Saturday, May 18, 2019

Pressupostos do pensamento hindu

J.C. Chatterji em livro clássico sobre o Realismo Hindu (que não é o ilustrado na imagem) faz algumas observações cruciais, sobre pontos que são a pedra no sapato de estudantes de filosofia ocidental interessados em pensamento hindu. Para ele, o pensamento ocidental tem três pressupostos inválidos:

1) Que o homem não pode conhecer verdades metafísicas por experiência direta, ou seja, tendo certeza presentativa de seu objeto. Devido a isso, essas verdades tem sempre de ser matérias de especulação, inferência ou fé.

2) Ainda que fosse possível em tese, não há (ou não se pode contar com) homens que tiveram de fato essa experiência. 

3) As escolas hindus de pensamento, assim como os sistemas especulativos ocidentais, seriam mutuamente contraditórias em seus esforços especulativos; e, caso alguma delas seja verdadeira, o será pela exclusão das outras.

Esses três pressupostos criam obstáculos  até para estudiosos avançados dessas doutrinas, e até para  os indologistas mesmo, e são derivados de um horizonte antropológico segundo o qual o homem está perdido, no escuro, tem de fazer caminho desconhecido de antemão, e não tem garantia de que chegará a algum lugar.

Caso chegue a algum lugar, seu terreno e sua trajetória será feita em exclusão das demais, pois começaram de pontos diversos e quando chegam a admitir experiências dessa natureza, jogam-na para o campo da religiosidade e sentimentalidade (quando não da patologia psicológica), e não do conhecimento ou ciência mesmo.

Chatterji nos dá oito pressupostos que edificam o pensamento hindu (e de certa forma também budista, jaina e agâmico, e não só das chamadas seis escolas clássicas):
  • O homem pode conhecer verdades metafísicas, como quaisquer outras verdades, por experiência direta e não só por especulação, inferência ou fé.
  • Houve homens no passado que conheceram a nossa natureza e a natureza do universo perfeitamente. Esses homens eram conhecidos como ṛṣi-s.
  • Por meio do conhecimento direto de verdades metafísicas é que os ṛṣi-s se tornaram conhecedores, e não por meio de especulação.
  • Os ṛṣi-s não ensinaram por meio de dogmas, ou exigindo fé, mas por meio de demonstrações racionais. A função do pensamento e dos pontos de vista, portanto, não é a descoberta original de verdades metafísicas, mas a conciliação da experiência metafísica com o pensamento racional ou discursivo, conciliação que pode se dar de diferentes maneiras e por diferentes ângulos)
  • Uma vez que os ṛṣi-s tiveram a experiência direta da verdade, e isso não era mera matéria de especulação, fé ou inferência, todos os ṛṣi-s conheceram a mesma verdade; assim como várias pessoas olham para o mesmo sol.
  • Ainda que tenham tido a mesma experiência direta da verdade, os ṛṣi-s a ensinaram segundo graus ou modelos diferentes. Modelos esses que são representados idealmente mas não necessariamente, pelos sūtra-s das darśana-s hindus. Esses graus se adequam a diferentes a mentes, assim como a gramática pode ser ensinada desde o ponto de vista prático, filológico, histórico etc.
  • Os pontos de vista, portanto, não são essencialmente contraditórios entre si (no que diz respeito à eficácia para obtenção dos puruṣārtha-s, os fins últimos humanos), mas constituem uma série que avança gradualmente e abarca realidades cada vez mais profundas. Esses pontos de vista podem ou não ter uma sucessão ou evolução histórica, o que pouco importa desde o ponto de vista de sua disposição e harmonia profunda.
  • Os sistemas levam, na prática, ao mesmo fim geral (concebido negativamente como a libertação das condições de sofrimento humano). Alguém pode seguir um deles segundo sua capacidade intelectual e temperamento e obter o mesmo benefício geral, que é a libertação.
A coisa parece com o caso de pessoas de diferentes origens, que sobem ao topo dum prédio para ver a cidade, e ao descerem, descrevem-na segundo seus meios e sua mentalidade para os que são afins àquela forma de expressão. A discordância se dá portanto no acomodamento lógico, dialético ou retórico, segundo regras que já estão dispostas.

Outro ponto, e talvez um dos mais importantes, é que, a cada geração é preciso confirmar a eficácia desses ensinamentos, e novas pessoas devem realizá-los em si mesmos tendo experiência direta. Não se trata de compreender uma formulação doutrinal, mas de colocar-se em determinado ponto de vista, e a partir dali atingir a meta suprema a que se propõe o sistema.

A cada geração há pessoas que realizaram e incorporam na sua pessoa a mesma verdade dos ṛṣi-s, e não apenas aceitaram pressupostos conceituais; daí eles usam a mesma tecnologia conceitual, a aperfeiçoam, rebatem novas críticas e vão acumulando novos ornamentos aos sūtra-s ou livros originários e tentando amarrar de forma coerente essas inovações ao sistema da tradição, do śāstra e do “peer-review”, de forma que a experiência tem que ser cotejada junto a várias instancias com critérios rígidos.

Há lugar para inovações, como por exemplo, temos a escola Nyāya criando, após séculos, novos instrumentos lógicos para combater as críticas budistas e vedantinas. Contudo, outro erro é crer que o “rio” de uma corrente de conhecimento materializada por um ponto de vista são as formulações doutrinais ou embates dialéticos, ou da coleção quantitativa de “proposições” e “juízos”. Que são apenas um dos aspectos, e dos mais superficiais.

Há, portanto uma arquitetura aberta que é alimentada necessariamente pelas intuições individuais, validada e tornada coerente pela experiência das pessoas competentes que se colocam no mesmo ponto de vista, pelo embate e refinamento dialético com outros pontos de vista, pela tradição, e pelo śāstra, e a experiência pode ser verificada em vida pelos praticantes que a isso se dediquem segundo os métodos apropriados.

Essa unidade escapa às mentes ocidentalizadas em geral, eu me lembro de ter visto somente Guénon até hoje descrevendo-a, ainda que com algumas impropriedades. A maioria dos estudiosos ainda partem dos três pressupostos expostos no início.

Chatterji, dando exemplo de Max Müller, observa que alguns estudiosos ocidentais chegaram a intuir a unidade sintética desses pontos de vista, que é algo sutil, porém óbvio para quem tem a intuição correta ou obteve a experiência de um dos pontos de vista:
“Quando mais eu estudo os vários sistemas, eu fico mais impressionado com a verdade da visão de Vijñāna Bhikṣu e outros de que há, por trás da variedade dos seis sistemas, um fundo comum do que pode ser chamado de filosofia nacional ou popular, um grande lago mental do pensamento filosófico e da linguagem, vindo do Norte distante, vindo de um passado distante, um lago do qual permite-se que cada pensador retire [o necessário] para seu propósito” (Max Müller)

Friday, May 17, 2019

Analogia de salvação: miséria da analogia

À minha postagem anterior recebi um comentário, dizendo que eu não compreendia analogia nem simbolismo, e que minha comparação entre a Doutrina da Queda e a Doutrina do Saṃsāra tinha sido "exotérica". Disseram-me que a comparação teria de ser feita desde um ponto de vista "superior", analógico, para poder perceber a unidade das tradições.

Conheço esses argumentos. 

Anos atrás eu mesmo cheguei a adotá-los provisoriamente, até perceber que eles são fracos, quando não francamente arrogantes e errôneos (inclusive há lastros disso em postagens antigas desse próprio blog).

Vale a pena comentar isso, porque é um erro de muitos.

Ora, em primeiro lugar, se o sujeito está acima dos distintos instrumentos últimos de conhecimento ao ponto de poder sintetizá-los "desde cima", ele não precisa obter conhecimento a partir deles uma vez que os julga. Se ele está nessa posição, que valor tem para ele os tais instrumentos? Deveríamos recorrer ao sujeito mesmo, como autoridade.

A analogia é uma proporção qualitativa. Aparece ao conhecimento como nota subsistente porém supra-substancial: indica indiretamente um descolamento, por exemplo, entre a qualidade e seu substrato, pelo qual as qualidades subsistem e se relacionam de forma independente, como que em grandes "temas ontológicos" subsistentes. Isso segundo algumas tradições platônicas ou platonizadas, ocidentais.

Entre os naiyāyika-s, e nas demais tradições indianas que a consideram como modo de conhecimento legítimo, a analogia (upamāna) é uma conjugação de śabda (conhecimento verbal) e pratyakṣa (conhecimento empírico) e talvez anumāna (conhecimento inferencial) para alguns.

A diferença é que alguns platônicos, e mais recentemente esoteristas e tradicionalistas ocidentais, passaram a atribuir à analogia, conjugada com a simbólica, o meio eminente da transmissão e da compreensão intelectual superior. 

Não só isso: esses esoteristas passaram a apregoar que o simbolismo e analogia são o veículo eminente do esoterismo em todas as tradições espirituais. Já cheguei a ler por aí até mesmo que o hinduísmo era uma "religião de analogia".

Mais uma daquelas falsidades que são de imediato aceitas e divulgadas sem que haja o trabalho de recorrer às fontes tradicionais. 

Os sábios védicos, se de fato chegam a usar contemplações analógicas para meditar sobre o “corpo do Virat” fazendo uso de objetos cósmicos visíveis, e se, da mesma forma, transferem o “sacrifício do cavalo” ou o “sacrifício humano” para o campo das contemplações simbólicas, não alegam que essas formulações simbólicas em si mesmas são tecnologias de conhecimento independentes: são upāsana-s, ou técnicas de contemplação, transmitidas junto com influência espiritual, como tantas outras de natureza não analógica.

O caso do uso que os naiyāyika-s fazem da analogia é exemplar: você está numa floresta e encontra ali com um ermitão, grande conhecedor da floresta e de tudo o que está ali. Esse ermitão lhe informa  (śabda) que há, aos pés da montanha um animal chamado “búfalo”, e que esse animal se parece com uma “vaca”. Andando pela região você avista um animal (pratyakṣa) que se parece com uma vaca, logo, esse animal deve ser um búfalo (upamāna). 

Esse é o escopo da analogia. Simples.

A analogia, isoladamente, não serve para adivinhar as estruturas da realidade, como que numa escalada ontológica ou dialética, de baixo para cima. Ela serve à função de reconhecimento (pratyabhijñā) a partir de proporções qualitativas. É uma conjugação de métodos de conhecimento, para fins de reconhecimento.

Peguemos analogia conhecida: Deus é como o sol. 

Ora, o que temos aí? 

Assim como o Sol está para os seres desse sistema, Deus está para todas as coisas. 

Essa proposição pode ser verdadeira ou não, a depender da verificação de que é assim de fato, verificação dada pelo conhecimento divino (anubhava).

Contudo, vejamos que, quando se dá o reconhecimento, ele se dá na forma de 

“Esse Deus que agora se apresenta é igual aquele sol”, 

ou seja, 

“isso (objeto singular) é igual aquilo (objeto na memória)”.

Alguém poderá dizer (e fatalmente dirá) que a analogia incita a "anamnese" em sentido profundo, ou seja, incita o "homem noético", que guarda em seu bojo ontológico uma identidade com tudo o mais. Nesse caso, meus caros, trata-se também de transmissão por meio de autoridade (śabda). Não se sabe se é assim por necessidade. 

O que existe, sempre, é uma predisposição baseada na afirmação de um "apta" ou "ṛṣi". Em segundo lugar, a questão está no domínio do conhecimento de Si Mesmo (ātmavidyā), para o qual as analogias são dispensáveis, sendo mais útil o samādhi silencioso e não-verbalizável.

Outro erro, vindo também de esoteristas e estudiosos de religião comparada, é dizer que ritos são analogias. 

Podem ser, e devem ser de fato. 

Mas não só; e, na verdade, pouco importa. 

Sua eficácia ou causalidade, segundo as fontes tradicionais, não é dada por sua natureza analógica ou simbólica. Segundo o ensinamento tradicional é dado pelo chamado adṛṣṭa ou apurva, que é o efeito invisível, porém real e eficaz, de um karma (que tem sempre substrato individual e não universal) em sua articulação econômica com a ordem total das coisas. 

Resumindo:

1. Não, o conhecimento analógico ou simbólico não permite uma escalada ontológica ou metafísica segura. Ele é uma articulação didática (quando vinda de sábios de um tradição), ou é uma upāsana (meditação específica).
2. Se o sujeito está cognitivamente acima dos meios de conhecimento, ele pode perfeitamente dispensá-los, e se colocar na posição de autoridade -- e aí terá que se submeter ao crivo harmônico das demais autoridades tradicionais ao longo do tempo.
3. Se há dois śabda-s conflitivos, não há como conciliá-los com analogia.

Portanto, você pode estudar e conhecer simbolismos e analogias até ficar cansado. Nada ocorrerá, por necessidade, em campo cognitivo e espiritual.