Tuesday, October 22, 2013

Os objetivos da vida humana

Muitas pessoas interessadas no chamado Sanatana Dharma começam pelo estudo das escrituras, como os Upanixades, ou pelo estudo do Vedanta, que são os ensinamentos metafísicos. No entanto, eu vejo que alguns não compreendem exatamente como situar as coisas dentro de uma estrutura maior, e, portanto, eles as situam dentro de categorias mentais próprias do Ocidente moderno como misticismo hindu, ou coisas assim. A primeira coisa que se deve ter em mente é que todo ensinamento do Dharma, principalmente ensinamento escrito, está inserido dentro de uma civilização, e uma civilização é completa em si mesma, de maneira que todos os campos da atividade e conhecimento estão de alguma maneira articulados e são proporcionados a essa hierarquia interna.

Diante dessa falta de referência ou de conseguir situar os ensinamentos por parte de ocidentais, eu acho hoje em dia que um estudo cuidadoso da República de Platão e da Ética de Aristóteles seria muito importante, e talvez suficiente, para que nós ocidentais tenhamos uma dimensão mais acessível de como esses temas são delimitados e a que eles se referem, evitando interpretações fantasiosas. Na República de Platão temos a constituição ideal de uma civilização edificada segundo o processo da filosofia e da investigação. A diferença entre isso e o Dharma é que o Dharma é dado dentro de um contexto de sacralidade. Todo o conjunto de escrituras hindus, cujas conexões e articulações parecem muito complexas, são proporcionados e têm o seu eixo na edificação do que conhece como "purushartha", da qual vamos tratar brevemente aqui. 

O "purusha", que como outros termos sânscritos tem também inúmeros sentidos, nesse caso indica o ser humano, o homem em seu sentido universal, ao passo que "artha" seria relacionado ao significado, à meta; de maneira que isso nos leva a compreender que é uma definição da metas ou significados da existência humana, ou seja, obviamente não são prescrições para animais ou plantas. Mas, ao dizermos que isso não se direciona a animais e plantas, verificamos que se direciona aos seres humanos por uma razão da diferença específica entre os seres humanos e animais, que é o intelecto, que é conhecido como "buddhi". As metas humanas são proporcionadas às faculdades humanas, animais têm também perfeições a serem realizadas e eles as perseguem, mas eles as perseguem por uma disposição instintiva, ao passo que o ser humano a persegue usando faculdades intelectuais como memória, juízo, vontade

Qualquer uma das milhares de escrituras hindus está, de alguma maneira, proporcionada a consecução de uma meta humana direta ou indiretamente. Faremos em outra postagem uma classificação dessas escrituras e sua relação com as metas humanas, o que pode ajudar as pessoas que querem se situar dentro desse contexto. Agora tratemos um pouco das 4 categorias de perfeições ou metas do ser humano: artha, kama, dharma, moksha.

A primeira necessidade de um ser humano é garantir sua integridade física e subsistência material. De maneira que "artha" seriam os meios, as artes, e as doutrinas, que são criadas tendo como fim a obtenção ou garantia de que essa necessidade seja cumprida. A sobrevivência física inclui coisas como alimentação, saúde, vestimenta, moradia e segurança. Daí que coisas como a medicina, a política, a economia, a arquitetura e as artes militares são relacionadas a essa meta humana. Notemos novamente, no entanto, que no contexto grego, essas coisas são objetos de reflexão individual, ao passo que dentro de uma civilização sagrada, isso é dado através de um conjunto de ensinamentos atemporais.

A segunda necessidade de um ser humano, uma vez garantida sua integridade física e subsistência material, é a satisfação dos sentidos e o conforto ou luxo. Ou seja, na medida em que temos uma moradia, queremos decorá-la para que ela fique mais confortável, na medida em que temos alimentação, começamos a pensar em termos de culinária ou temperos, a partir do momento em que nossa integridade não está ameaçada por inimigos começamos a desfrutar de entretenimento, música, teatro, dança e cultura; na medida em que nossa saúde não está em risco, começamos a fazer exercícios para a beleza física, etc. A isso se dá o nome de "kama", ou seja, é a satisfação sensorial, estética.

As duas necessidades anteriores são aplacadas por meios visíveis, tangíveis, no entanto, quando as aplacamos, entramos em contato com as realidades ou perfeições invisíveis, é o que se chama nesse contexto de "dharma", e deve-se ter novamente cuidado com a polissemia da língua sãnscrita, pois o dharma nesse caso está delimitado pelo escopo das purushartas. O dharma é de difícil compreensão, mas digamos que ele está relacionado, em termos ocidentais ao conceito de justiça, mérito, e bens imateriais. Seria um conceito muito próximo das "virtudes dianoéticas" de Aristóteles, no meu entender. O dharma, por ser de certa forma imaterial, tem algum escopo "soteriológico", no sentido de que seus efeitos transcendem a vida humana e influenciam o renascimento. Ele se opõe em algum sentido ao karma, que seriam os efeitos automáticos ou inconscientes das ações humanas, uma espécie de justiça cega, ao passo que o dharma seriam efeitos conscientes e baseados em uma justiça direcionada.

E por fim temos o objetivo do Vedanta, que é o moksha, a mais alta aspiração humana, e que diz respeito à liberdade no sentido metafísico. Essa meta se diferencia das outras três e transcende o escopo da atividade meramente humana, direcionando-se ao aspecto divino. Esse é o tema principal de escrituras como os Upanixades, por exemplo. A delimitação dessas quatro metas da vida humana é o tema básico a ser compreendido por qualquer pessoa que queira estudar o Dharma. É um tema que tem diversas relações com outros temas fundamentais como o das varnas ou castas, com a questão as 4 naturezas humanas, das gunas, com os estágios da vida humana, e com as práticas espirituais específicas, temas mais complexos que não trataremos nessa postagem, mas aos quais posso retornar futuramente.