Thursday, July 25, 2013

O Rei do Mundo



O livro o "Rei do Mundo" toma como ponto de partida a publicidade que estava sendo dada ao tema a que o título se refere, que está vinculado também à existência de um reino subterrâneo chamado Agartha. Isso ocorreu especialmente depois do lançamento do livro "Homens, Bestas e Deuses" de Ferdinand Ossendowski em 1921, em que este narrava suas aventuras em viagem à Ásia Central; o livro estava sendo acusado de plagiarismo de uma outra obra de 1910 chamada "Missão da Índia" de Saint-Yves d’Alveydre. René Guénon inicia seu livro dizendo que as coincidências entre as duas obras não são suficientes para caracterizar um plágio, mas que, pelo contrário as coincidências simbólicas fazem entrever a existência de um objeto ao qual todas essas histórias se referem. Essas coincidências ficam ainda mais manifestas diante da comparação simbólica de diferentes tradições espirituais sobre o tema.

A imagem do "Legislador Primordial Universal" aparece em representações como a do Manu hindu, Mina ou Mènes entre os egípcios, ou Menw dos gregos, por exemplo. O metafísico francês faz questão de registrar que não se trata somente de uma individualidade, mas de uma "inteligência cósmica que reflete a Luz espiritual pura e formula a Lei (Dharma)" ao mesmo tempo em que corresponde ao arquétipo do homem pensante (mânava). Por outro lado, isso não impede que tal realidade tenha sua representação concreta em um centro espiritual estabelecido em algum lugar da terra e cujo chefe representará, pelo seu conhecimento espiritual, o próprio Manu. Esse indivíduo, o Rei do Mundo, reuniria em si mesmo a realeza e o sacerdócio, o que conviria ao título "pontifex", ou seja, construtor de pontes entre o "Céu" e a "Terra".

Alguns, todavia, associaram rapidamente o título "Rei do Mundo" com o "princeps hujus mundi" do evangelho. Guénon desfaz essa confusão mostrando que há uma diferença entre "esse mundo" e "O Mundo" nos Evangelhos. Há uma relação importante entre a figura do Rei do Mundo e os chamados intermediários celestes que aparecem na cabala hebraica, Shekinah e Metatron, que poderia ajudar a compreender a questão. A Shekinah é sempre a presença real da Divindade, que aparece nas escrituras por ocasião da instituição de um centro espiritual (tabernáculo, etc.) representando o polo terrestre a passo que o Metatron seria o polo celeste, ambos representados respectivamente pelos termos "Pax" e "Gloria" na frase "Gloria in excelsis Deo, et in terra Pax hominibus bonæ voluntatis".

Saint-Yves, em seu livro, diz que o chefe supremo da Agartha seria o Brahmâtma, que daria suporte às almas diante de Deus. Ele seria assessorado pelo Mahâtma (representante da Alma Universal) e pelo o Mahânga (representante da organização cósmica).  Ossendowski, de maneira semelhante, diz que ao Mahâtma é dado conhecer os acontecimentos e o que está por vir, o Mahânga dirige a causa desses acontecimentos e o Brahmâtma fala com Deus face a face. Esse simbolismo, presente nos dois livros, tem correspondências também com a tríade upanixádica chamada tribhuvana: a Terra (Bhû), a Atmosfera (Bhuvas), e o Céu (Swar), de maneira que cada um desses planos seria o plano de operação de um dos elementos correspondentes da tríade "Mahânga-Mahâtma-Brahmâtma"; Guénon faz uma série de analogias com essa tríade apresentada, como, por exemplo, na ordem dos princípios universais o Brahmâtma, de acordo com as doutrinas hindus, seria Îshwara, o Mahâtma serio ovo cósmico ou Hiranyagarbha e o Mahânga seria o Virâj; da mesma forma ocorreria em outro plano com os três reis magos, representantes de Agartha, e simbolizados pela oferta de ouro (Mahânga) o incenso (Mahâtma) e a mirra (Brahmâtma), bem como com os três elementos (matras) da sílaba AUM.


Envolvendo o tema nesse panorama simbólico para dele recolher uma compreensão mais profunda, Guénon nos apresenta também sumariamente os fundamentos a lenda do Graal, que se remete à perda da imortalidade ou à queda do homem. Segundo a lenda, o Santo Graal é a taça que continha o sangue de Jesus Cristo que escorreu sua ferida aberta por uma lança quando de sua crucificação.  Essa taça foi transportada à Grã-Bretanha por José de Arimateia e Nicodemos, e Guénon observa que aí está novamente a representação do poder sacerdotal e real, compatível também com a Távola Redonda e as figuras de Merlin e do Rei Artur e que tem inúmeras relações em diferentes planos com o tema abordado.

Há muitas conexões entre o Graal e outras lendas da bebida da imortalidade, como o soma védico ou o haoma persa,  o vinho sufi, ou o vinho dionisíaco. O uso da bebida no rito confere-lhe um caráter iniciático, como é o caso do sacrifício eucarístico de Melquisedeque. Sobre está último, Guénon dedica todo um capítulo explorando os diversos símbolos que lhe dizem respeito. Melquisedeque, cujo o nome significa "rei da justiça" é também, segundo Paulo, o rei de Salém, que significa paz, e portanto, ele reúne em sua figura a função de Rei e Sacerdote, cujo sacerdócio, identificado por Elión, é um aspecto superior ao Shaddaï, e por isso que, ao ser iniciado nesse novo sacerdócio, Abraão lhe paga dízimo. Elión, segundo Guénon, é exatamente Emmanuel, ambos os nomes correspondendo ao número 197. Ainda se observa que a figura de Melquisedeque correspondente ao Brahmâtma, pode representar em si mesmo a função dos três reis magos, uma vez que uma função superior inclui e transcende as inferiores, ou seja, Melquisedeque pode aparecer sozinho ou pode se desdobrar, segundo dizem alguns, nas funções de Melquisedeque (Rei da Justiça), Cohensedeque (Sacerdote da Justiça) e Adonisedeque (Senhor da Justiça).

O mundo subterrâneo ou inferior também tem um rico simbolismo que se relaciona às histórias de que Agartha seria localizada embaixo da terra; os diversos registros históricos de centro iniciáticos subterrâneos nos indicam a importância desse símbolo. Guénon nos mostra como vão se conectando de forma caleidoscópica  as palavras e os símbolos, convergindo e divergindo em muitos níveis e padrões dentro de uma só temática: o hebraico tem a palavra "luz" que originariamente se referia ao lugar onde Jacó teve um sonho e o qual ele nomeou posteriormente de Betel (Casa de Deus), conta-se que o Anjo da Morte não poderia entrar nesse lugar e não teria aí nenhum poder; perto daquele lugar há uma amendoeira (que também se chama "luz" em hebraico) na base da qual haveria um buraco que levava em direção ao subterrâneo. Ademais, a palavra "luz" tem muitas relações etimológicas e simbólica com a palavra Céu ou Urano (Varuna).  A amendoeira, por sua vez, significa linguisticamente um miolo duro e inviolável onde está o 'embrião imortal'. Esse miolo, em algumas descrições, estaria localizado na parte mais inferior da coluna vertebral humana, o que nos remete também ao simbolismo da kundalini hindu.

Tudo isso indica, de alguma maneira, que o centro iniciático central está oculto durante a Kali-Yuga; o próprio termo Agartha significa "inatingível", "inacessível" ou também "inviolável", uma vez que é o "recinto da paz ou Salém". Segundo M. Ossendowski esse ocultamento ocorreu há mais de 6 mil anos. Guénon explica que a comunicação da Europa com o "Centro do Mundo" foi interrompida definitivamente e que isso se deu em etapas: primeiramente com a destruição da Ordem do Tempo no século XIV a conexão se manteve, ainda que muito "dissimulada" com o chamado Rosacrucianismo; Saint Yves indica que a ruptura definitiva ocorreu na ocasião dos tratados de Vestfália, quando os rosacruzes se retiraram completamente para o Oriente.

Guénon observa que antes da Kali-Yuga, Agartha, que agora é representada pela caverna, quando ainda não era oculta, era conhecida como Paradêsha que significa "supremo país" e é notável a semelhança do nome com o "Pardes" presente na literatura caldaica e na kabala hebraica, ou então no "paradis" (paraíso) do francês. O paraíso se inseria no simbolismo da montanha polar, que equivalia ao Mêru dos hindus, ao Alborj dos persas, ao Montsalvat da lenda do Graal, ao Qâf dos árabes e ao Olimpo grego. A história é sempre a de uma região que, como o paraíso terrestre, se tornou inacessível à humanidade comum e que se situa além de toda possibilidade de cataclismo. Temos também o simbolismo do "ônfalos" que é o umbigo, geralmente representado por uma pedra comumente conhecida como "betyl" que por sua vez se associa à cidade de Betel segundo os simbolismos anteriores e Belém (Beith-Lehen).

Além do  nome "Paradêsha" temos um ainda mais antigo, "Tula", que deu origem ao grego "Thulé" (Ilha dos Quatro Mestres) e aqui temos toda uma sequência de simbolismos da ilha indicando estabilidade e equilíbrio. Vemos o mesmo nome na América, e da "Tula" mexicana, segundo alguns, foi que o nome "Aztlan" (terra no meio das águas) se derivou, o que tem uma conexão visível com a "Atlântida". Em sânscrito temos o "Tulâ" que significa nada mais que "Libra" o signo zodiacal, entre os chineses a "Libra" ou balança celeste é a Grande Ursa, e as relações entre a balança, a justiça e Melquisedeque também são notáveis. A Tula também é a "Ilha Branca" presente em diversas tradições, que nos remete ao simbolismo polar e também à "balança polar". No simbolismo esotérico é preciso cruzar o "mar das paixões" para alcançar o "Santuário da Paz".

A localização concreta dos centros espirituais é uma matéria muito complexa, porém secundária para o tema do livro, segundo Guénon. Há analogias e similitudes entre os diversos centros espirituais como Lhasa, Roma, Jerusalém e a Agartha, no sentido de que fixação geográfica dessas cidades nunca foi feita de maneira arbitrária. Houve no passado o conhecimento de um geografia sagrada ou sacerdotal. Grandes centros espirituais existiram existiram na Creta pré-helênica ou em Tebas, por exemplo, cujo nome é equivalente ao Thebah hebraico, que indica a Arca do Dilúvio, e Guénon diz que pode ter  havido sucessivos deslocamentos do "Centro do Mundo" segundo o desenvolvimento do ciclo e segundo leis específicas; também é possível afirmar que os diversos centros conhecidos sejam centro secundários ou reflexos de um centro principal.  Guénon termina o livro dizendo que se por um lado ele seria condenado por ter revelado mais do que se revelou, ele acredita que não há em seu livro nada que não deveria ser revelado diante das atuais condições. Fica estabelecido, portanto, o fato de que existe uma "Terra Santa" transcendental, como atestam as diversas tradições, e, sobre a sua correspondência geográfica, Guénon se limita a dizer que não as representações geográfica não estão destituídas de correspondências com essa realidade arquetípica.

A minha modesta opinião, que compartilho com algumas outras pessoas que o leram, é que esse livro é o mais "estranho" do Guénon por diversos razões: só para exemplificar, a primeira delas é que há uma ruptura marcante com estilo geométrico de escrita do Guénon, para a adoção de um fluxo realmente caleidoscópico como eu disse anteriormente; às vezes abarcando muito conteúdo e articulação cognitiva potencial para quem conseguir fazer as conexões entre os símbolos, e isso é assim ao ponto de desnortear o leitor completamente algumas vezes. O simbolismo usado se presta a abranger muitas dimensões e criar relações em muitos planos simultaneamente e de forma muito complexa. É um livro pequeno, desafiador e que fala de temas de implicações imprevistas como o próprio Guénon observa ao fim do livro.