Monday, September 9, 2013

A injustiça como obscurecimento da perspectiva da eternidade

Vou fazer algumas postagens inspiradas nos temas delineados na República de Platão. Deixo hoje alguns pensamentos suscitados pelo debate clássico entre Trasímaco e Sócrates, que se dá logo no primeiro capítulo da obra. 

Eu imagino que devido ao peso dessa referência, inúmeras reflexões em diversos planos devem ter se acumulado academicamente. Não as conheço, mas gosto de tomar esse diálogo desde a perspectiva da sabedoria perene, compreendendo-o como manifestação de uma possibilidade humana especifica, a de resgate do conceito de justiça através de um método específico, a filosofia, porém também como articulação necessária dessa possibilidade humana com a estrutura estável e imutável da Lei, entendida como Dharma, tal qual os hindus veem a questão.

Ora, a injustiça é uma disposição da alma que arrasta o homem para a falsidade e, em consequência, para a não realização de sua perfeição possível e da eternidade. A discussão no primeiro capítulo da República de Platão entre Trasímaco e Sócrates, ainda que não seja suficiente para dar a dimensão mais profunda da justiça, cuja investigação toma todo o resto dessa célebre obra, coloca o tema da justiça em um panorama opositivo: de um lado Trasímaco diz que a verdadeira justiça é a vantagem do mais forte, e que viver injustamente é o ideal maior do homem, do outro lado está Sócrates, que por meio da argumentação, vai tentando, através dos próprios elementos permanentes e imutáveis da razão reflexiva do interlocutor, trazer a justiça para o plano da consciência. 

Que a filosofia, como entendida pelos antigos, é essencialmente o exercício de atingir uma disposição primordial, desnuda da alma, ou seja, atingir o lugar interno onde a alma se converta num cristal transparente que reflita uma lei eterna, é inegável. As camadas de ignorância representadas por Trasímaco são os diversos véus que obscurecem essa disposição primordial. Ao longo do primeiro capítulo da República Trasímaco vai oferecendo esses véus da alma um a um, e eles vão sendo retirados por Sócrates através de seu instrumento dialético. Sócrates se defronta com uma confusão em seu interlocutor, na qual as disposições ou potências anímicas se veem intercaladas de maneira incorreta, caótica, e vai restabelecendo a hierarquia correta, confrontando no entanto, a cada passo, poderes de resistência, de vaidade, de vanglória, de falsidade e de injustiça.

Tudo isso é muito claro. O que às vezes é obscuro é que esse novo método que nascia, essa dialética, é um método condicionado a dois fatores: a lei eterna e o obscurecimento cíclico. Na Grécia de Platão, os deuses eram propriedade dos poetas, e esses deuses tinham elementos também de confusão. Os deuses não refletiam mais a justiça, pois eram humanizados, apaixonados e representavam dramas que não tinham mais conexão com a Lei. Paradoxalmente os deuses estavam muito próximos da humanidade porque tinham se afastado de si mesmos, por assim dizer; o homem se reconhecia nos deuses, mas os deuses não tinham capacidade de elevar o homem ao eterno. Os elementos mais acessíveis para a busca da justiça são, portanto, o homem, a alma e a palavra. Nessa articulação cirúrgica, no meio das ruas da polis, é que acontecem os partos que fazem nascer de novo os homens justos dentro da escuridão dos tempos de decadência.

O Dharma, como observa René Guénon, é o atributo de estabilidade que se manifesta no mundo. Dentro dos seus múltiplos significados, o Dharma é a Justiça. É a perfeição realizável de determinada manifestação. Se o ser humano, enquanto humano, não realiza seu Dharma, ele decai e como que experimenta uma dissolução, uma força centrífuga terrível que vai afastando-o do "centro do mundo", do polo ou do eixo, termos que em sânscrito têm associação etimológica com o termo Dharma. 

Essa estabilidade, essa Lei, em eras douradas era obtida diretamente do contato imediato do homem com a divindade, sem intervenção de protocolos ou de envoltórios limitados como a palavra. É na filosofia grega, talvez em Pitágoras, que a palavra humana e o discurso humano são convertidos providencialmente em instrumentos de "resgate" e a Lei é obtida pela reflexão mental; e isso só veio a ocorrer em função do obscurecimento da inteligência e não por sua iluminação, como querem os historiadores mais ortodoxos da filosofia. Estudar a filosofia afastando sua gênese da concepção ou da pressuposição da Lei Eterna, da Lei Trascendente, e da consciência aguda do terror cósmico causado pelo afastamento das divindades, é transformá-la em ginástica lógica ou exercício fútil, o que transformaria Sócrates de fato em um sujeito realmente patético ou até mesmo em um personagem cômico e frívolo tal qual apresentado por Aristófanes (ainda que talvez não com essa intenção exata) ou um profeta da debilidade, como quis Nietszche.