Saturday, January 31, 2015

O renascimento segundo Julius Evola

Bom, essa primeira postagem é basicamente uma seleção de trechos dos livros do Evola sobre o 'renascimento' ou reencarnação. É tema acidental em sua obra, as referências ocorrem de forma dispersa.

Origem das doutrinas de reencarnação

Evola, ao contrário de Guénon, diz que as crenças reencarnacionistas, mesmo em suas manifestações mais grosseiras, existiram em diferentes graus também na antiguidade (no que se chama início da Kali-Yuga), e que, a inspiração teosófica veio dessas fontes mais exotéricas. Concorda com Guénon em que são doutrinas externas ou mais ou menos popularescas:
“[...] O teosofismo se jacta de ter chamado a atenção do Ocidente sobre este outro 'ensinamento da sabedoria antiga'. Na realidade, dada a limitação de horizontes dos homens modernos, para os quais a existência é o princípio e o fim de tudo, não vendo nada antes nem depois dela senão vagas ideias religiosas sobre além, que, para eles não significam nada de vital; suscitar o sentido de 'vir de longe', de ter vivido muitas outras vidas e muitas outras mortes e de ter a possibilidade de proceder ainda de um mundo ou de outro, além da queda deste corpo, seria certamente um mérito. O mal está em que, no teosofismo tudo se reduz a uma série monótona de existências do mesmo tipo, quer dizer, terrena, [1] separada por intervalos de corporeidade mais o menos atenuada." (R.M.E.C. cap. IV)
E em obra mais tardia diz:
“Podemos brevemente lembrar que o Oriente, desde longa data, tem conhecimento de teorias como a da reencarnação, ao passo que mais recentemente o Ocidente tem professado quase exclusivamente a crença na singularidade da vida individual. O fato, por si mesmo, não é uma causa, mas consequência ou índice barométrico da crescente involução que ocorre durante a idade obscura (Kali-Yuga) a que eu me refiro com frequência. Essas teorias orientais contém ainda um eco do estado primordial no qual a humanidade ancestral já viveu. Nesse estado, a sede do corpo sutil não estava totalmente obstruída, e a humanidade ainda tinha um sentimento da ‘consciência samsárica’ conectado a essa sede. Esse conhecimento foi perdido com o passar do tempo porque o corpo humano se tornou cada vez mais físico. Naturalmente, como eu já disse repetidas vezes, a crença na reencarnação é popularesca e de alguma forma supersticiosa uma vez que essa noção expõe uma série de encarnações terrestres de uma entidade única, e deveria ser rejeitada pois carece base sólida ou fundamentos tradicionais.” (Y.P. cap. X)
E ainda em outra obra:
"O que continuamente emerge em várias formas nas tradições antigas é o ensinamento de que no homem, além do corpo físico, há essencialmente três entidades ou princípios, cada um dotado de seu próprio caráter e destino. O primeiro princípio corresponde ao 'Eu' consciente típico do estado de vigília, que surgiu junto com o corpo e foi formado junto com seu desenvolvimento biológico; essa é a personalidade comum. O segundo princípio era chamado de 'demônio', 'manes', 'lar' ou mesmo 'duplo'. O terceiro e último princípio corresponde ao que procede da primeira entidade após a morte; para a maioria das pessoas , é a 'sombra'[2]. Enquanto a pessoa pertencer à 'natureza', o fundamento último de um ser humano é o daemon ou 'demônio' (δαίμων em grego); nesse contexto o termo não tem a conotação má que lhe foi conferida pelo cristianismo. Quando um homem é considerado desde o ponto de vista naturalístico, o demônio poderia ser definido como uma força profunda que originalmente produziu a consciência na forma finita que é o corpo no qual ele vive durante sua residência no mundo visível. Essa força, no fim das contas, permanece 'por trás' do indivíduo, nas dimensões pré-conscientes e subconscientes, como o fundamento dos processos orgânicos e as relações sutis com o ambiente, com outros seres e com o passado e o futuro.  Essas relações normalmente escapam a qualquer percepção direta." (R.C.M.M cap.VIII)
Assim, essas doutrinas teriam emergido, por um lado, das cosmovisões de raças pré-arianas que se infiltraram lentamente nas civilizações de natureza mais solar [3], e por outro lado, pela diminuição do escopo da consciência da humana, o que ele entende como sintoma de 'doença espiritual'. Essa nova perspectiva de consciência, sob a qual inclusive nasceram as tradições como o budismo, por exemplo, exige o estabelecimento do homem no que se chama ‘consciência samsárica’.  Portanto, distinguir-se-iam distinguir três momentos de consciência ou de ‘luminosidade’ da percepção humana sobre a totalidade e que dão origem a diferentes doutrinas; uma fase inicial, representada pela consciência divina plena é a que está presente, por exemplo, nos samhitas védicos, uma segunda fase é anunciada pelos upanishades e pela doutrina budista, que ele chama de consciência samsárica, e por fim o estabelecimento concreto da visão da humanidade na vida e na individualidade terrestre, característica por exemplo das religiões como o Islam e o Cristianismo, que se dirigem meramente à salvação individual[4].

Nos hinos védicos, de fato, o que se registra é oposição pura entre mortalidade e a imortalidade, não havendo traços de qualquer doutrina de renascimento ou de 'karma' perfeitamente delineada. Evola observa que nessa fase não há traços tampouco do significado posterior que passou a ter Yama como sendo um deus da morte e dos infernos; ao invés disso, nesse período inicial, ele retém os contornos do seu equivalente indo-ariano, Yima, o deus sol da idade primordial. Yama é o primeiro dos mortais, uma vez que ele ‘encontrou primeiro a estrada para o além’; assim, o ‘outro mundo’ segundo os védicos, é, em grande medida, atrelado à pura reintegração ao estado primordial. 

Os ‘germes da decadência’ teriam surgido no período pós-védico, ou seja, por volta do século VI A.C. e já haviam se tornado bem estabelecidos e desenvolvidos no tempo do Buda. A reação a essa decadência resultou, por um lado, no surgimento do ‘demônio da especulação racional' sobre aquilo que deveria ter permanecido doutrina secreta (rahasya) dando origem à expressão upanishádica tal qual a conhecemos e, por outro lado, vemos nesse período as deidades védicas, que inicialmente tinham um apelo esotérico, de estados de consciência, serem transformadas em divindades de culto sentimental e popular, numa profusão de seitas e teorias, caindo muitas vezes em panteísmo [5]

Além disso, as supostas invasões não-arianas parecem ter contribuído de forma significativa para o estabelecimento mais firme da doutrina da reencarnação em suas formas ainda mais grosseiras, rompendo de forma brusca com a visão ‘olímpica’ dos arianos e substituindo-a por ajustamentos próprios de raças ‘telúricas e matriarcais’:
“A reencarnação, de fato, é concebível somente para aquele que se sente ‘filho da terra’, ou seja, quem não tem conhecimento de uma realidade que transcende à ordem naturalista, estando, portanto, preso à divindade feminina e maternal, encontrada tanto no mundo mediterrâneo pré-ariano como nas civilizações hindus pré-arianas como os dravidianos e os cossalianos. O indivíduo, quando morre, deve retornar para a fonte em cuja lapidação está seu ser efêmero, somente para surgir em verdades terrestres renovadas, num ciclo inescapável e interminável. Esse é o sentido último da teoria da reencarnação, teoria que começa a se infiltrar logo no período das especulações upanishádicas; isso gradualmente dá espaço a formas mistas que podemos usar como medida para a mudança na consciência ariana original à qual nos referimos.”  (D.D. cap. II)
As diferenças entre o Vedânta e o Budismo sobre o tema

Diante dessa alteração do escopo da consciência humana que foi apresentada acima, Evola diz que as distinções entre o Vedânta e o Budismo podem ser compreendidas da seguinte forma:
“[...] a ideia mais próxima à reencarnação tal qual a professam os teosofistas se encontra talvez no Vedânta. Mas o Vedânta, a esse respeito, tem um base: a teoria do Si Mesmo, do âtman imortal e eterno, idêntico ao Brahman, ao princípio metafísico de cada coisa. Esta teoria [vedântica] se refere a um estado espiritual da consciência do homem, que não é encontrado, não só nos homens de hoje, mas nem mesmo na humanidade do período budista. Com efeito, no budismo encontramos a doutrina do anâtman, ou seja, a da negação da essencialidade da alma e de uma certa continuidade nela. Aqui não se quer confrontar o Vedânta com o Budismo, como duas opiniões filosóficas em contraste uma com a outra, mas sim duas teorias que são diferentes só porque se referem a duas condições espirituais historicamente diversas. O âtman que o budismo nega, não é aquilo que o Vedânta afirma. A alma do Vedânta não é senão aquilo que o budismo considera, não como realidade presente em qualquer homem, mas sim uma meta que só excepcionalmente, por meio da ascética, é possível alcançar.” (R.M.E.C. cap. IV) 
Segue:
“[...]o sentido que poder ter a reencarnação para alguém cujo eu era entendido mais ou menos como um princípio universal e, portanto, superior a cada indivíduo em particular (Âtman=Brahman), não é o mesmo sentido que a mesma doutrina pode ter se atinge um eu humano comum e encerrado em si mesmo dos tempos mais recentes; para esse último, os contatos se romperam, a única coisa que existe é algo como um fio de seda inalterável atravessando e unindo uma série indefinida de pérolas, que representam cada uma das existências. [...] Não se trata mais de reencarnação no sentido vedantino, mas, pelo contrário, de uma alternativa de ‘salvação’ ou de ‘perdição’ que, em certa medida, é decidida nessa terra. [...] Para o homem ocidental médio, é, pois, verdadeiro esse ensinamento (reencarnação), mas não é reencarnação no sentido vedantino. [...] No sentido budista do termo é possível dizer que isto que, nas condições presentes, é perene e é transmitido de ser a ser não é já o ‘âtman imortal’ (a superpersonalidade), mas a ‘vida’ como ‘desejo’. É a vontade profunda e animal de viver, nos termos de uma entidade sub-pessoal que cria sempre um novo nascimento, que é a matriz de todo eu mortal, e, ao mesmo tempo, o obstáculo dos mundo superiores. (R.M.E.C. cap. IV)
Portanto, Evola faz, de certa forma, uma opção pelos ensinamentos budistas em detrimento dos vedânticos por uma questão de funcionalidade:
“[...] se queremos continuar falando da reencarnação e karma, a visão realista [para o atual estado de consciência] a ser buscada são os ensinamentos semelhantes aos que há no budismo, que têm os olhos voltados precisamente para a alma ‘caduca’, ou para a alma excepcionalmente desvinculada, no estado do nirvana, mediante a ascética. Segundo o budismo, o homem que alcançou o estímulo e a iluminação espiritual com seus pensamentos, palavras e ações (karma) gerou, apesar de tudo, um outro ser ou ‘demônio’ (chamado ântarabhâva ou vijñâna) substanciado (convertido em ser) como seu incurável desejo de vida, que recebe tendências fundamentais. Este ser em geral sobrevive à morte. (R.M.E.C cap. IV)
A consciência samsárica

Evola diz diversas vezes que, de fato, a reencarnação é relativamente válida, especialmente para os homens dos dias de hoje que estão submersos na consciência samsárica:
“[...] em nossos dias, o princípio e o fim da existência de grande parte dos homens se esgota num modo de vida semelhante, e o caso da ‘libertação’ se apresenta cada vez mais como uma anomalia, de forma que é possível dizer que, para a humanidade do período atual, a reencarnação no sentido de uma reprodução terrestre perene tem uma certa margem de verdade” uma vez que “a reencarnação é uma ideia justa, se se refere somente a aquele ente irracional que, destruído o corpo, em seu desejo constante e insaciável de vida, passa a outros corpos, nunca elevando-se a um plano superior”. (R.M.E.C. cap. IV)
Ou seja, parece que, estando toda nossa humanidade dentro dos pontos cegos desses círculos de consciência inferiores, normalizados e solidificados tanto pelo obscurecimento cíclico como pelo predomínio da visão das raças telúricas, é só a partir da aceitação desse ponto de vista que é possível enxergar as coisas apropriadamente:
“Chegamos então ao que chamamos de consciência samsárica que é o fundamento da perspectiva de vida do budismo: o conhecimento secreto confiado em privado pelo sábio Yajñavalkya ao rei Artabhaga, é que depois da morte os elementos individuais do homem se dissolvem nos elementos cósmicos correspondentes, incluindo o Âtman, que retorna ao ‘éter’, e que o que permanece é somente o karma, isso é, a ação, a fumaça impessoal, atrelada à vida de um ser [...]” (D.D. cap. II)
Para a visão aristocrática adotada por Évola [6], a própria crença de que todas as 'almas' indiscriminadamente fossem imortais lhe parecia inaceitável como proposta de via ou perspectiva: a verdadeira imortalidade, dizia ele, era a participação na natureza olímpica de um deus, e não a mera 'sobrevivência'. O kshátriya aceita e coloca-se, portanto, dentro da visão samsárica (diferentemente do vedântico) e consegue visualizar os dois caminhos: um é o caminho dos deuses, também conhecido como caminho solar, ou caminho de Zeus, que leva à morada luminosa dos imortais, representada de maneiras diversas como altura, céu, ou uma ilha do Valhala nórdico ou a “Morada do Sol” dos incas, “reservado a reis, heróis e nobres”, o outro caminho é percorrido por aqueles que: 
“[...] não sobrevivem de maneira real, e que vagarosamente, contudo inexoravelmente são dissolvidos em suas castas originais, nos ‘totens’ que, diferentemente dos indivíduos, nunca morrem; essa é a vida do Hades, dos infernos, do Niflheim, das divindades ctônicas.”  (R.C.M.M. cap.VIII)
O totem ou a 'matriz ancestral reincarnante'

Essa noção de totem, o animal ou símbolo que rege geneticamente um clã, mereceria especial atenção de Evola em suas relações com o chamado 'duplo':
"Esse 'duplo' tem sido frequentemente associado ao ancestral primordial ou ao totem concebido como a alma e a vida unitária que gera uma casta, a família, um clã ou uma tribo, e portanto, tem um sentido mais amplo do que o oferecido por certas escolas de etnologia contemporâneas. Os indivíduos de um grupo aparecem como várias encarnações ou emanações desse demônio ou totem, que é o 'espírito' pulsando em seu sangue; eles vivem um no outro reciprocamente, ainda que ele as transcenda, assim como a matriz transcende as formas particulares que produz a partir de sua própria substância. Na tradição o demônio corresponde ao princípio interno do homem chamado linga-sharîra. A palavra 'linga' contém a ideia de um poder gerador; daí, a possível derivação de 'genius' a partir de 'genere', que significa agir no sentido de procriar e a crença romana e grega de que o 'genius' ou demônio é a mesma força procriativa sem a qual a família se extinguiria. É também muito significante que os totens tem sido frequentemente associados com as 'almas' de espécies animais escolhidas, e que especialmente a cobra, um animal especialmente telúrico, tem sido associada no mundo clássico com a ideia de demônio ou gênio. Essas duas situações dão testemunha do fato de que em sua natureza imediata essa força é essencialmente sub-pessoal, e pertence à natureza e ao mundo infernal. Assim, de acordo com o simbolismo da tradição romana, a sede dos 'lares' é no subsolo; estão sob os cuidados do princípio feminino, Mania, que é a 'Mater Larum' [7]." (R.C.M.M., Cap. VIII) 
A origem do samksaras ou 'impressões ancestrais'
“Qual é, então, a origem dos samskaras? [8] Essa é uma questão complexa, e só podemos responde-la recorrendo à doutrina das ‘heranças múltiplas’. Entre várias crenças populares do hinduísmo, encontramos uma explicação baseada na ideia de reencarnação, que deveria ser aceita com a devida cautela. Dizem que os samksaras, que são os elementos constituintes do ser finito dotado de corpo, mente, tendências habituais e experiência são efeitos e consequência de existências prévias, que por sua vez são determinadas pelo karma. Isso, na verdade, não resolve o problema, mas simplesmente o reformula em termos diferentes. Se para poder explicar os samskaras que estão em funcionamento na existência presente nós temos que nos remeter às atividades realizadas em existências anteriores, o problema só aumenta. Para explicar por que essas atividades ocorreram, teríamos que regredir mais ainda, para uma existência anterior e assim por diante, ad infinitum. Meu argumento é que, no fim das contas, a série deve ser interrompida e ser explicada em termos de um ato original de auto-determinação. Qual é a natureza dessa ato? Essa é uma questão aberta. A resposta não pode ser localizada no tempo e no espaço, uma vez que nessas categorias, não há continuidade entre as várias manifestações de uma consciência única, ou entre múltiplas existências como sustenta o mito reencarnacionista. A continuidade deve ser encontrada somente no plano sutil, vital (prânico) e no poder da vida, que não é nem dependente de um único corpo e nem exaurida nele. (Y.P. cap. IV)
O indivíduo individuante 

Na sua exposição sobre a doutrina tantrista dos tattvas [9], Evola, encontra no nível do 'buddhi', que corresponderia ao 'nous' ou 'intelecto', a intersecção entre o indivíduo samsárico e a causalidade supra-individual:
“[Buddhi é] o princípio de toda individuação que é livre de toda forma particular de existência condicionada. Nesse nível a consciência individual aparece como uma reflexão samsárica de uma consciência superior. É por isso que o samkhya considerava o buddhi como a intersecção dos elementos do purusha e prakriti. A função desse tattva consiste em agir como um princípio intermediário entre as dimensões individual e supraindividual. Uma vez que o buddhi se situa num plano superior ao da individuação, a continuidade entre as formas e os estados individuais pode, portanto, ser estabelecida [10]. Essa continuidade, contudo, não pode ser vista desde uma perspectiva daqueles que se identificam com esses estados e que estão sendo varridos pela corrente. O fato de que essa continuidade não possa ser vista pode até mesmo se referir, em certo nível, a várias manifestações do Eu assumindo a forma de vidas não relacionadas. Não esqueçamos que a crença em uma sequência de existências é um princípio cardeal da crença popular da reencarnação. No que diz respeito à consciência individual, que é limitada a apenas uma vida, o ‘buddhi’ é também chamado de ‘mahat’, o ‘grande princípio’. No nível da psicologia individual, cada decisão, deliberação, e determinação e determinada por ele. O buddhi age até mesmo nos aspectos volicionais e decisivos da vida interna.” (Y.P. cap. IV) 
E ainda:
"Num grau superior, ela [a continuação entre as existências] existe no nível do buddhi-tattva, o ‘indivíduo-individuante’, cuja natureza consiste na formatação da realidade. Deve-se pensar que no nível mais alto dos tattvas impuros, ocorre uma inferência nos seguintes termos: a auto-determinação pura, que é uma ‘fatia’ de planos superiores, procede da esfera dos tattvas puros e a partir do corpo causal, que então se traduz no ato do ‘buddhi’. Não há explicação para essa determinação, uma vez que ela ocorre no domínio onde a suprema razão para atuação reside no ato mesmo, onde as causas não são determinadas por outras causas , e onde as formas são manifestadas como estágios do que é chamado de ação da ‘Shakti’ ou Lîlâ. Nesses planos superiores de existência (prajña) não há causa antecedente e nem mesmo samksaras. Os samksaras acabam por serem apanhados num estágio posterior, como resultado de uma eleição, coalescência, e apropriação que se segue à imersão na correntes samsárica. Essa corrente inclui as formas pré-determinadas e vários heranças (sejam biológicas ou prânicas), que se referem a elementos anteriores, sejam conectados ou não. Nesse sentido, os samskaras realmente existem no corpo sutil no qual o corpo causal se manifesta. Eles são também responsáveis para oferecer uma direção tanto para a ação seletiva do manas, através de seus órgãos, como para a vida à qual dá suporte, nutre e modela a forma física. De alguma forma, as antigas noções de ‘demônio’ e ‘gênio’ podem ser reduzidas ao corpo de vida informado por um grupo especial de samksaras, que, através do buddhi, dá vida à imagem samsárica do Shiva imóvel. Portanto, os samskaras não deveriam ser confundidos com o núcleo real da personalidade, que a partir do nível de buddhi para cima está fora das condições para as quais as existências prévias ocorreram. Isso contribui para a desmitologizar a crença popular na reencarnação, que não é parte de ensinamentos esotéricos, independentemente do alguns pensem.” (Y.P. cap. IV) 
Por fim:
“Uma continuidade real é concebida somente no nível dos corpos causal e sutil, uma vez que esses assentos são superiores a toda individuação e produção e não estão limitados a apenas uma vida. No nível do corpo sutil o que emerge é a ‘consciência samsárica’, ou melhor a consciência de ser levado por uma corrente na qual uma existência particular representa um vórtex particular . No nível do corpo causal, a consciência se estende verticalmente aos estados múltiplos do ser, até o ponto onde não há mudança ou vir-a-ser.  (Y.P. cap. X)
A via heroica e o arbítrio sobre a outra vida

O verdadeiro ‘livre-arbítrio’ ou ao menos o exercício dessa faculdade, parece ser próprio do ‘vira’ ou ‘heroi’. Somente a esse cabia realmente a sobrevivência após a morte:
“[...] Somente o tantrismo formulou uma 'ciência da morte' realmente e enfatizou a noção de 'liberdade de escolha' em relação ao nosso destino no outro mundo. Entretanto, esse princípio não se aplica à vasta maioria das pessoas, para quem a morte representa uma profunda crise. A mudança de estado correspondente a essa crise é experimentada pelas pessoas como algum tipo de desmaio ou então como se fossem atingidas de forma que ficassem inconscientes, de acordo com conexões quase mecânicas das causas e efeitos do karma (tudo o que se faz durante a existência terrestre tem repercussões de grande escopo). Essa conexão vai determinar a nova existência condicionada, completamente desvinculada das existências prévias, uma vez que não há uma continuidade de consciência realmente pessoal entre todas elas ('como uma chama acende outra chama')." (Y.P ap. I)
E também:
"[...] um dos possíveis significados do termo 'pashu' (animal), que se  refere ao ser humano condicionado normal -- é 'vítima sacrificial', um animal prestes a ser sacrificado. Isso nos traz novamente ao conceito de pitriyâna, que é um dos dois caminhos para o próximo mundo, considerada nas tradições hindus. Nesse caminho, que a maioria das pessoas são forçadas a atravessar [11]a morte liberta a personalidade para as forças ancestrais do clã de origem, da mesma forma que um animal é sacrificado aos deuses e se torna alimento para outras vidas. Portanto, a única coisa que continua a viver é o processo kármico mencionado.” (Y.P. ap. I)
Conclusão:

Portanto, para Evola, a reencarnação é relativamente aceitável, ainda que se remeta sempre a um estado de consciência ou de percepção da totalidade característica da Kali-Yuga, que Evola chama de 'consciência samsárica'. Essas doutrinas existiram desde a antiguidade, e os movimentos modernos como teosofismo e kardecismo apenas teriam acrescentado notas sentimentais apropriadas à mentalidade moderna.  O aristocrata busca estabelecer-se dentro das vias disponíveis na consciência samsárica, particularmente representadas pelas doutrinas budistas, de que não há um 'eu transmigratório'.

Próxima postagem:  O renascimento segundo Frithjof Schuon

NOTAS:

[1] É preciso dizer que Evola aqui é um pouco injusto com as doutrinas teosóficas dizendo que elas se reduzem a reencarnações terrenas, o que não é o fato: qualquer um que já deu uma olhada nas exposições teosóficas ou mesmo espíritas sabe das possibilidades de outros planetas ou coisas assim.
[2] A divisão tripla de fato existe, contudo, no trecho não fica claro o que é realmente 'a sombra'.
[3] Para entender mais apropriadamente essa posição é preciso se remeter às teorias raciais do autor presentes em livros como "O Mistério Hiperbóreo".
[4] Apesar de crer que Evola não endossaria isso, parece que a consequência inevitável é concluir que, para Évola, a visão da singularidade das vidas individuais, típica das religiões semíticas, poderia ser considerada como ainda mais grosseira e inferior que a visão dos teosofistas.
[5] Deste o ponto de vista do Vedânta, não há distinção entre os Samhitas e os Upanishades a não ser no que diz respeito ao método; o primeiro sendo proporcionado ao karma (ação) e o segundo ao jñâna (gnose). Portanto, a distinção de Evola parece problemática: ora, se houve de fato uma decadência do período dos Samhitas até os períodos dos Upanishades, ele teria de defender que o Karma, tema dos primeiros, é superior à Jñana, tema dos segundos; o que é oposto ao esoterismo.
[6] A propósito de aristocracia, há um fato curioso nos Upanishades em relação à doutrina do renascimento: é o episódio atípico em que os kshátriyas dão ensinamentos a brâmanes (vou escrever mais sobre isso em futura postagem). Por algum motivo, parece que os ensinamentos esotéricos sobre o mundo intermediário eram propriedade da casta guerreira, ao passo que os ensinamentos sobre a unidade entre Âtman e o Brâhman eram propriedade dos brâmanes.
[7] Falarei disso mais adiante, mas há uma interessante ressonância dessa ideia, em algum nível, na preocupação de Ârjuna no primeiro capítulo no Bhagavad Gîta, em que ele diz que "destruído o clã (kula), desaparecem suas tradições antigas, como desaparecimento das tradições, o 'adharma' domina todo o clã; com o domínio do 'adharma', ó Krishna, as mulheres da família são corrompidas, e da corrupção das mulheres, ó Vârshneya, vem a mistura das 'varnas'; tal confusão leva aos infernos os destruidores do clã e o próprio clã, pois os ancestrais (pitaras), privados do pinda (oferta de arroz e água), perecem. Por esses crimes dos destruidores dos clãs, que levam à confusão e desordem, o dharma perene dos clãs (kuladhârma) e os dharmas hereditários (jâtidharma) são destruídos. E os homens de cujo clã o dharma foi corrompido, ó Janârdana, viverão para todo o sempre no inferno, é o que nos foi dito." (I, 40-44)
[8] Shânkara em seu comentário aos Vedânta-Sutras, com bases reveladas, diz que o samsâra, e, por conseguinte, os karmas, não têm início, são ‘anâdi’.
[9] Evola dá uma explicação sobre essa doutrina dos 36 tattwas em seu livro ‘A Yoga do Poder’. Contudo, para uma exposição tradicional e acessível eu sugiro o livro ‘Kashmir Shaivism, the Secret Supreme’ de Swami Lakshmanjû. 
[10] Aqui Evola apresenta um ponto de vista diferente do da individualidade 'totêmica'. Se crermos que não havia aí uma contradição direta, podemos pensar que Evola entendia a coisa em dois eixos, como Guénon: num sentido horizontal, o fator de renascimento é o totem, e num sentido vertical, que não se dá no tempo e no espaço, há uma espécie de intervenção auto-determinante e inefável que 'entra' no ciclo do sâmsara, sem que possamos explicar como isso é feito senão em termos analógicos. 
[11] Parece que Evola aqui confunde um pouco o pitriyâna com o chamado 'terceiro caminho' (tritîya), que é o que leva ao chamado yamaloka. Na verdade, para seguir o pitriyâna o indivíduo tem de ter participado de ritos ou ter méritos no nível das ações humanas, ao passo que no 'terceiro caminho' ele é realmente arrastado, segundo narra com detalhes, por exemplo, o Garuda Pûrana.

Siglas: Y.P: A Yoga do Poder,  D.D. A Doutrina do Despertar, R.C.M.M., Revolta Contra o Mundo Moderno, R.M.E.C. Rostos e Máscaras da Espiritualidade Contemporânea

Tuesday, January 27, 2015

As doutrinas do renascimento

Em discussões na internet sobre religião comparada ou perenialismo, o tema da 'reencarnação' foi sempre recorrente. Eu normalmente defendi que a posição metafísica do Guénon, independentemente de como ela fosse organizada em outros planos, era inevitavelmente verdadeira e isso invalidava absolutamente as posições ocidentais modernas.  Recentemente, por contatos dentro do Dharma e por leituras diversas, eu decidi fazer realmente um estudo mais aprofundado sobre o tema e daí buscar apresentar as possíveis conclusões -- até como obrigação de auto-crítica pela abordagem um tanto dogmática que eu adotei para tratar de um tema que em si mesmo não pode ter nada de absolutamente seguro.

A questões são: o que realmente defendem os perenialistas sobre isso, e quais são as posições mais aceitas nas ortodoxias, seja do vedânta, do tantrismo ou budismo?

Portanto, vou tentar, não resolver o assunto (uma vez que a questão em si, como veremos, é extremamente complexa, nebulosa e cheia de penumbras), mas apenas fazer uma exposição boa, em português (vou traduzir todas as citações), e que ofereça dados para a reflexão justa e honesta sobre o assunto, ou seja, será mais uma problematização que uma 'solução'.

Para isso, farei uma pequena série de postagens, primeiramente expositivas, dos pontos de vista de autores perenialistas, e, posteriormente seguir-se-á análise crítica.  Escolhi 4 desses autores, que são os principais e mais conhecidos perenialistas: Evola, Schuon, Kumârasvâmî e Guénon. A proposta é fornecer suficientes citações de seus livros, e se possível, também correspondências. Posteriormente vou contrapor a visão desses autores com comentários ortodoxos do Dharma e tentar mostrar os pontos consoantes e conflitantes e, se possível, fazer alguma reflexão pessoal sobre o tema.

Para quem não tem familiaridade com as discussões, basta notar que o ponto de vista perenialista é o de uma rigorosa e inapelável rejeição à ideia de 'reencarnação' tal qual entendida por teósofos e espíritas ocidentais. Segundo os perenialistas, tanto as doutrinas orientais como as ocidentais antigas, conhecidas por 'metempsicose' e de 'transmigração', são absolutamente diferentes das doutrinas modernas e que, em essência, ou 'metafisicamente', essas doutrinas antigas não são conflitantes com as doutrinas soteriológicas das tradições semíticas. Essa posição os indispõem duplamente com ocultistas e espíritas, que, por exemplo, consideram a reencarnação como 'dogma', como com as ortodoxias das religiões que não reconhecem ou aceitam a validade nem da reencarnação, nem da metempsicose, nem da transmigração. 

Há um terceiro aspecto, que é um aspecto novo que será sugerido aqui, que é a dificuldade de encaixar também as doutrinas perenialistas nas ortodoxias das tradições orientais, e até mesmo, talvez, encaixar as doutrinas dos autores perenialistas umas com as outras. Acho que daria inclusive para dizer que a rejeição à 'reencarnação' chega por diferentes vias a cada um desses autores e que entre a visão de cada um deles há diferenças, senão fundamentais, pelo menos significativas, o que mostra, no mínimo, que o tema do post-mortem e do mundo intermediário é, em si mesmo, por demais espinhoso para ser abraçado e resolvido em quaisquer esquemas conceituais.

Não tirarei nenhuma conclusão que extrapole a proposta do tema: coisas como os motivos ulteriores, as agendas políticas, históricas, pessoais, as funções supostamente subterrâneas do perenialismo, ou coisas assim do tipo jornalístico. Para iniciar a série, a próxima postagem trará uma exposição sucinta com o ponto de vista do autor italiano Julius Evola sobre o tema.