Monday, October 28, 2019

Reflexões sobre o Samudra Manthana (parte final - a confusão e a tartaruga)


yadā kśayam gatam sarvam tadā viṣṇuḥ mahābalaḥ |
amṛtam saḥ aharat tūrṇam māyām āsthāya mohinīm ||

Quando tudo caminhava para aniquilação, Vishnu, de poder supremo,
assumindo sua forma ilusória de Mohinī, capturou depressa o néctar. (Ramâyâna, 1-45-42)

A vitória pela ilusão

O que ocorreu após Shiva salvar o universo bebendo o veneno foi também aterrador e colossal. Agora que o batimento do oceano tinha acabado e o veneno tinha sido digerido, junto com diversas joias e coisas maravilhosas, o néctar surge no Oceano. E estoura uma luta descomunal e caótica entre os filhos de "Diti" (assuras) e os filhos de "Aditi" (devas) para decidir quem vai ficar com o "elixir da imortalidade".

É aí que Vishnu se encarna com seu famoso avatar feminino, Mohinī, aquela que causa "moha", estupidificação, confusão mental. Os assuras ficam abestalhados diante de beleza, não sabem como reagir, e calmamente Mohinī toma o néctar dos Assuras e o entrega aos Devas. 

O Ramâyâna conta que:
aditeḥ ātmajā vīrā diteḥ putrān nijaghnire |
asmin ghore mahāyuddhe daiteyā adityāyoḥ bhṛśam ||

Os filhos de Aditi, heroicos, massacraram completamente os filhos de Diti,
nessa horrenda batalha. (Ramâyâna, 1-45-44)

Um dos assuras, chamado Rahu, ainda tentou se misturar com os devas para beber o néctar, mas Chandra (a lua) e Sûrya (o sol) (que não por acaso, na literatura tântrica representam ida e pingala) avisaram Vishnu, que com seu sudarshana, o disco, cortou a cabeça do assura. Por fim, tendo sido vencedor da batalha e massacrados seus inimigos, Indra  retomou seu reino, restabeleceu a ordem, os três mundos foram beneficiados por incontáveis eras.

Colaboração das negatividades

A narrativa pode ser entendida desde muitos pontos de vista, e guarda vários segredos ou indicações indiretas cuja explicação não cabe na proposta desse blog, então me contento em apontá-las. "Mohana", por exemplo, aos que conhecem o shastra, é uma das flechas da Devî, pelo qual ela imobiliza seus adversários, e todas as outras flechas narradas nos âgamas (como a do desejo ou ira) estão presentes e são usadas rigorosamente na narrativa do batimento do oceano.

Uma das coisas notáveis na narrativa do Samudra Manthana é que o néctar só pode ser produzido pela colaboração de devas e assuras, remetendo a processos "alquímicos" usados no yoga e âgama. A segunda coisa digna de nota é que as estratégias para obter a colaboração dos assuras consistem em "enganá-los" usando seus interesses inferiores, ou seja, o usar o poder os assuras contra si mesmos. A narrativa se refere claramente à tão falada (e tão pouco compreendida) ascensão da kundalinî, tema tântrico, porém, como podemos ver, presente no coração dos Itihâsas e Purânas .

O kûrma-mudrâ

Outro ponto negligenciado é a função do avatar Kûrma, a tartaruga, que é a base de todo o processo, ligado ao elemento terra e que pode ser referido ao chamado mûlâdhâra-chakra, sem que isso esgote todo o significado. Os âgamas narram que na vida espiritual o estabelecimento de "kûrma-sthîti" é primeira coisa a ser aprendida, sem ele todo o processo pode ser destruído, e o sujeito vai para o inferno. É portanto a tartaruga que dá suporte ao mundo. Ademais, a geografia sagrada do mundo recebe uma narrativa especial no Kûrma-Purâna, um dos 18 grandes purânas.

A tartaruga não só aparece como suporte de tudo, mas como símbolo do yogue, como explica o Bhagavad Gîtâ:
yadā saṁharate cāyaṁ kūrmo'ṅgānīva sarvaśaḥ
indriyānīndriyārthebhyas tasya prajñā pratiṣṭhitā
"E quando ele (o yogue) remove os sentidos dos objetos dos sentidos, qual uma tartaruga que recolhe seus membros para dentro do casco, sua sabedoria se sustenta com firmeza." (2, 58)
*** 

Por fim, a unidade do Sanatana Dharma, inclusive a unidade entre Veda e Tantra,  é de difícil captação para os que não fazem parte da rede simbólica e das referências cruzadas em todos os shastras de todas as tradições. Os que conhecem sabem que as mesmas referências, de forma surpreendentemente exata, são distribuídas pelos Upanishades, Samhitas, nas tradições purânicas, nos Itihâsas e nos Âgamas. São só os estudiosos externos e hermeneutas textuais mais secos que têm dificuldade de visualizá-la.

***

Adendo: em outra postagem falei sobre a questão do simbolismo, e podem questionar por que uso de fato o simbolismo ao analisar a narrativa. Ora, nesse caso há tradição visível e contínua que dá suporte a esse simbolismo; o que critiquei foi o uso de simbolismo como escada epistemológica pura, que se remete só ao modo de apreensão intelectual humano e, por meio disso, tenta evidenciar tradições ou unidades tradicionais ocultas.

Saturday, October 19, 2019

Ainda sobre a reencarnação


Quando o Âtman, subsistente em um determinado corpo, abandona esse corpo que ocupava, então há a morte (praitî); quando ele obtêm um novo corpo, com outros órgãos dos sentidos, há o nascimento (bhâva) após a morte (pretya). A repetição desse processo de nascimento e morte não tem começo, mas tem fim com a libertação (apavarga).
Vatsyayânâcharya, comentário aos Nyâya-Sutras: 1,1.
Esse ciclo do samsâra pertence ao Âtman ou à mente? Se por samsâra você quer dizer a ação de receber ou deixar vários corpos, então pertence à mente, pois é a mente que de fato se move (samsarati); se por samsâra você quer dizer a experiência do prazer ou da dor, então pertence ao Âtman, pois o Âtman é o experimentador.

Udayanâcharya, Nyâya-Vartika, comentário ao verso 19.

Há quase dois anos conclui uma sequência de postagens, até agora a mais repercutida desse blog, que foi um breve estudo sobre o tema renascimento/reencarnação entre perenialistas.  Na ocasião o estudo teve uma função depurativa; eu me desvencilhei da ideia desses pensadores ocidentais sobre o assunto, buscando fontes tradicionais. Contudo, relendo a sequência, vejo hoje que o fiz de forma ainda um pouco hesitante, evitando, por exemplo, o termo “reencarnação”, pois ainda reconhecia o mérito da crítica perenialista às religiões de cunho espiritualista que adotam esse conceito (ainda reconheço alguns aspectos, mas acho a coisa menos importante do que eles fizeram parecer). 

Como eu sigo os rishis e não outros pensadores, seja das tradições acadêmicas ou esotéricas ocidentais, acho que cabe fazer algumas marcações bem definitivas e que vão deixar a questão clara e sem meias palavras. O que eu não fiz antes.

1. Usando também o termo "renascimento", que é bom, não descarto o termo reencarnação para traduzir punarjanman/pretyabhâva, pois o termo só é inconveniente dentro das precauções próprias da “militância antimoderna” dos perenialistas. Ele pode ser usado, e vou usá-lo aqui, pois de fato trata-se de uma “encarnação” repetitiva de um jivâtman (daria inclusive até para fazer a mesma defesa usando terminologia budista, mas como não sou seguidor dessa tradição, vou me abster). 

2. Além do mais, ao evitar o termo reencarnação, eu estaria dando a entender que me acomodo sob os marcadores ideológicos binários do tipo “Tradição x Modernidade” ou “Iniciação x Contra-Iniciação” e às suas implicações políticas diretas ou indiretas, o que não é o meu caso. Na minha opinião, dá para dizer que o cristianismo inteiro já é de certa forma uma “modernidade”, pois já surgiu dentro da Kali-Yuga, segundo a datação do shastra (e não de acadêmicos); ou ainda, o cristianismo (ao menos o que se tornou influente e organizado) tem um vínculo, se não causal, ao menos de continuidade inevitável com a tal modernidade e seus valores.

3. Não só o tema da reencarnação existe, mas é central, pois está vinculado ao “diagnóstico” dos rishis sobre a condição humana, e é diretamente ligado ao “remédio” oferecido. A compreensão incorreta (mithyajñana) ou a dúvida sobre o tema pode colocar a perder os métodos oferecidos pelos rishis e levar as pessoas a ações ou esforços incorretos ou inefetivos para eliminar as causas do sofrimento.

4. Portanto, e isso deveria ficar claro, a reencarnação é de um jivâtman segundo seu princípio causal último(karana-sharîra), não do Paramâtman (Espírito Supremo), pois este é independente (svatantra) de qualquer princípio causal. Quaisquer que sejam, portanto, as divergências entre os pontos de vista doutrinais (vâda) sobre a relação metafísica entre Paramâtman e jivâtman (não-dualidade, dualidade) isso é irrelevante para o tema da reencarnação. A alegação de que não há reencarnação pois não há um “eu” é assim sofística, e propositalmente confunde os planos superiores e inferiores.

5. A crítica de que a reencarnação seria de fundo “moralista” e que isso seria ausente em tradições orientais, tem razão em parte. Contudo, se por um lado não há “moralismo”, de fato há uma efetividade causal na “ética” ou no dharma. O “papa” (demérito) e “punya” (mérito), bem como os as ações concretas da mente, fala ou corpo são causas eficientes da reencarnação, e às vezes o mérito e demérito pode se cruzar com elementos morais.

6. A reencarnação não é de uma entidade coletiva, nem genética, nem de DNA, nem associada a totens tribais, nem associada a “daimons” da espécie como quer Évola. É realmente declarada como o desfrute de méritos e deméritos de um jivâtman individual.

7. As doutrinas espíritas e teosóficas têm impropriedade desde o ponto de vista dhármico, pois suas descrições se inserem em outro “framework” e têm lastros próprios da mentalidade ocidental como o denunciado “moralismo” ou  o “evolucionismo”; em alguns casos até são francamente positivistas como no caso dos espíritas, além de não enfatizarem a libertação como fim último do homem e não admitirem que homens e devas possam involuir. Contudo, é preciso dizer que as doutrinas espíritas e teosóficas, se têm essas impropriedades, estão, (ao menos) formalmente, mais próximas das doutrinas dhármicas do que, por exemplo, as doutrinas do pecado original, queda ou salvação, que são conciliáveis só por meios de ocultismo, simbolismos e intérpretes não validados.

8. As tradições espirituais que não ensinam a reencarnação não têm condições de ensinar o samsâra, nem as causas do samsâra, nem os meios de eliminar essas causas, nem a libertação. Portanto, sua doutrina não é dhármica. São doutrinas incorretas e seus benefícios, se ocorrem, se dão indiretamente, não pelo ensinamento mesmo.

9. Somente com apelo à insanidade é possível negar o extenso tratamento do tema nos shastras. O único ponto em que alguns mestres e rishis negam a coisa é quando usam, desde o ponto de vista do advaita-vedânta, o chamado modo discursivo “paramarthika” (de objetividade suprema). Isso diz respeito à unidade entre Paramâtman e jivâtman, que, uma vez aceita, invalida a independência do jivâtman, e, por conseguinte, sua autonomia metafísica.

Assim, continuar dizendo que o tema não existe, não é tratado, é tratado de forma periférica, ou é tratado de forma meramente “exotérica” é desonestidade para com os rishis e sábios védicos. Eu não defendo qualquer modalidade de opinião conciliadora desse tipo.

Acho que agora sim o tema está concluído com clareza e de forma definitiva.

Wednesday, October 16, 2019

Reflexões sobre o Samudra Manthana (Parte 4 - O veneno)

"Os devas foram ao Brahma, sentado seu trono celestial, e disseram 'Senhor, estamos exaustos, não temos mais força para para bater o oceano'. O néctar ainda não apareceu(...)" (Astika Parva, 18)
O batimento do oceano durou muito tempo, contando-se em eras divinas e espirituais. Houve momentos de exaustão. Os devas não tinham energia. Nârâyana tinha de ajudá-los todo o tempo. Restituídas suas forças, retomavam a atividade, a montanha era colocada no meio do oceano, a serpente era enrolada de novo e a tarefa recomeçava.

Depois, quase num estado de torpor, fatigados, devas e assuras observaram que começava a emergir do oceano coisas maravilhosas, num processo mágico. E a cada coisa que aparecia todo o universo era modificado.

A primeira coisa a surgir, como num lampejo violento, foi Surabhi, a vaca sagrada que viveria depois com rishi Vasishta, o brâmane, e que seria cobiçada por Vishvamitra, o kshatriya, causando um conflito sem dimensões entre os dois (mas essa é uma outra história). O fato é que o batimento gerou tal vaca, adorada daí em diante por todos os deuses, e foi realmente um fato assombroso.

A segunda coisa que surgiu tomando o espaço, foi Varunî, esposa de Varuna e Deusa do vinho. Ela surgiu em êxtase transcendental, seus olhos estavam focados na sua testa manifestando o chamado "shambavî mudra" de significados esotéricos. Muitos nomes da divindade suprema estão associados ao vinho e a esse mudra.

Depois disso veio a árvore de Parijata, que também concede todos os desejos. A árvore surgiu perfumando a atmosfera, e era como se fosse a primavera cósmica. Em seguida, dançando, apareceram a horda inabarcável de apsarâs, dançarinas divinas. E por fim, emergiu do oceano a lua de raios refrescantes, que foi capturada por Shiva.

Após algum tempo de silêncio, levantou-se uma fumaça fétida, preta, asfixiando devas e assuras, e entenderam que se tratava do veneno chamado Kâlakuta, que é a "ilusão do tempo". O veneno foi envolvendo o universo como um fogo esverdeado de fumaça negra, e numa velocidade incrível a manifestação parecia chegar ao fim. Nem Brahma, nem Vishnu sabiam o que fazer diante de tal aparição inesperada, então eles se prostaram diante de Shiva, que atendeu aos pedidos e surgiu, bebendo o veneno. 

Parvati, esposa querida de Shiva, ficou aterrorizada com tal ato e o enforcou, segurando por um tempo o veneno em sua garganta. O veneno de fato parou ali, e sua garganta ficou azul. Desde então, um dos nomes de Shiva é Nilakantha (garganta azul), ou então Vishakantha (que tem o veneno na garganta), pois durante o batimento do oceano de leite, na busca de devas e assuras pelo néctar da imortalidade, Shiva salvou o universo digerindo os produtos negativos dos trabalhos divinos.

Tuesday, October 15, 2019

Reflexões sobre o Samudra Manthana (Parte 3 - No meio do oceano)

"Então, ó brâmane, das profundezas veio um grande urro, como o trovão das nuvens da dissolução universal. Muitos animais aquáticos foram esmagados pela imensa montanha, muitos habitantes das regiões inferiores e dos reinos de Varuna foram mortos. As árvores cheias de pássaros, muitas delas foram arrancadas pela raiz, caindo no mar durante do giro da montanha A fricção dessas árvores batendo umas nas outras também produzia um chama brilhante que aparecia de tempos em tempos. A montanha então parecia uma massa de nuvens negras carregada de trovões. O fogo se espalhou na montanha consumindo leões, elefantes, e outras criaturas que viviam ali, e Indra, fazendo a chuva descer ia extinguindo os focos do fogo." (Adi Parva: 18, 26)
Pensando sobre as imagens do oceano, me vem à mente de imediato a imagem do sol vermelho nascente que se tornou notória na cultura popular pela bandeira japonesa. Na tradição deles o sol vermelho nascendo no horizonte se associa à deusa Amaterasu, que está associada também às  suas dinastias reais. O meio do oceano, idealmente infinito na medida em que dispõe o chamado "horizonte" (também ideal), pode ser ocupado por distintas "estações", dinâmicas e estáticas. Entre shaktas o sol vermelho surgindo no oceano é Arunâ. Aqueles que adoram a Deusa no formato do sol vermelho se tornam grandes poetas e são capazes de encantar as criaturas, dizem as escrituras. 

Em aspecto estático, narra-se em vários momentos que no meio do oceano há uma ilha ou uma montanha. A ilha do meio do oceano de néctar tem um palácio de joias preciosas onde reside a divindade suprema. A montanha Mandara, como sabemos, também está no meio do oceano. É preciso dizer que ela não corresponde ao chamado monte Meru, há distinções. 

Conta-se que Mandara foi gerada providencialmente por Ananta, a serpente, à pedido de Vishnu. É uma montanha onde reside a corte de Kubera e está próxima a outra montanha famosa, o Kailasa. Oitenta e oito mil gandharvas e trezentos e cinquenta e dois mil Yakshakinnaras residem no topo dessa montanha, junto com Kubera e um Yaksha chamado Manivara. 

Essas informações estão, entre vários outros lugares, no Mahabharata, onde também conta-se, por exemplo que, em jornada em direção ao monte Kailasa, acompanhado por Krishna, Arjuna parou um tempo em Mandara e ali se deteve por algum tempo ouvindo as canções celestiais. Então tudo indica que a montanha é uma estação intermediária avançada para os que estão seguindo o "caminho do norte",  muito bem ilustrado no Gîtâ:
"Fogo, luminosidade, dia e a fase brilhante da lua. Os seis meses do curso do sol em direção ao norte--partindo assim, os homens que conhecem o Brahman, vão em direção ao Brahman." (8,24)
E, por fim, as relações com o Mahadeva ou Shiva, que até agora não apareceu na narrativa, também são claras, como nesse trechinho de uma jornada feita pelo rishi Ashtavakra:
"O ilustre rishi Ashtavakra partiu em direção à morada de Kubera rumo ao norte. Ele cruzou a montanha Mandara e as montanhas douradas. Além dessa região de altas montanhas está situada a excelente região onde reside o Mahadeva, vestido como modesto asceta." (Anushâsana Parva: 19, 54)

Saturday, October 12, 2019

Reflexões sobre o Samudra Manthana (Parte 2 - Devas e Assuras)

Devas e assuras 

Durvâsas se foi e sua maldição desceu como a chuva torrencial. O "poder" e a "vitalidade" lentamente foi se retirando do reino de Indra. Os três mundos foram afetados, inclusive o dos homens. Os ritos pararam de ser executados e a mente humana se degenerou de forma assombrosa. 

Foram inúmeros os efeitos: a prosperidade material acabou, as plantas secaram. Os homens não mais praticavam o dâna (caridade), seus sentidos eram facilmente instigados por todo tipo de frivolidade e não por assuntos importantes, sua atenção oscilava entre objetos de forma descontrolada como em um sonho. Acabou-se a coragem, a força e o heroísmo, todo o universo parecia triste e enfraquecido. Quase todos se tornaram obscuros e embotados em suas faculdades intelectuais, e por fim materialistas, perdendo contato com os mundos espirituais. O existir se tornara um peso para os mundos.

Havia, contudo, os filhos de Diti, chamados dânavas, que eram ambiciosos e agitados por muitas paixões, o que os conferia energia. Eles notaram a fraqueza dos devas e entenderam que era um bom momento para investir contra eles e tomar o reino de Indra impondo jugo assúrico ao universo. Os devas estavam tão apáticos que não resistiram em absoluto: foram facilmente afugentados pelos titânicos dânavas: covardemente deixaram para trás suas mulheres, seu reino e o seu dharma. 

Após vagarem miseráveis por muitos anos, escondendo-se em cavernas e florestas, vivendo com medo, apavorados, os devas se lembraram, com suas mentes ainda confusas, que era possível buscar ajuda superior. Recorreram a Brahma, que disse que não tinha como resolver a situação e nem dar-lhes energia; depois foram a Vishnu. Prostraram  humildemente diante do Narayana e expuseram em lágrimas o que havia ocorrido. Vishnu ficou comovido ao ver os seres mais nobres do universo passarem por tais sofrimentos e humilhações e resolveu ajudá-los:

"Ó, devas, eu vou renovar suas forças! Contudo, vocês têm de seguir com rigor minhas instruções para que tudo funcione: todos os devas, aliados com todos os assuras precisam ir ao oceano infinito de leite, e ali lançar todos os tipos de ervas medicinais conhecidas; daí, tomando a montanha Mandara como eixo, e enrolando a serpente Vasuki como corda ao redor da montanha, é preciso fazê-la girar no meio do oceano. Desse batimento muitas coisas serão geradas. Entre elas o néctar da imortalidade que vai salvá-los da maldição de Durvâsas."

Os devas se animaram, pois lembraram que Durvâsas tinha de fato mencionado tal coisa. Mas eles  ainda não sabiam como seria possível conseguir ajuda de assuras, inimigos imemoriais dos devas, e, parte deles, agora regentes do universo. 

Vishnu se antecipou, lendo suas mentes:

"Para conseguir ajuda de assuras, é preciso entender a natureza deles: vocês devem se aproximar em paz e prometer oferecê-los parte generosa do fruto do trabalho, instigando sua imaginação. Expliquem para eles que, bebendo do  néctar da imortalidade produzido pelo batimento do oceano de leite eles se tornarão ainda mais poderosos e, agora, absolutamente indestrutíveis. A ambição deles vai tomar as rédeas. Eu, Vishnu, vou ajudá-los no processo, para ter certeza de que ao fim de tudo os assuras não cheguem a beber o líquido e causem ainda mais problemas."

E assim ocorreu. A natureza dos assuras era previsível. Houve uma inusitada aliança entre devas e assuras para a obtenção da bebida da imortalidade. Saíram todos coletando as ervas medicinais prescritas no Atharva-Veda, lançando-as incansavelmente no oceano de leite durante muitos dias e noites. Quando todos os ingredientes foram oferecidos ao oceano, devas e assuras tomaram como centro a pontiaguda montanha Madara, e enrolaram ao seu redor a serpente Vasuki.

Deram inicio ao processo de agitamento do oceano, começando devagar, girando de um lado para outro, por fim atingindo grande velocidade, movendo grande volume de líquido no meio do oceano. Instruídos por Vishnu, os devas seguravam a cauda da serpente, e os daityas e dânavas seguraram a cabeça e o pescoço. A serpente ficou irritada ao ser enrolada e puxada, e começou a lançar chamas nos assuravas, que seguravam a cabeça, causando-lhes considerável dano. O calor que era emitido em um dos lados da montanha empurrava as nuvens para o outro, e os devas recebiam vesto refrescante e uma leve chuva.

Quem sustentava a base da montanha, o eixo do mundo, dentro do oceano de leite era avatar de Vishnu em forma de tartaruga, Kurma. Vishnu também se fazia presente de inúmeras outras formas, como prometido, supervisionando o processo para que nada saísse errado. 

Wednesday, October 9, 2019

Reflexões sobre o Samudra Manthana (Parte 1 - Durvâsas)

O Samudra Manthana, traduzido por alguns como Batimento do Oceano de Leite, é dos episódios mais conhecidos e menos compreendidos da literatura purânica. O episódio apresenta toda a cosmologia védica, toda a microcosmologia, e quase todas as principais divindades estão envolvidas no processo. É pouco compreendido, até pela abundância de referências esotéricas, tântricas, pelo número de forças divinas e assúricas envolvidas, pela quantidade de acontecimentos intercalados, e por ser, no fim das contas, o tema central e mais superior do Veda mesmo, que é o néctar da imortalidade, amṛta

Alguns aspectos da história são ligados à prática tântrica e shakta, e isso é muito pouco notado. Basicamente, os acontecimentos se desencadeiam quando o rishi Durvâsas fica irado com Indradeva e o amaldiçoa juntamente com toda a corte de devas. Para entender isso, e entender o fato de uma maldição do rishi Durvâsas descadear uma série de eventos, é bom remontarmos (e ficarmos atentos aos sinais) até à sua própria vida, ou antes mesmo disso, à vida de seus pais.

Durvâsas e o caminho tântrico

O rishi Durvâsas é o "fundador" sempre associado direta ou indiretamente a várias paramparas e ensinamento tântricos e/ou shaktas; é dele, por exemplo, a "regência" ou "visão" (para não usar o termo "composição") dos 61 shlokas do Shakti Mahimna Stotram em louvor à Tripura Sundarî. Ele também é o regente do mantra secreto de uma das 15 categorias de upâsaka-s cifradas em obras como o Saundarya Laharî de Shankarâchârya, os Shaktopanishads ou no Kularnava Tantra. É ele o preceptor do Shri Vidyâ, e o shivaísmo da Caxemira também remonta a Durvâsa, por meio de Somânanda, vidente inicial dessa escola.

Munis, Devas e Esposas fieis

Shilavati é conhecida como a esposa mais casta e mais fiel, o que tem um ressonância tântrica clara. Em obras como o Devî Bhagavatam ou no Lalitâ Sahasranâma a Devî se manifesta sempre como  e esposa casta de Sadâ Shiva e protetora das esposas castas (que têm poder de invocação e maldição equivalente ao dos rishis); assim, a Devî sempre atende preferencialmente aos apelos de tais esposas. O marido de Shilavati, Ugrashravas, por outro lado, era o pior dos esposos: sem entrar em detalhes, basta contar a história que nos interessa mais diretamente, em que ele, leproso e tomado de luxúria, obriga sua mulher a carregá-lo nas costas, de madrugada, até um prostíbulo. 

Quando Shilavati estava à caminho do prostíbulo, com o marido doente e cheio de luxúria em suas costas, o Muni Mandavya, um sábio, avista a cena e, enraivecido pela feiura e pela incongruência da situação, lança uma maldição contra Ugrashravas: que ele morreria antes de o sol nascer. Shilavati, não podendo cancelar a maldição do Muni, e tomada de angústia e dor pela iminente morte do marido, lança uma outra maldição dizendo que o sol não nasceria naquele dia. Dado o poder de sua castidade, o sol de fato não nasce, o que causa uma convulsão em todo o cosmos.

Os devas que cuidam do ritmo do universo tiveram que ir até Brahma, que por sua vez recorreu a Shiva e este a Vishnu. Quando nenhuma das três divindades (a trimûrti) acharam solução, eles convocaram o rishi Atri e sua esposa Anusûyâ, e foram todos juntos até Shilavati para tentar convencê-la a retirar a maldição, garantindo-lhe que, sob os auspícios divinos, seu marido não morreria se o sol nascesse; Shilavati retirou enfim a sua maldição; a outra, lançada pelo Muni foi cancelada pelos três devas, e o universo prosseguiu com seu ritmo.

A trimûrti, contente com o poder persuasivo de Anusûyâ, que tinha sido fundamental para convencer Shilavati, concedem-lhe um pedido. Anusûyâ desejou então que a Trimûrti nascesse em seu ventre como avatares, e isso lhe foi concedido. O avatar de Vishnu foi Dattatreyâ, o de Brahma foi Chandra e o de Shiva, o rishi Durvâsas. 

Essa é uma das narrativas do nascimento de Durvâsas, e é suficiente para o nosso texto. 

O sábio irado

Durvâsas era temido por deuses e mortais por ter temperamento muito raivoso, e, sendo um siddhâ, quando lançava maldições elas aconteciam inevitavelmente. 

Em certa ocasião, as dançarinas do deva-loka presenteram o sábio Durvâsas com uma guirlanda de flores, como é costume presentar sábios. Durvâsas, que então visitava a corte de Indra resolveu lhe oferecer a guirlanda, como símbolo de apreciação e gentileza. Indra pegou a guirlanda e colocou displicentemente na cabeça de seu elefante, Airavâta. O elefante por sua vez, sentindo o cheiro agradável da guirlanda pegou-a com sua tromba, brincou com ela um pouco e depois jogou-a no chão pisoteando-a.

Durvâsa viu o episódio como desrespeitoso e imediatamente lhe ferveu o sangue. Foi quando ele amaldiçou toda a corte dos devas: "a guirlanda que eu lhe dei, você a tratou dessa forma desatenta e desrespeitosa! Que vocês devas sejam amaldiçoados e pereçam!"

Indra, conhecendo a ira de Durvâsas, pediu perdão, implorou, tentou fazê-lo mudar de ideia, mas Durvâsas foi peremptório: "Meu coração não é mole, e você bem sabe que o rishi Durvâsa não perdoa! Basta de rishis como Gautama e Vasishta mimando vocês, devas! Vocês realmente pagarão pelos seus erros!"

Contudo, dizem que o rishi, antes de sair de lá, olhou para trás e declarou: "a única forma de vocês escaparem da desgraça que se abaterá é bebendo o amṛta, o elixir da imortalidade".

E é assim que começa o episódio que levaria ao Batimento do Oceano de Leite, do qual vamos falar na outra postagem.

Wednesday, June 5, 2019

Os precedentes materialistas do Budismo segundo Dasgupta

Discordo dos pressupostos de Dasgupta em seu clássico História da Filosofia Indiana, e tendo a seguir a linha exposta na postagem anterior, do autor caxemire J.C. Chatterji. Contudo, para nós ocidentais, a obra de Dasgupta segue sendo incontornável fonte no estudo formal e acadêmico dos temas, pela sua abrangência e síntese de muita informação de difícil acesso. Acabei de ler um trecho sobre o "Estado da Filosofia na Índia antes do Buda" e acho que vale a pena colocar aqui no blog algumas notas.

O erudito bengali, ao tentar dar os precedentes dialéticos do surgimento do Budismo encontra três polos de influência: o primeiro deles é o upanishádico, o segundo é o materialista, e o terceiro é o ritualista. O polo mais curioso, na minha opinião, é o dos materialistas; vale a pena dar uma olhada no pensamento geral dessas escolas, sempre evitando reduzi-los ao materialismo ocidental, como veremos.

Segundo Dasgupta, nos próprios escritos upanishádicos há registros das diferentes escolas materialistas, e por meio desses registros ficamos sabendo que
"a origem do mundo e seus processos era algumas vezes discutida, e alguns pensavam que o 'tempo' era a causa última de todas a coisas; outros que tudo havia surgido por sua própria natureza (svabhava); outros que tudo tinha aparecido de acordo com o destino inexorável, ou o concurso fortuito de acontecimentos acidentais, ou por meio de combinações materiais, em geral"
O nome cārvāka, como explica Dasgupta, provavelmente veio do verbo "carv" que significa comer. Parece que os adeptos dessas escolas de pensamento rejeitavam responsabilidades e atividades religiosas ou morais de qualquer tipo, exceto as de comer.

Desde um ponto de vista filosófico, no horizonte do tarka-śastra, o nome mais apropriado talvez seria o de ahetuvādin-s: pensadores que negavam a possibilidade de conexão universal entre premissa e termo médio (hetu), implicando que é impossível o conhecimento inferencial seguro.

Segundo esses pensadores, uma inferência do tipo "onde há fumaça, há fogo" não é segura, pois não se conhecem todos os upādhi-s (atributos acidentais). Alguma condição sub-reptícia, responsável ou corresponsável pela fumaça, poderia estar sempre presente no fogo e não ser notada, ou talvez algum fato absolutamente aleatório poderia intervir. Nada indica que haja uma conexão necessária no passado, presente e futuro.

É de se esperar que os cārvāka-s tivessem como base fundacional um texto em formato de sūtra, como ocorre com as demais escolas; contudo esses sutras nunca foram encontrados, e infere-se sua existência a partir de referências indiretas. Os cārvāka são mencionados, em algumas obras centrais, entre elas o Nyāya-Mañjarī de Jayanta Bhaṭṭa e no Sarva-darśana-saṅgraha de Mādhavācārya.

Consolidou-se na literatura indiana posterior a visão de que esses pensadores se dividiam entre dhūrtta-cārvāka-s e suśikṣita-cārvāka-s. Os primeiros acreditavam que todas as realidades derivavam da combinação dos 4 elementos: terra, água, fogo e ar. O corpo e a consciência eram resultantes de combinação dos átomos desses elementos apenas, e não havia alma ou entidade subsistente. Os segundos acreditavam na existência de uma alma ou matéria sutil, porém, ela era destruída com a destruição do corpo material.

Além dessas duas correntes, que dialetizavam com as tradições bramânicas, Dasgupta nos lembra da existência de outras vertentes de "materialismo" que dialogavam, por assim dizer, mais com as tradições shramânicas, como, por exemplo, os Ājīvika-s, liderados por Makkhali Gosala, "provavelmente um discípulo renegado do santo jainista Mahavira e contemporâneo do Buda". Parece que essa seita propunha um determinismo absoluto, e negava qualquer responsabilidade moral pelo bem ou pelo mal. A essência do ensinamento dos Ājīvika era o seguinte: 
"não há causa próxima ou remota para a impureza ou pureza dos seres. Eles se tornam tais sem nenhuma causa. Nada depende nem de esforços próprios, nem de esforços alheios, e não há algo como poder, energia ou esforço humano. As condições variáveis se dão somente pelo destino, pelo ambiente e pela natureza própria de cada coisa.
Outro nome que se destaca na mesma tendência é o de Ajita Kesakambali, que também defendia que não há fruto ou resultado das ações boas ou más; não há outro mundo, nem mesmo esse mundo pode ser considerado real: nada pode impedir a morte, que é o fim de todos nós. 

Dasgupta acredita que: a tradição baseada em rituais, que buscava favorecer os deuses para assegurar a felicidade após a morte; o pensamento que encontrava no ātman a iluminação e o fim do ciclo do saṃsāra; e o pensamento dito materialista, ou talvez niilista, prepararam o solo para o surgimento intelectual do Budismo na Índia. 
"Se o Ser dos Upanishades, o superlativo imóvel, era a única realidade; como poderia oferecer escopo para novas especulações, uma vez que já havia descartado todas as outras matérias de interesse? Se tudo ocorria pelo concurso irracional e fortuito das circunstâncias, a razão não poderia proceder na direção de criar qualquer filosofia a partir do irracional. A força mágica da prestidigitação da feitiçaria ou dos sacrifícios tinham pouco para incitar o desenvolvimento filosófico."
Como eu disse ao começo, discordo do autor. Dasgupta tem alguns pressupostos sobre História da Filosofia, talvez um tanto hegelianos, como a perspectiva de que o Budismo surge como síntese racional ou espiritual para uma tensão primitiva, encapsulada, de diferentes tendências. A Filosofia ou a Razão assim, vão sendo construídas ou achando seu caminho no meio dessas tensões incorporando novos "momentos" ou figuras históricas. 

Caberia perguntar: para onde vai o motor? Em direção a que fim racional? Vai necessariamente em direção ao mundo moderno e o progresso humano atual?

Como todo o respeito que se possa ter pelo trabalho notável de Dasgupta, ouso dizer que ele não faz parte da mesma mentalidade que coloca, por exemplo, o ṛṣi Bṛhaspati como fundador primordial, arquetípico de um ponto de vista, sob o mesmo título dos ṛṣi-s Gautama ou Kapila. A mentalidade védica busca incluir pontos de vistas segundo princípios transcendentais e não segundo sua produção histórica.

Um último ponto: a doutrina dos elementos, segundo a perspectiva tradicional, é inseparável da epistemologia sensorial, da constituição do universo e da estrutura do ser humano. Então os materialistas hindus estão bem longe dos ocidentais. Na perspectiva indiana, cada elemento é responsável por uma "qualia" mínima, ou seja, uma faixa ontológica e epistemológica, representada analogicamente no corpo humano por um dos sentidos. Não se trata, portanto, de um matéria extensa sem qualidade ou relacionada com pura exterioridade: o fogo, por exemplo, está diretamente relacionamento o surgimento da "forma" e da "figura", bem como do calor enquanto possibilidades ontológicas apreendidas pelo tato, visão etc.

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*Trechos citados foram traduzidos por mim. Estão no capítulo 5 do História da Filosofia Indiana de Surendranath Dasgupta.


Saturday, May 18, 2019

Pressupostos do pensamento hindu

J.C. Chatterji em livro clássico sobre o Realismo Hindu (que não é o ilustrado na imagem) faz algumas observações cruciais, sobre pontos que são a pedra no sapato de estudantes de filosofia ocidental interessados em pensamento hindu. Para ele, o pensamento ocidental tem três pressupostos inválidos:

1) Que o homem não pode conhecer verdades metafísicas por experiência direta, ou seja, tendo certeza presentativa de seu objeto. Devido a isso, essas verdades tem sempre de ser matérias de especulação, inferência ou fé.

2) Ainda que fosse possível em tese, não há (ou não se pode contar com) homens que tiveram de fato essa experiência. 

3) As escolas hindus de pensamento, assim como os sistemas especulativos ocidentais, seriam mutuamente contraditórias em seus esforços especulativos; e, caso alguma delas seja verdadeira, o será pela exclusão das outras.

Esses três pressupostos criam obstáculos  até para estudiosos avançados dessas doutrinas, e até para  os indologistas mesmo, e são derivados de um horizonte antropológico segundo o qual o homem está perdido, no escuro, tem de fazer caminho desconhecido de antemão, e não tem garantia de que chegará a algum lugar.

Caso chegue a algum lugar, seu terreno e sua trajetória será feita em exclusão das demais, pois começaram de pontos diversos e quando chegam a admitir experiências dessa natureza, jogam-na para o campo da religiosidade e sentimentalidade (quando não da patologia psicológica), e não do conhecimento ou ciência mesmo.

Chatterji nos dá oito pressupostos que edificam o pensamento hindu (e de certa forma também budista, jaina e agâmico, e não só das chamadas seis escolas clássicas):
  • O homem pode conhecer verdades metafísicas, como quaisquer outras verdades, por experiência direta e não só por especulação, inferência ou fé.
  • Houve homens no passado que conheceram a nossa natureza e a natureza do universo perfeitamente. Esses homens eram conhecidos como ṛṣi-s.
  • Por meio do conhecimento direto de verdades metafísicas é que os ṛṣi-s se tornaram conhecedores, e não por meio de especulação.
  • Os ṛṣi-s não ensinaram por meio de dogmas, ou exigindo fé, mas por meio de demonstrações racionais. A função do pensamento e dos pontos de vista, portanto, não é a descoberta original de verdades metafísicas, mas a conciliação da experiência metafísica com o pensamento racional ou discursivo, conciliação que pode se dar de diferentes maneiras e por diferentes ângulos)
  • Uma vez que os ṛṣi-s tiveram a experiência direta da verdade, e isso não era mera matéria de especulação, fé ou inferência, todos os ṛṣi-s conheceram a mesma verdade; assim como várias pessoas olham para o mesmo sol.
  • Ainda que tenham tido a mesma experiência direta da verdade, os ṛṣi-s a ensinaram segundo graus ou modelos diferentes. Modelos esses que são representados idealmente mas não necessariamente, pelos sūtra-s das darśana-s hindus. Esses graus se adequam a diferentes a mentes, assim como a gramática pode ser ensinada desde o ponto de vista prático, filológico, histórico etc.
  • Os pontos de vista, portanto, não são essencialmente contraditórios entre si (no que diz respeito à eficácia para obtenção dos puruṣārtha-s, os fins últimos humanos), mas constituem uma série que avança gradualmente e abarca realidades cada vez mais profundas. Esses pontos de vista podem ou não ter uma sucessão ou evolução histórica, o que pouco importa desde o ponto de vista de sua disposição e harmonia profunda.
  • Os sistemas levam, na prática, ao mesmo fim geral (concebido negativamente como a libertação das condições de sofrimento humano). Alguém pode seguir um deles segundo sua capacidade intelectual e temperamento e obter o mesmo benefício geral, que é a libertação.
A coisa parece com o caso de pessoas de diferentes origens, que sobem ao topo dum prédio para ver a cidade, e ao descerem, descrevem-na segundo seus meios e sua mentalidade para os que são afins àquela forma de expressão. A discordância se dá portanto no acomodamento lógico, dialético ou retórico, segundo regras que já estão dispostas.

Outro ponto, e talvez um dos mais importantes, é que, a cada geração é preciso confirmar a eficácia desses ensinamentos, e novas pessoas devem realizá-los em si mesmos tendo experiência direta. Não se trata de compreender uma formulação doutrinal, mas de colocar-se em determinado ponto de vista, e a partir dali atingir a meta suprema a que se propõe o sistema.

A cada geração há pessoas que realizaram e incorporam na sua pessoa a mesma verdade dos ṛṣi-s, e não apenas aceitaram pressupostos conceituais; daí eles usam a mesma tecnologia conceitual, a aperfeiçoam, rebatem novas críticas e vão acumulando novos ornamentos aos sūtra-s ou livros originários e tentando amarrar de forma coerente essas inovações ao sistema da tradição, do śāstra e do “peer-review”, de forma que a experiência tem que ser cotejada junto a várias instancias com critérios rígidos.

Há lugar para inovações, como por exemplo, temos a escola Nyāya criando, após séculos, novos instrumentos lógicos para combater as críticas budistas e vedantinas. Contudo, outro erro é crer que o “rio” de uma corrente de conhecimento materializada por um ponto de vista são as formulações doutrinais ou embates dialéticos, ou da coleção quantitativa de “proposições” e “juízos”. Que são apenas um dos aspectos, e dos mais superficiais.

Há, portanto uma arquitetura aberta que é alimentada necessariamente pelas intuições individuais, validada e tornada coerente pela experiência das pessoas competentes que se colocam no mesmo ponto de vista, pelo embate e refinamento dialético com outros pontos de vista, pela tradição, e pelo śāstra, e a experiência pode ser verificada em vida pelos praticantes que a isso se dediquem segundo os métodos apropriados.

Essa unidade escapa às mentes ocidentalizadas em geral, eu me lembro de ter visto somente Guénon até hoje descrevendo-a, ainda que com algumas impropriedades. A maioria dos estudiosos ainda partem dos três pressupostos expostos no início.

Chatterji, dando exemplo de Max Müller, observa que alguns estudiosos ocidentais chegaram a intuir a unidade sintética desses pontos de vista, que é algo sutil, porém óbvio para quem tem a intuição correta ou obteve a experiência de um dos pontos de vista:
“Quando mais eu estudo os vários sistemas, eu fico mais impressionado com a verdade da visão de Vijñāna Bhikṣu e outros de que há, por trás da variedade dos seis sistemas, um fundo comum do que pode ser chamado de filosofia nacional ou popular, um grande lago mental do pensamento filosófico e da linguagem, vindo do Norte distante, vindo de um passado distante, um lago do qual permite-se que cada pensador retire [o necessário] para seu propósito” (Max Müller)

Friday, May 17, 2019

Analogia de salvação: miséria da analogia

À minha postagem anterior recebi um comentário, dizendo que eu não compreendia analogia nem simbolismo, e que minha comparação entre a Doutrina da Queda e a Doutrina do Saṃsāra tinha sido "exotérica". Disseram-me que a comparação teria de ser feita desde um ponto de vista "superior", analógico, para poder perceber a unidade das tradições.

Conheço esses argumentos. 

Anos atrás eu mesmo cheguei a adotá-los provisoriamente, até perceber que eles são fracos, quando não francamente arrogantes e errôneos (inclusive há lastros disso em postagens antigas desse próprio blog).

Vale a pena comentar isso, porque é um erro de muitos.

Ora, em primeiro lugar, se o sujeito está acima dos distintos instrumentos últimos de conhecimento ao ponto de poder sintetizá-los "desde cima", ele não precisa obter conhecimento a partir deles uma vez que os julga. Se ele está nessa posição, que valor tem para ele os tais instrumentos? Deveríamos recorrer ao sujeito mesmo, como autoridade.

A analogia é uma proporção qualitativa. Aparece ao conhecimento como nota subsistente porém supra-substancial: indica indiretamente um descolamento, por exemplo, entre a qualidade e seu substrato, pelo qual as qualidades subsistem e se relacionam de forma independente, como que em grandes "temas ontológicos" subsistentes. Isso segundo algumas tradições platônicas ou platonizadas, ocidentais.

Entre os naiyāyika-s, e nas demais tradições indianas que a consideram como modo de conhecimento legítimo, a analogia (upamāna) é uma conjugação de śabda (conhecimento verbal) e pratyakṣa (conhecimento empírico) e talvez anumāna (conhecimento inferencial) para alguns.

A diferença é que alguns platônicos, e mais recentemente esoteristas e tradicionalistas ocidentais, passaram a atribuir à analogia, conjugada com a simbólica, o meio eminente da transmissão e da compreensão intelectual superior. 

Não só isso: esses esoteristas passaram a apregoar que o simbolismo e analogia são o veículo eminente do esoterismo em todas as tradições espirituais. Já cheguei a ler por aí até mesmo que o hinduísmo era uma "religião de analogia".

Mais uma daquelas falsidades que são de imediato aceitas e divulgadas sem que haja o trabalho de recorrer às fontes tradicionais. 

Os sábios védicos, se de fato chegam a usar contemplações analógicas para meditar sobre o “corpo do Virat” fazendo uso de objetos cósmicos visíveis, e se, da mesma forma, transferem o “sacrifício do cavalo” ou o “sacrifício humano” para o campo das contemplações simbólicas, não alegam que essas formulações simbólicas em si mesmas são tecnologias de conhecimento independentes: são upāsana-s, ou técnicas de contemplação, transmitidas junto com influência espiritual, como tantas outras de natureza não analógica.

O caso do uso que os naiyāyika-s fazem da analogia é exemplar: você está numa floresta e encontra ali com um ermitão, grande conhecedor da floresta e de tudo o que está ali. Esse ermitão lhe informa  (śabda) que há, aos pés da montanha um animal chamado “búfalo”, e que esse animal se parece com uma “vaca”. Andando pela região você avista um animal (pratyakṣa) que se parece com uma vaca, logo, esse animal deve ser um búfalo (upamāna). 

Esse é o escopo da analogia. Simples.

A analogia, isoladamente, não serve para adivinhar as estruturas da realidade, como que numa escalada ontológica ou dialética, de baixo para cima. Ela serve à função de reconhecimento (pratyabhijñā) a partir de proporções qualitativas. É uma conjugação de métodos de conhecimento, para fins de reconhecimento.

Peguemos analogia conhecida: Deus é como o sol. 

Ora, o que temos aí? 

Assim como o Sol está para os seres desse sistema, Deus está para todas as coisas. 

Essa proposição pode ser verdadeira ou não, a depender da verificação de que é assim de fato, verificação dada pelo conhecimento divino (anubhava).

Contudo, vejamos que, quando se dá o reconhecimento, ele se dá na forma de 

“Esse Deus que agora se apresenta é igual aquele sol”, 

ou seja, 

“isso (objeto singular) é igual aquilo (objeto na memória)”.

Alguém poderá dizer (e fatalmente dirá) que a analogia incita a "anamnese" em sentido profundo, ou seja, incita o "homem noético", que guarda em seu bojo ontológico uma identidade com tudo o mais. Nesse caso, meus caros, trata-se também de transmissão por meio de autoridade (śabda). Não se sabe se é assim por necessidade. 

O que existe, sempre, é uma predisposição baseada na afirmação de um "apta" ou "ṛṣi". Em segundo lugar, a questão está no domínio do conhecimento de Si Mesmo (ātmavidyā), para o qual as analogias são dispensáveis, sendo mais útil o samādhi silencioso e não-verbalizável.

Outro erro, vindo também de esoteristas e estudiosos de religião comparada, é dizer que ritos são analogias. 

Podem ser, e devem ser de fato. 

Mas não só; e, na verdade, pouco importa. 

Sua eficácia ou causalidade, segundo as fontes tradicionais, não é dada por sua natureza analógica ou simbólica. Segundo o ensinamento tradicional é dado pelo chamado adṛṣṭa ou apurva, que é o efeito invisível, porém real e eficaz, de um karma (que tem sempre substrato individual e não universal) em sua articulação econômica com a ordem total das coisas. 

Resumindo:

1. Não, o conhecimento analógico ou simbólico não permite uma escalada ontológica ou metafísica segura. Ele é uma articulação didática (quando vinda de sábios de um tradição), ou é uma upāsana (meditação específica).
2. Se o sujeito está cognitivamente acima dos meios de conhecimento, ele pode perfeitamente dispensá-los, e se colocar na posição de autoridade -- e aí terá que se submeter ao crivo harmônico das demais autoridades tradicionais ao longo do tempo.
3. Se há dois śabda-s conflitivos, não há como conciliá-los com analogia.

Portanto, você pode estudar e conhecer simbolismos e analogias até ficar cansado. Nada ocorrerá, por necessidade, em campo cognitivo e espiritual.




Saturday, March 23, 2019

Doutrina do Saṃsāra e Doutrina da Queda


Após escrever a postagem A Árvore e os Frutos ano passado, recebi algumas mensagens dizendo que a distinção ali feita não é suficiente para separar as duas doutrinas a que me referi. Daí resolvi voltar ao assunto. Essa postagem visa descartar a opinião perenialista de que a Doutrina da Queda e a Doutrina do Saṃsāra são ambas “símbolos” ou “mitos” que se referem ao mesmo fato transcendental — a origem do homem — e que ambas são equivalentes.

A Doutrina da Queda é uma doutrina que serve para explicar a condição humana, e nesse ponto é similar em funcionalidade a outras doutrinas sobre a origem do homem, como, por exemplo, a Doutrina do Saṃsāra; contudo, o fato de exercerem a mesma função geral não implica que ambas sejam igualmente válidas, assim como dois diagnósticos de uma doença, vindos de diferentes médicos podem sim se contradizer e terem frutos diferentes.

Segundo a Doutrina da Queda, um determinado homem, singular, individual, concreto (ainda que existente em outra esfera de realidade, não era um homem abstrato) por atos de sua vontade, foi responsável ou causa eficiente da condição atual da humanidade e sua constituição ontológica atual.

Há discussão teológica (interna às religiões da Doutrina da Queda) sobre se os homens atuais recebem só o efeito, ou se recebem também a culpa dos atos desse primeiro homem. Para os fins do nosso argumento pouco importa: o importante é que o mecanismo é a transmissão genética eficiente, que entra em operação em determinado ponto do tempo (e não antes), e esses efeitos persistem até que surja a possibilidade de sua reversão pelos meios eficientes da vinda de um “salvador” (em outro ponto temporal).

A ação (pravṛtti) ou esforço intencional (prayojana) fruitivos só decorrem da compreensão intelectual de uma doutrina, ou pelo menos de sua aceitação de forma inequívoca. Se não fosse assim, todos os esforços dos sábios para esclarecer doutrinas e distingui-las seria em vão, e seria melhor mantê-las confusas, ou então bastaria indicar um esquema geral para que a ação e o esforço ocorressem.

Se um sujeito compreende a Doutrina da Queda como verdadeira, ele vai utilizar sua vontade para receber, por exemplo, a Redenção, que é vendida como (único) meio eficiente para reverter os efeitos da Queda, e não os meios que o Dharma oferece para a obtenção da Libertação (Mokṣa) e a eliminação do triplo-sofrimento (tri-duḥkha), próprio da aceitação do Saṃsāra. Portanto, compreender que ambas as doutrinas são equivalentes gera ambiguidade intelectual, dúvida, e paralisação do movimento da vontade, impedindo a obtenção do fim.

Não se vê ação firme baseada na aceitação de duas doutrinas contraditórias entre si, ou de uma doutrina ambígua. As ações ou esforços decorrentes da aceitação Doutrina da Queda não correspondem as ações e esforços decorrentes da compreensão da Doutrina do Saṃsāra, e portanto os frutos decorrentes das ações motivadas por ambas podem ser diferentes, e essa possibilidade é relevante para os que têm interesse nos frutos.

As doutrinas são diferentes e incompatíveis pelos seguintes motivos:
  1. O loco do karma e dos saṃskāra-s é manas ou antaḥkaraṇa individual, de maneira que cada jīvātman carrega em si individualmente os resultados de seus próprios atos desde tempos imemoriais. 
  2. Na Doutrina da Queda o primeiro homem tem anterior não-existência, e os homens posteriores ao primeiro são mais jovens, ou seja, a sua vinda à existência é sempre posterior, de maneira que nenhum dos homens atuais esteve individualmente no paraíso ou conheceu essa dimensão a não ser por relação indireta.
  3. No Sanātana Dharma a criação do homem acontece novamente após cada pralaya, e não é uma criação ex-nihilo, mas se dá a partir do chamado adṛṣṭa do ciclo anterior. O karma é sem princípio, ainda que possa ter um fim.
  4. Os jīvātman-s não são humanos (mānuṣya) por essência, ainda que sejam puruṣa-s e possuam intelecto, mente, ego, prana-s, sentidos e tanmātra-s que viajam (punarjanman) por meio do liṅgaśarīra, que é sua conjunção com prakṛti. Os jīvātman-s podem se manifestar como humanos ou podem se tornar seres inferiores ou superiores, com obstrução ou desobstrução parcial das capacidades carregadas no liṅgaśarīra.
  5. As condições (sociais, genéticas) em que se nasce são, para um jīvātman, as condições próprias para manifestação dos frutos do karma anterior, não sua causa eficiente. Ou seja, é como se as condições de nascimento (que carregam entre si sua própria causalidade interna) criassem ambientes operacionais para que o karma frutifique. Se há um karma coletivo isso se diz metaforicamente, pela continuidade empírica dos veículos, vista desde um ponto de vista externo, mas não como causa da manifestação do fruto. 
  6. Se cada homem fosse criado ex-nihilo, ele teria de ser criado pela ação direta de Deus em ponto temporal específico, e a ação seria parcialmente obstruída pela eficácia da ação do primeiro homem na genética humana ou no universal da "humanidade". Ou seja, é como se o nome “humanidade”, estivesse obstruído já na conjunção entre universais e particulares no ato de criação. Essa doutrina não pertence ao Sanātana Dharma.
  7. Há também a hipótese de que os homens já estejam na mente de Deus pela eternidade. Se essa presença na mente de Deus não for em essência, o ato do primeiro homem teria de dar conta da essência dos posteriores, e ele seria portanto criador, e não somente causa instrumental da restrição da essência. Se estão de fato na mente de Deus desde a eternidade, então não são criados ex-nihilo em determinado ponto temporal e Deus seria ou responsável pela condição ou incapaz de superar a obstrução ontológica imposta pelo ato do primeiro homem.
  8. Se usarmos a hipótese de que Deus teria criado “razões seminais” e que elas gerariam efeitos no tempo apropriado. Isso pode, no máximo, se referir a espécies diferentes, e ao seu surgimento em determinado ponto no tempo, e não ao surgimento de indivíduos humanos, cuja causa já estaria “inseminada” no universal "humanidade" ou na genética corporal que já sofreria dos supostos invariáveis efeitos da Queda.
  9. Se a Doutrina do Saṃsāra e a Doutrina da Queda fossem ambas símbolos para um fato que é em si mesmo inefável, de maneira que não deviam ser tomadas literalmente, então deveríamos aceitar qualquer ideia narrada em livros antigos para a mesma coisa, bastando a condição de serem símbolos similares da origem do homem e terem coincidências estruturais.
Dito isso, desde o ponto de vista hindu, a queda do primeiro homem e a transmissão dos efeitos de tal acontecimento não é possível, e a crença nisso não gera frutos: 

a) Pois não há um primeiro homem em sentido temporal.
b) Ainda que houvesse um primeiro homem em sentido temporal (o que não é o caso) a sua ação afetaria somente seu antaḥkaraṇa individual.
c) Ainda que a sua ação afetasse os homens posteriores (o que não é o caso), afetaria em seu aspecto genético, corporal, e não essencial.

O aspecto essencial do homem, sendo incriado segundo o Dharma, não tem conexão limitada com o tempo, não pode ter anterior ou posterior não-existência, não pode ser mais jovem ou mais velho. E portanto, são duas doutrinas incompatíveis no campo lógico, metafísico e geram esforços diferenciados, e provavelmente frutos diferenciados.