Wednesday, June 5, 2019

Os precedentes materialistas do Budismo segundo Dasgupta

Discordo dos pressupostos de Dasgupta em seu clássico História da Filosofia Indiana, e tendo a seguir a linha exposta na postagem anterior, do autor caxemire J.C. Chatterji. Contudo, para nós ocidentais, a obra de Dasgupta segue sendo incontornável fonte no estudo formal e acadêmico dos temas, pela sua abrangência e síntese de muita informação de difícil acesso. Acabei de ler um trecho sobre o "Estado da Filosofia na Índia antes do Buda" e acho que vale a pena colocar aqui no blog algumas notas.

O erudito bengali, ao tentar dar os precedentes dialéticos do surgimento do Budismo encontra três polos de influência: o primeiro deles é o upanishádico, o segundo é o materialista, e o terceiro é o ritualista. O polo mais curioso, na minha opinião, é o dos materialistas; vale a pena dar uma olhada no pensamento geral dessas escolas, sempre evitando reduzi-los ao materialismo ocidental, como veremos.

Segundo Dasgupta, nos próprios escritos upanishádicos há registros das diferentes escolas materialistas, e por meio desses registros ficamos sabendo que
"a origem do mundo e seus processos era algumas vezes discutida, e alguns pensavam que o 'tempo' era a causa última de todas a coisas; outros que tudo havia surgido por sua própria natureza (svabhava); outros que tudo tinha aparecido de acordo com o destino inexorável, ou o concurso fortuito de acontecimentos acidentais, ou por meio de combinações materiais, em geral"
O nome cārvāka, como explica Dasgupta, provavelmente veio do verbo "carv" que significa comer. Parece que os adeptos dessas escolas de pensamento rejeitavam responsabilidades e atividades religiosas ou morais de qualquer tipo, exceto as de comer.

Desde um ponto de vista filosófico, no horizonte do tarka-śastra, o nome mais apropriado talvez seria o de ahetuvādin-s: pensadores que negavam a possibilidade de conexão universal entre premissa e termo médio (hetu), implicando que é impossível o conhecimento inferencial seguro.

Segundo esses pensadores, uma inferência do tipo "onde há fumaça, há fogo" não é segura, pois não se conhecem todos os upādhi-s (atributos acidentais). Alguma condição sub-reptícia, responsável ou corresponsável pela fumaça, poderia estar sempre presente no fogo e não ser notada, ou talvez algum fato absolutamente aleatório poderia intervir. Nada indica que haja uma conexão necessária no passado, presente e futuro.

É de se esperar que os cārvāka-s tivessem como base fundacional um texto em formato de sūtra, como ocorre com as demais escolas; contudo esses sutras nunca foram encontrados, e infere-se sua existência a partir de referências indiretas. Os cārvāka são mencionados, em algumas obras centrais, entre elas o Nyāya-Mañjarī de Jayanta Bhaṭṭa e no Sarva-darśana-saṅgraha de Mādhavācārya.

Consolidou-se na literatura indiana posterior a visão de que esses pensadores se dividiam entre dhūrtta-cārvāka-s e suśikṣita-cārvāka-s. Os primeiros acreditavam que todas as realidades derivavam da combinação dos 4 elementos: terra, água, fogo e ar. O corpo e a consciência eram resultantes de combinação dos átomos desses elementos apenas, e não havia alma ou entidade subsistente. Os segundos acreditavam na existência de uma alma ou matéria sutil, porém, ela era destruída com a destruição do corpo material.

Além dessas duas correntes, que dialetizavam com as tradições bramânicas, Dasgupta nos lembra da existência de outras vertentes de "materialismo" que dialogavam, por assim dizer, mais com as tradições shramânicas, como, por exemplo, os Ājīvika-s, liderados por Makkhali Gosala, "provavelmente um discípulo renegado do santo jainista Mahavira e contemporâneo do Buda". Parece que essa seita propunha um determinismo absoluto, e negava qualquer responsabilidade moral pelo bem ou pelo mal. A essência do ensinamento dos Ājīvika era o seguinte: 
"não há causa próxima ou remota para a impureza ou pureza dos seres. Eles se tornam tais sem nenhuma causa. Nada depende nem de esforços próprios, nem de esforços alheios, e não há algo como poder, energia ou esforço humano. As condições variáveis se dão somente pelo destino, pelo ambiente e pela natureza própria de cada coisa.
Outro nome que se destaca na mesma tendência é o de Ajita Kesakambali, que também defendia que não há fruto ou resultado das ações boas ou más; não há outro mundo, nem mesmo esse mundo pode ser considerado real: nada pode impedir a morte, que é o fim de todos nós. 

Dasgupta acredita que: a tradição baseada em rituais, que buscava favorecer os deuses para assegurar a felicidade após a morte; o pensamento que encontrava no ātman a iluminação e o fim do ciclo do saṃsāra; e o pensamento dito materialista, ou talvez niilista, prepararam o solo para o surgimento intelectual do Budismo na Índia. 
"Se o Ser dos Upanishades, o superlativo imóvel, era a única realidade; como poderia oferecer escopo para novas especulações, uma vez que já havia descartado todas as outras matérias de interesse? Se tudo ocorria pelo concurso irracional e fortuito das circunstâncias, a razão não poderia proceder na direção de criar qualquer filosofia a partir do irracional. A força mágica da prestidigitação da feitiçaria ou dos sacrifícios tinham pouco para incitar o desenvolvimento filosófico."
Como eu disse ao começo, discordo do autor. Dasgupta tem alguns pressupostos sobre História da Filosofia, talvez um tanto hegelianos, como a perspectiva de que o Budismo surge como síntese racional ou espiritual para uma tensão primitiva, encapsulada, de diferentes tendências. A Filosofia ou a Razão assim, vão sendo construídas ou achando seu caminho no meio dessas tensões incorporando novos "momentos" ou figuras históricas. 

Caberia perguntar: para onde vai o motor? Em direção a que fim racional? Vai necessariamente em direção ao mundo moderno e o progresso humano atual?

Como todo o respeito que se possa ter pelo trabalho notável de Dasgupta, ouso dizer que ele não faz parte da mesma mentalidade que coloca, por exemplo, o ṛṣi Bṛhaspati como fundador primordial, arquetípico de um ponto de vista, sob o mesmo título dos ṛṣi-s Gautama ou Kapila. A mentalidade védica busca incluir pontos de vistas segundo princípios transcendentais e não segundo sua produção histórica.

Um último ponto: a doutrina dos elementos, segundo a perspectiva tradicional, é inseparável da epistemologia sensorial, da constituição do universo e da estrutura do ser humano. Então os materialistas hindus estão bem longe dos ocidentais. Na perspectiva indiana, cada elemento é responsável por uma "qualia" mínima, ou seja, uma faixa ontológica e epistemológica, representada analogicamente no corpo humano por um dos sentidos. Não se trata, portanto, de um matéria extensa sem qualidade ou relacionada com pura exterioridade: o fogo, por exemplo, está diretamente relacionamento o surgimento da "forma" e da "figura", bem como do calor enquanto possibilidades ontológicas apreendidas pelo tato, visão etc.

---

*Trechos citados foram traduzidos por mim. Estão no capítulo 5 do História da Filosofia Indiana de Surendranath Dasgupta.