Friday, December 13, 2013

Nobre mentira, conhecimento superior e as massas

"...o solo, sendo sua mãe, lhes gerou, e agora, como se seu solo fosse sua mãe e sua ama, eles devem tratar de cuidar dela e defendê-la contra todo ataque, e considerar os outros cidadãos  como irmãos e filhos do mesmo solo..."

Tentando agora retornar um pouco aos temas da República, a releitura do livro tem me trazido boas sínteses conceituais de temas básicos. Trago hoje uma sintética e panorâmica reflexão despertada pelo tema da  "nobre mentira" que é um tema carimbado da política, mas que quero usar aqui nessa postagem para refletir não somente no sentido das relações entre governantes e governados, ou da legitimidade ou não do uso desse artifício, mas também entendê-lo como articulação entre o conhecimento superior e as massas.

Sabe-se que os pitagóricos, por exemplo, tinham uma longa jornada de preparação moral e social do indivíduo até a obtenção dos conhecimentos superiores, ou "mistérios superiores", e sabe-se que preparação semelhante existiu com diferentes formatos em sociedades tradicionais. Sabe-se também que os detentores de conhecimento sempre tiveram dificuldade de articular o que sabiam com a opinião comum que vigorava em determinada sociedade. No entanto, havia certamente sempre um grupo de indivíduos e instituições cujo objetivo era mover-se para fora da "caverna" e retornar sem causar turbulência demais; esse indivíduos, em diversos contextos, usavam, certa forma, de "nobres mentiras", seja para se protegerem ou por outra razão.

O fato é que a nobre mentira, vinda de cima para baixo, não é mera proposição platônica,  mas era uma articulação conhecida e utilizada para apaziguar a tensão da disposição hierárquica, e minha opinião, ainda que o tema seja absolutamente polêmico e minha reflexão incipiente, é de que ela nunca deixou de ser utilizada em contexto político em nenhum momento, apenas se tornou não tão nobre em suas versões modernas, e que sua natureza não é essencialmente imoral, mas tem um fundamento na natureza da ordem social e das divergências entre naturezas.

Na Modernidade, que tem um ethos individualista e "prometeico", entendeu-se que essa reserva de certos âmbitos de conhecimento ou esse monopólio era de natureza puramente política, ou seja, as classes que detinham o poder de "dar significado " (e atualmente entende-se que isso era mera lógica subjetiva) a uma sociedade conseguiam dominá-la politicamente e subjugar as classes inferiores. E, de fato, se por um lado,  a estrutura hierárquica dos antigos era uma estratégia de equilíbrio político, por outro lado, essa reserva ou essa dinâmica tinha profunda intuição na estrutura hierárquica das coisas, e na intuição de que não é possível a libertação absoluta e irrestrita felicidade das massas,  mas é possível encaminhar seus apetites em direção a alguma unidade,  por meio de metas de vida arquetípicas que podem ser satisfeitas pelas instituições e ritos  sociais (aprendizado, entretenimento, casamento, valores) e as aspirações espirituais pela religião em diferentes graus.

A "nobre mentira" em uma "sociedade aberta" se tornou uma tipo de artifício político completamente execrável e Platão chegou a ser considerado um cínico. Se é possível sim, em uma reflexão justa, condenar a nobre mentira em algum aspecto e sob algum ponto de vista, as sociedades democráticas modernas, no entanto, inegavelmente têm suas próprias mentiras, não tão nobres, e não tão conscientes, não há dúvida alguma disso.  Coisas como pátria, democracia, ou liberdade, ou autonomia, ou ser um "ator social", são obviamente invenções políticas impostas às massas, que, de livre e espontânea liberdade talvez não quisessem se ver vinculadas a tais coisas (como de fato ocorre com parte das classes médias desaculturadas e individualistas).

Ao contrário do que pensam aqueles que acreditam que os "detentores do conhecimento" eram na verdade meros inventores de conhecimentos, e criavam-nos segundo sua lógica de dominação, há abundantes evidências de que eles, tinham, em geral, uma visão de ordem muito mais objetiva e integral do que temos atualmente e seu conhecimento era o conhecimento realmente da natureza humana, ao passo que os demagogos de nossos dias, como observa Platão, tratam de agradar as massas como agradam animais: estudando-lhes os desejos, os movimentos, a vaidade, e oferecendo-lhes o "bom"  que na verdade não está alicerçado em nada de verdadeiro, mas tem como base o que as massas precisam ouvir para  poderem apoiá-los.

Uma das intuições que existiam em sociedades antigas e que não existe hoje, é àquela relativa à obtenção da felicidade e da aquisição das metas humanas segundo as diferentes naturezas, como foi exposto em postagens anteriores. Poderíamos dizer que esse tema é monopolizado hoje quase completamente pela indústria de livros de auto-ajuda, por idealizações cinematográficas, pelos discursos de pensamento positivo, por pseudo-espiritualidades, pela o vago ideal "vencer na vida", "buscar seu sonho", ou por filosofias improvisadas que vagamente se remetem a conceitos iniciáticos com termos como "superar as provações", ou ainda pela incitação do divertimentos comercializados, busca de prazeres ou "estilos de vida", e são exatamente esses modelos que são seguidos e adotados. À maioria nem mesmo ocorre que existe algo como realização humana ou que existam métodos disso,  ou mesmo que a natureza humana, por ser diferente da animal, tenha algum fim imaginável.

O que são essas e outras tendências senão sintomas de que nossos sistemas sociais atuais carecem de qualquer intuição sobre os seres humanos e são incapazes de entender ou utilizar proveitosamente as peculiariades humanas? Não temos realmente instituições de transmissão de conhecimento superior no sentido de formar seres humanos, temos no máximo instituições para mover a "máquina do mundo", e isso é mais um dado grave que depõe contra as mentiras de nosso tempo.

A ignorância relativa à natureza dos homens, e crise da autoridade dos detentores do conhecimento vem arrastando erupções e modificações há séculos. Indivíduos que têm talento ou disposição para o conhecimento enfrentam inúmeros obstáculos e, em geral,  se realiza mais uma profecia da República de Platão, a de que pessoas predispostas ao conhecimento, diante dos obstáculos e das dificuldades, se corrompem e se tornam também fomentadores do estado terrível de coisas que eles encontram, que é basicamente o de injustiça. E inclusive, é interessante acrescentar que as massas não são capazes por si mesmas de fomentar o mal social a não ser no que diz respeito à força bruta de imposição (que é um capital muito disputado politicamente),  são os intelectuais corrompidos que desempenham esse papel, em parte por não encontrarem instituições que estivessem preparadas para compreender ou preparar moralmente a relação dos homens de conhecimento com as massas.

Portanto, reitero que a nobre mentira, em sentido amplo, segundo me parece e dependendo de como se apresente, pode ser, na verdade, não uma deliberação imoral ou uma atitude cínica -- quem a condena o faz desde o ponto de vista, próprio da sociedade democrática e igualitária, que pretende uma ilusória transparência completa e horizontal das relações humanas --, mas uma interface incontornável de transmissão vertical de ordem e verdade (nem sempre tudo pode ser dito exatamente como é a todos), e de comunicação entre diferentes níveis de compreensão e de conhecimento,  com abundantes exemplos de uso ao longo da história da civilização.