriedade especial da devoção e da compreensão teológica hindu, presente nos Purânas, por exemplo, é que a adoração de cada divindade em particular, é, no fim das contas, a adoração ao Absoluto mesmo. Nesse caso, ainda que em outros versos a Deusa seja a esposa de Shiva, Brahma ou Vishnu, a verdadeira devoção é finalmente revelada: Tripura Sundarî não é exclusivamente nenhuma das três deusas, pois é as três e as transcende, transcendendo inclusive Shiva mesmo em sua forma de Rudra e sua esposa Parvati.
[27] O Ancestral ou Avô dos Seres é o Demiurgo, Brahma; sua esposa é Saraswati.
[28] Mukunda é um dos epitetos de Vishnu, portanto a Deusa aqui é Lakshmi.