Friday, April 27, 2018

Ram Swarup e a visão hindu do Ocidente (parte 3)

Cristianismo, Islam e a intolerância

Os missionários cristãos estudavam o Islam para melhor converter. E dentro desse desconhecimento surgiu também algum reconhecimento. O profeta do Islam honrava Jesus, e declarava que o Deus de sua religião era o mesmo Deus de Moisés e Abraão. O Islam, assim, causava certa perplexidade nos missionários cristãos, pois, uma vez que o campo da 'Boa Nova' já estava definido, como explicar o surgimento de uma renovação disso? 

Os cristãos entenderam, por fim, que o Islam só poderia ser uma corrupção da mensagem cristã. Maomé provavelmente teria entrado em contato com um versão idolátrica e supersticiosa do Cristianismo que existia na Arábia, e a partir dessa versão, formou sua religião.  Ram Swarup cita o famoso sanscritista e agente missionário Max Muller para ilustrar essa compreensão:
"Se ao menos Maomé, iludido e de espírito efervescente, cuja alma agitou-se ao ver seus compatriotas absorvidos na idolatria, tivesse sido levado a associar-se com uma forma mais pura da Cristandade [...] ele poderia ter morrido como mártir pela verdade, a Ásia poderia contar com milhões de cristãos, e o nome de Santo Maomé poderia estar no calendário de nosso livro comum de preces. Pense então, a diferença na presente condição do mundo asiático, se o fogo da eloquência de Maomé houvesse sido exercida em favor da verdadeira Cristandade" 
O Islam e a Cristandade lutaram com a espada. Durante muito tempo. Contudo, quando essa opção foi se esgotando, por diversas razões históricas, não foi só o Cristianismo que teve de se adaptar. O ataque ao Islam vinha agora por meio da apologética. E os muçulmanos com o tempo tiveram de aprender também essa tecnologia. 

Logo os cristãos tentavam provar a veracidade de Cristo segundo o Corão, e os muçulmanos respondiam buscando demonstrar a veracidade do Islam segundo a Bíblia. Para o muçulmano, o Cristianismo era um Islam sem Maomé, e para os cristãos, se Maomé já aceitava o Cristo em sua nobreza e até em seu papel escatológico, faltava pouco para que os muçulmanos também o aceitassem como Filho Único de Deus e salvador. Ambos acreditavam no mesmo Deus, e disputavam o mesmo trono, onde só um poderia permanecer.

Um dos aspectos curiosos dessa nova fase, apologética, é que ambos os lados eram estritamente racionais em relação a fé do outro, sem aplicar a mesma racionalidade para si mesmos. O muçulmanos gostavam, por exemplo, de apropriar-se das críticas do humanismo e racionalismo ao Cristianismo, sem contudo utilizá-las para si mesmo. Além da ausência de autocrítica de ambos os lados, algumas premissas sempre foram mantidas, como o fato de que ambos lutavam pela legitimidade de terem um 'medium' exclusivo entre Deus e a humanidade, compartilhando o mesmo desprezo aos chamados pagãos ou infiéis, e eram ambos contra a chamada 'idolatria' que caracterizava as religiões não-semíticas.

Swarup nota que os judeus, pais espirituais das duas tradições, inicialmente não eram monoteístas. Eles tinham seus deuses tribais, que brigavam entre si, mas que não pretendiam inicialmente um exclusivismo ou universalismo tão marcado.  

O exclusivismo começa com Moisés. O autor especula que Moisés teria sido influenciado pelas reformas religiosas de Aquenaton no Egito, contudo "esse Deus era muito brando e pacífico, e não seria útil para a nova vida dos Judeus. Portanto, durante suas jornadas, eles adotaram um outro Deus, o Deus dos Midianitas, um Deus Vulcão." Essa tendência exclusivista, que nos Judeus era responsável pela sua preservação, sem implicar imposição, foi repassada aos muçulmanos e cristãos dando origem a um Deus ainda mais exclusivista e ciumento, e também mais ambicioso e belicoso. 

O advento do Cristianismo trouxe à terra um Deus que queria se impor à humanidade. Surgia pela primeira vez uma divindade que solicitava que seus seguidores fossem em todas as direções e pregassem seu nome, buscando conversões. Outra diferença notável entre o Deus judeu e o cristão, é que entre os judeus, Deus falava por meio de vários intermediários proféticos, ao passo que com o Cristianismo temos o surgimento do intermediário exclusivo e legítimo.

Diz o autor que os árabes pré-islâmicos conheceram e conviveram com o Judaísmo e o Cristianismo, e não se impressionaram. Mantiveram o culto aos seus diversos deuses em certo nível externo, e quando buscavam algo mais profundo se isolavam em montanhas ou cavernas para meditar, costume seguido pelo próprio Maomé, que, ao contrário de seus contemporâneos, de fato sentiu atração pelas notícias do Cristianismo e do Judaísmo, e por fim declarou, por meio das supostas revelações, que ele mesmo, Maomé, representava a continuidade daquelas tradições proféticas, e começou a pregar a conversão e o abandono dos deuses de sua nação.

Swarup lembra que ao longo do grande conflito entre Maomé os árabes de seu tempo, ele chegou a oferecer reconhecimento aos deuses locais, buscando uma conciliação, no episódio que foi celebrizado recentemente como os 'Versos Satânicos', pelo escritor Salman Rushdie. Maomé entendeu depois que os versos conciliatórios teriam na verdade sido inspirados por satanás e voltou atrás da sua posição, buscando novamente a conversão e a adoção do Deus único.

Maomé foi ridicularizado pelos seus contemporâneos, que diziam que sua mensagem era de baixo valor, e que ele era um poeta e adivinho, um tipo desacreditado. Ele resistiu, e os ameaçava, de início verbalmente e, à medida em que sua mensagem foi ganhando força, a retribuição e as ameaças foram ganhando o campo da ação concreta e violenta. Com o tempo, caravanas eram saqueadas, os ídolos derrubados, os templos foram convertido nas casas do novo Deus, e, por fim, os árabes receberam o ultimato de se converterem ou morrerem. 

A virada, por assim dizer, também tornou o Islam atrativo por motivos econômicos e políticos -- os novos convertidos tomavam parte na distribuição da riqueza segundo a nova ordem. E essas propriedades e riquezas posteriormente ganhariam um caráter hereditário, criando um novo sistema de distribuição e hierarquia social.

Os árabes pagãos eram tolerantes para com cristãos e judeus, diz Swarup. Muitos deles viviam na região, e que inclusive grande parte deles eram hereges que fugiam da perseguição que sofriam entre os próprios cristãos e judeus. Essa tolerância foi consideravelmente diminuída com o estabelecimento do Islam. 

Os pagãos aceitavam os cristãos e judeus, rejeitando os seu Deus, e os muçulmanos aceitavam o Deus, mas rejeitavam cristãos e muçulmanos. O autor observa que essa é uma diferença fundamental: o paganismo, por assim dizer, tem vários deuses, e acredita em uma só humanidade, ao passo que o semitismo tem apenas um Deus, mas acreditam em pelo menos duas humanidades dividas pela aceitação de uma revelação. A divisão não é mais cultural, econômica ou política, mas metafísica.

A teoria do Deus único, implica a do profeta, salvador ou intérprete exclusivo. À medida que o Deus semítico se tornava um, ele também se tornava exclusivo em suas comunicações. Mesmo quando ele tinha um povo escolhido, esse povo não tinha um contato direto com Ele. Ele dizia que enviar-lhes-ia um profeta  para instrui-los, e o povo deveria obedecer a esse profeta. Esse indivíduo falaria em nome de Deus, e quem o desobedecesse seria punido. Isso tomou forma do salvador por meio da Cristandade, e se tornou o intercessor e último profeta no Islam. 

A intolerância, portanto, está na raiz das religiões semíticas. É a tolerância aparece como fato excepcional. O autor observa, que certa intolerância sempre existiu nas culturas, contudo nunca foi legitimada por uma teologia: "foi com a vinda da Cristandade e do Islam que o fanatismo religioso e a arrogância desceram à terra em larga escala em com poder renovado". Onde quer que essas tradições espirituais tenham chegado, diz Swarup, elas carregaram a espada, elas carregaram fogo e espada, demoliram e ocuparam os templos dos outros. 

A doutrina de um único Deus, uma única igreja, uma única ummah, uma única vida, um único julgamento, era desconhecida na maior parte da história da humanidade:
"Falando historicamente, [essa doutrina] é mais uma aberração, uma moda local que se consolidou através da conquista e da propaganda, e que não poderia ter sido imposta de nenhuma outra forma.  [essa doutrina] difere não só do politeísmo, uma expressão religiosa popular, mas difere das religiões místicas que expressam a busca mais intensiva do homem por uma vida espiritual. É certamente diferente da espiritualidade conhecida no Oriente pelos herméticos, estoicos, pitagóricos, taoístas e vedantistas; é diferente delas na maioria das coisas, particularmente em seu conceito de divindade, homem e natureza, é diferente em suas definições, modos, teoria e práxis." 
Expansão externa e conhecimento interno 

Swarup diz que a religião e a devoção surgem como uma necessidade em todas as culturas, contudo ela não significa necessariamente a mesma coisa em todo canto. Em muitos casos a religião se mistura com as necessidades mais baixas da humanidade, e algumas vezes, o que se quer dizer ao usar o termo Deus, é nada mais que um faraó ou um Calígula.
"Mas tal Deus não pode durar muito ao menos que seu significado seja congelado e sustentado com uma teologia. Mais frequentemente um Deus tem de ter outras qualidades, mais humanas, e servir de auxiliador e guia, e oferecer consolo e socorre ao homem em suas dificuldades - e algumas vezes até mesmo nos desígnios humanos mais questionáveis, como os desígnios contra seus inimigos"
Essa noção de divindade, se serve a muitos em geral, não pode satisfazer àqueles que buscam um significado mais profundo na vida, uma lei superior de conduta. Pessoas que buscam respostas para questões superiores sobre sua origem, sua identidade, ou como diz o Veda, pessoas que querem migrar do irreal para o real, da escuridão para a luz,  e da morte para a imortalidade. E nesse ponto a espiritualidade hindu diz que as questões mais profundas sobre Deus se encontram com as questões sobre o Si Mesmo. 

Os homens vivem a maior parte do tempo em seus desejos, ódios, em seus egos e ignorância e são esses aspectos humanos que lançam um véu na verdadeira vida interior. Para descobrir essa vida, é preciso purificar os instrumentos de conhecimento da realidade, desenvolver novos poderes na alma, controle dos sentidos, não-violência, firmeza mental, compaixão. O homem tem de desenvolver devoção, discriminação espiritual, e poder de concentração, desapego e universalidade de ponto de vista. 
"À medida em que ele vai para dentro si, ele entra em novos planos e realidades até então desconhecidas. Ele se encontra com muitas formações psíquicas e seres espirituais de vários graus de pureza e poder correspondente à sua própria pureza, necessidade e qualificação. Ele também encontra deuses de desejo, e deuses de ego e se a pureza suficiente não tiver sido estabelecida na alma ele pode se identificar com um deles; ele pode até mesmo declarar que seu deus é o Deus, ele pode profeticamente exigir que seu Deus seja adorado por todos."
Swarup mostra que a natureza da intuição espiritual, conhecida através das ciências yóguicas, nos oferece uma visão muito diferente de Deus. As qualidades superiores que nutrem a alma são aquelas em que a divindade é compreendida singular e multipla. E nessa compreensão o homem chega a perceber que ele mesmo é uno com essa realidade, e não só isso, mas que todos os outros seres humanos também o são. Diferente da visão cristã que advoga que somente Jesus é uno com essa realidade, ao passo que todos os outros homens são unidos com Adão. Nessa compreensão espiritual não há persuasão, mas a visão verdadeira da unidade entre todos os homens e todo o universo com o princípio supremo.

A espiritualidade hindu busca o Âtmâ-jñâna, o conhecimento do Si Mesmo, e o conhecimento da divindade não pode ser separado disso. Sem uma doutrina correta do Atma, não há doutrina correta do Deva. Essa divindade é conhecida na parte mais luminosa da mente, na chamada 'caverna do coração', é compreendida pelo ajña-chakra, pelo terceiro olho, ou pela coroa dos mil lótus no topo da cabeça. E Allah e Jeovah não são deuses obtidos por yoga, pelo conhecimento de si mesmo, são na verdade mais parecidos com ideologias do que espiritualidades, segundo Swarup.

O papel do Hinduísmo no mundo

Segundo o autor, há um despertar nos povos colonizados, no sentido de entender que as religiões que praticam lhes foram impostas. As culturas estão tentando entender suas raízes mais antigas, ancestrais, e hoje em dia não se satisfazem mais com a Cristandade ou o Islam. A visão de que o paganismo era uma rede integrada de compreensão que vigorava em outro período da história está lentamente ressurgindo. 

Assim, o velho mundo, a Índia, tem uma mensagem aos povos do novo mundo, que começa a se desvincular da grande narrativa que lhe foi imposta. A desmoralização das tradições ancestrais tem como encontrar no Sanatana Dharma uma referência espiritual para entenderem o que era o mundo pré-cristão. A questão é diferente nos países islâmicos que ainda tem de lutar pela independência intelectual básica.
"O Hinduísmo pode ajudar todos os povos que estão em busca de uma renovação religiosa, porque ele preserva de alguma forma os seus velhos Deuses e religiões; ele preserva, em seus váriso níveis, tradições religiosas e intuições que foram perdidas. Muitas países hoje sob influência do Cristianismo e do Islam, tiveram em algum momento grandes religiões; tiveram também grandes Deuses que preenchiam adequadamente suas necessidades éticas e espirituais e inspiravam grandes atos de nobreza, amor e sacrifício. Mas por muitos séculos, essas tradições têm estados sob ataque e muito tem sido dito contra elas, enquanto elas permitiram a nova divindade totalitária oferece tudo o que quisesse. Os resultados foram desastrosos. O fanatismo religioso desceu sobre a terra, e o conceito do Deus único trouxe o conceito das duas humanidades, e a agressão religiosa se tornou a mais alta tarefa e moralidade. A religião mesma se tornou dogmática e perdeu sua interioridade e visão.  Os indivíduos e as coletividades se sentiram vazios por dentro."
Na próxima postagem vou concluir a resenha com as considerações de Swarup contrastando a espiritualidade semítica e a espiritualidade yóguica, além de fazer fazer alguns comentários críticos ao livro, colocando-o em perspectiva histórica e entendendo-o diante de outros pontos de vista que abordam a comparação de tradições espirituais.

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Saturday, April 21, 2018

Ram Swarup e a visão hindu do Ocidente (parte 2)

Sita Ram Goel e Ram Swarup
Desde o ponto de vista ocidental, que se vê como o ponto de vista da raça humana mesma, o Islam aparece como um apêndice, irmão bastardo do cristianismo. Desde o ponto de vista das civilizações orientais, considerado por muitos como inexistente ou ilegítimo, ambas as tradições surgem como fato atípico e excepcional, motivo de perplexidade.

Ram Swarup observa que a primeira fase nítida desse encontro entre esses dois titãs, que deu origem indireta aos estudos orientais no Ocidente, foi através da luta armada:
"Desde seu próprio nascimento o Islam achou-se em conflito com a Cristandade próxima. Movido pela mesma paixão e com as mesmas pretensões, as duas religiões se engajaram em amargo conflito por um milênio. O Islam bateu à porta da Cristandade, perturbando boa parte da Europa por séculos. Com o tempo a Cristandade respondeu com a espada das Cruzadas. A onda do Islam foi detida; a Cristandade ocidental foi unida; o poder do papa cresceu de forma tremenda e a Cristandade voltou sua visão para Oriente. E o Oriente tornou-se objeto de uma busca contínua e agressiva. As cruzadas armadas terminaram em ignomínia por volta do século XIII, e a Cristandade agora pensava em novos meios de penetração" 
A segunda etapa de aproximação se deu a partir do Concílio Ecumênico de Viena (1311-1312), em que houve a criação de uma cadeira especial de estudos das línguas hebraica, árabe, caldaica. Nos anos seguintes as autoridades eclesiásticas declarariam que "a Santa Igreja deve ter abundante número de católicos bem versados em linguagens, especialmente as dos infieis, de maneira a poderem instrui-los na Sagrada Doutrina". Essa tendência cresceu nos concílios seguintes, e a Igreja passou por profundas transformações, desenvolvendo ferramentas intelectuais para apaziguar os conflitos internos decorrentes do surgimento do protestantismo e o questionamento da autoridade eclesiástica. Contudo, Swarup observa que, desde um ponto um ponto de vista mais profundo:
"[...] ainda que diferentes grupos de cristãos tivessem agudas disputas internas, todos eles encaravam o mundo não-cristão de maneira unitária. Após um aplacamento, as nações protestantes também se juntaram ao jogo missionário com grande fervor. De fato, considerando a si mesmos como legítimos herdeiros da verdadeira Cristandade, eles estavam certos de que teriam êxito onde a Igreja Católica havia fracassado" 
George Sale, primeiro ocidental a traduzir o Corão, chegou a dizer que "é somente os Protestantes que podem atacar o Corão com sucesso" e que, na verdade, "a Providência lhes havia reservado a glória dessa demolição". 

William Muir, representante do Império Britânico, quase cem anos depois, se questionaria o porquê de o Islam ainda não ter caído e se convertido, e a razão talvez fosse "o fanatismo dos muçulmanos, a permissividade de concubinato e escravidão, e seus padrões baixos de moralidade". 

Em linhas gerais foi assim os cristãos desenvolveram seus estudos sobre o Islam, segundo Ram Swarup: o Islam foi, desde o começo uma 'fé espúria', seu autor um 'falso profeta'.

Com o aprofundamento dos estudos, essa posição inicial de hostilidade pura cedeu um pouco. Os cristãos começaram a ver vantagens civilizacionais no Islam. O autor cita o exemplo do reverendo Charles Foster da Igreja Anglicana, que, no século XIX, ainda que com o panorama dos estudos islâmicos bem mais avançado, considerava o Islam como 'superstição maligna', e seu fundador como um 'impostor, mundano, sensualista, demoníaco, indo além até mesmo da permissividade do seu credo permissivo'; contudo, conseguia ver assim mesmo a ação civilizatória dos muçulmanos, pois  'a limpeza do mundo da poluição brutal da idolatria e a preparação do caminho para a recepção da fé mais pura, [o Cristianismo], pode bem ser considerada como uma bênção'.

Ou seja, os cristãos viam o Islam de forma semelhante a como Marx via o Capitalismo, como estágio necessário desde a idolatria pura até a Cristandade. 

Em meio a essa visão hostil, visões muito mais liberais sobre o Islam também ganhavam vigor, admitindo suas positividades em diferentes graus, e até louvando suas virtudes, sempre tendo em vista os benefícios que o Islam trouxe à sua sociedade em relação à condição pagã anterior. Por fim, com a popularização dos escritos muçulmanos, os cristãos começaram a perceber que as virtudes de Maomé tinham até mesmo uma raiz legítima dentro da própria ancestralidade profética da religião cristã. Ou seja, as críticas que poderiam ser oferecidas ao profeta caberiam perfeitamente também a Moisés ou aos profetas do Antigo Testamento. Um ataque ao Islam implicava, portanto, um ataque às raízes da psique e do ethos profético antigo. 

A partir dessas percepções mais avançadas, a religião muçulmana começou a ser entendida como 'formidável antagonista', que oferecia questões e problemas muito mais profundos do que pareceu à primeira vista. Ram Swarup cita de novo William Muir para ilustrar essa tese:
"De todas as variedades de religião pagã, a Cristandade não tem nada a temer, pois eles nada mais são que exibições passivas de escuridão brutal, que desaparecerá diante da luz do Evangelho. Mas no Islam encontramos um poderoso inimigo, um usurpador sutil, que subiu ao trono sob o disfarce de sucessão legítima; e atacou as forças da coroa para suplantar sua autoridade. É pelo fato mesmo de o Maometanismo reconhecer as origens divinas, e ter tomado emprestado tantas armas da Cristandade, que ele é um adversário tão perigoso"
O autor diz que, no fim das contas, desde o ponto de vista hindu, que será desenvolvido em seu livro, o conflito entre as duas tradições se dá por uma noção errada da Divindade:
"A verdadeira causa do conflito é, claro, diferente da imaginada aqui por Muir. Ela consiste em uma compreensão inadequada da Divindade da parte tanto da Cristandade como do Islam. O Deus de ambos ensina a perseguir religiões que não sejam a sua própria. Ambos são dogmáticos, fundamentalistas e teológicos. Ambos carecem do Yoga, ou seja, a ciência própria e a disciplina para a exploração interna; ambos buscam expansão externa; ambos agressivamente pretendem ser superiores, e ambos, por  natureza, desconhecem a teoria de co-existência pacífica." 
Se o fervor missionário ofereceu o impulso inicial para a exploração e o estudo do Islam por parte dos cristãos, deve-se considerar que com o tempo o fator religioso foi ficando em segundo plano, cedendo lugar aos motivos imperiais, que tomavam a dianteira historicamente.  O crescimento do racionalismo tornou o Cristianismo menos e menos confiante em si mesmo, e os estudos orientais, que haviam começado e se estabelecido dentro de seus limites adquiriram uma outra dimensão. Swarup diz que o estudo sobre a vida de Maomé do anglicano Margoliouth foi um marco nesse sentido, por sua pretensão mais científica e a riqueza de detalhes, buscados nas fontes originais.

Uma peculiariade nos estudos de Margoliouth, talvez devida aos próprios preconceitos científicos de seu tempo conjugados com as pretensões positivistas dos espiritualistas e a decadência da religião, é o entendimento da revelação do Corão como um fenômeno de mediunidade, comparando-a inclusive com a então recente 'revelação' de Joseph Smith, fundador do mormonismo. O autor anglicano também aplica a teoria da mediunidade (entendida de forma mais ampla) à Bíblia e ao Deus judaico. O profeta é sempre um medium, ou seja, o fator de comunicação entre o transcendente e o imanente. E a figura mesma de Jesus é uma figura mediúnica, um intermediário entre Deus e a humanidade. 

Swarup observa que, assim como a Cristandade, o Hinduísmo também entrou em conflito com o Islam. Ainda que não por sua escolha. Ao contrário dos cristãos, os  hindus nunca se mobilizaram para estudar a religião do profeta. Os reinos dhármicos lutavam militarmente e politicamente, como o fizeram os cruzados cristãos, mas suas elites intelectuais e espirituais nunca quiseram investigar as motivações teológicas e ideológicas da nova religião. No auge das invasões muçulmanas no sul da Ìndia, os textos contemplativos e os debates vedânticos, que estavam sendo produzidos copiosamente, jamais os mencionam em nada, era como se a coisa toda não existisse.

Os hindus, engajados em sofisticados debates sobre a natureza última do Brahman, mantinham suas tecnologias de yoga e ciência interna, mas jamais entenderam o Deus muçulmano, que tinha, literalmente, traços de ciúmes, buscava soberania, apontava escolhidos para missões especiais, proclamava guerras, destruía templos, e os convertia em zimmîs. Swarup diz que muitas questões, que nunca foram nem mesmo perguntadas, ainda hoje são importantes, e devem ser feitas:
"O Allah do Corão é um ser espiritual? Ou é um tipo de formação vital e mental, um ideia hegemônica? Ele é a verdade mais profunda do homem, que reside em seu ser interior? Ou é uma projeção de uma fonte menos edificante da psique humana? Ele é descoberto quando o coração do homem está tranquilo, sem desejos e puro? Ou ele se origina em um estado mental febril? Sua fonte é o samâdhi e o yoga-bhûmi, ou algum transe não-yóguico? Qual é a verdade do profetismo que afirma que Deus pode ser conhecido somente indiretamente através de um intermediário favorito, um 'Filho Único' ou um 'Último Profeta'?
Essas e outras questões, diz o autor, pedem uma elucidação dentro da espiritualidade Hindu, contudo os sábios hindus permanecem silenciosos.
"Será que os sábios hindus foram tomados de tamas e portanto dominados pela preguiça? Ou será que eles habitam uma região além dos temporais dos credos passageiros e das modas ideológicas? Será que estão em um estado que espera as legiões tonitruantes passarem e mergulha em contemplação profunda das verdades eternas novamente?  Ou será que o silêncio é apenas aparente e contém já uma verdade profunda para os olhos que podem ver e os ouvidos que podem ouvir?  A espiritualidade indiana não discutiu, debateu ou se opôs. Mas será que ela não ofereceu uma resposta completa?"
A espiritualidade hindu proclamou que o Supremo está além dos números e da contagem.  Que ela teve inúmeras manifestações que não se repeliam mutuamente no campo espiritual, mas buscavam incluir e reconhecer-se dentro de uma perspectiva abrangente.  Uma espiritualidade que está no coração do devoto e não em povos escolhidos, profecias exclusivas, igrejas privilegiadas, fraternidades ou ummahs. 

Swarup observa que, na verdade, credos como o Cristianismo e o Islam eram inclusive aguardados pelos sábios hindus. Religiões exteriores tinham de surgir na chamada Kali-Yuga. E talvez muito da falta de reação se deva a essa aceitação da realidade (e talvez a expectativa de que essas religiões passem naturalmente). Seu livro, como falei na primeira postagem, busca um caminho diferente do mero silêncio tradicional dos espiritualistas hindus verdadeiros. Propõe, de certa forma, um novo universalismo (o que seria seguido por outros pensadores hindus e tem outros proponentes na atualidade) e observa que,
"Algo inevitável está ocorrendo. O Oriente está acordando de seu sono. A sabedoria do Hinduísmo, Budismo, Taoismo e Confucionismo estão se tornando conhecidas no mundo. [...] reivindicações de  'última profecia' ou 'filho único', até agora impostas por grande condicionamento intelectual, amedrontamento, porrete, estão se tornando inaceitáveis. Mais e mais homens estão buscando experiência autêntica. Uma crença emprestada não serve mais. As pessoas estão deixando de ser crentes obedientes e estão se tornando buscadores. Eles não querem mais serem ovelhas de um terceiro, agora que eles sabem que podem ser seus próprios pastores. Uma autoridade externa, ainda quando é chamada de Deus em algumas escrituras, alternando entre ameaça e promessa, está cada vez menos causando impressão; as pessoas agora percebem que a Divindade é sua condição verdadeira, secreta e que eles buscam dentro de seu próprio ser. Tudo isso é consoante com a sabedoria Oriental."
Nas próximas postagens vamos ver como o autor compara as tradições orientais e ocidentais, como é possível um universalismo sem a narrativa universalista ocidental.

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Friday, April 20, 2018

Ram Swarup e a visão hindu do Ocidente (parte 1)

Parece que  não há nada em português sobre ele e sobre vários pensadores indianos, então vale a pena fazer algumas apresentações aqui no blog.

Ram Swarup Agarwal nasceu em 1920 no estado de Haryana na Índia e faleceu em 1998.  Tomou parte no Movimento Indiano de Independência e teve uma biografia pouco sobressaliente do ponto de vista mundano, nunca se casou e nunca se envolveu com negócios, sendo um praticante regular de Yoga e escritor. Foi um crítico pioneiro do missionarismo cristão, do islamismo, bem como do capitalismo e do comunismo. Suas críticas ao comunismo em especial mereceram reconhecimento de pensadores ocidentais. Um pouco mais de sua biografia pode ser conferida no link abaixo, em inglês,  pelo orientalista belga Koenraad Elst:

Ram Swarup (1920-98): outline of a biography

Ram Swarup é original, pois é o primeiro pensador vigoroso, com intuição yóguica, de origem indiana, que se dedica a olhar para Ocidente e para o fenômeno moderno criticando-o e usando uma linguagem aceitável e acessível para os ocidentais.

Mas façamos uma breve digressão para ilustrar com dois exemplos a questão da visão ocidental dos hindus, e a reação hindu ao Ocidente.

Alberuni, historiador iraniano muçulmano do século X, em seu clássico sobre a Índia, relata que os hindus acreditavam que:
"Não há outra nação além da sua própria, não há outra raça humana que não a sua, e os outros seres criados carecem de qualquer ciência. Sua soberta é tal que, se alguém contar-lhes que há ciência também no Corasão ou na Pérsia, eles o chamarão de ignorante e mentiroso". 
O persa cita um brâmane, chamado Varahamira, que abre uma exceção ao afirmar que
Os gregos, ainda que impuros, merecem ser honrados, pois eles são treinados nas ciências, e portanto são superiores aos outros"
Outro testemunho de um relato ainda mais antigo: a biografia do místico Apolônio de Tiana, contemporâneo de Jesus, e em muitos pontos semelhante ao galileu, foi escrita pelo grego Filostrato no século III, e nela, temos a narrativa da viagem do notável místico por todo o Oriente Médio para se encontrar com os brâmanes na Índia; diz Filostrato:
"O próprio Apolônio descreve o caráter desses sábios e de sua habitação nas montanhas; em um de seus discursos aos Egípcios ele diz, 'Eu vi os brâmanes da Índia vivendo no mundo, sem pertencer a ele, fortificados sem fortificação, sem nada possuir, contudo possuindo a riqueza de todos os homens.'"
E ainda:
"Ele (Apolônio) fez outra pergunta, questionando quem eles consideravam ser; ao que ele (o brâmane) respondeu 'Nós consideramos que somos Deuses.'"
Mas voltemos ao Ram Swarup e à modernidade.

Tudo me leva a crer, conhecendo algo dos modos de pensamento dos antigos, que a atitude que parecia arrogância aos olhos de Alberuni (que, convenhamos, representava o invasor, então não é de espantar que não o abraçassem e acolhessem) -- ou seja, a atitude de dizer que muçulmanos (e depois cristãos, capitalistas e comunistas) não possuíam ciência, se dá principalmente porque entre os referidos brâmanes a ciência suprema era a jñâna, como talvez tenha percebido Apolônio de Tyana. E, de fato, não há muitas indicações de que os invasores tivessem tal ciência, como observava também no início do século XX o francês René Guénon ao comparar as civilizações.

Contudo, a omissão por parte dos orientais custou e custa muito caro. Os hindus, que possuíam uma das maiores culturas dialéticas do pensamento humano, onde diversos pontos de vista eram discutidos segundo as regras do chamado tarka-shastra, se recusaram, talvez subestimando muçulmanos e cristãos, a olhá-los de frente intelectualmente ou levá-los a sério. 

O seu livro "Hindu View of Christianity and Islam", que será resenhado criticamente na sequência de postagens futuras, surge como talvez uma incipiente reparação desse erro.

O livro foi escrito na fase madura do autor, após afastamento das questões políticas e emergenciais da cultura e independência indiana. O livro não consegue, e não pode, esconder a ferida civilizacional causada pela colonização de quase um milênio, por meio de armas, da Companhia das Índias Orientais, e por últimos da ideologias e da colonização intelectual vinda da academia ocidental. Contudo, a essência do livro está longe de ser mera reação: é um livro firme, de autodefesa, com pontos relevantes para entender o Ocidente e o Oriente para além dos véus do orientalismo.

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