Saturday, December 30, 2017

Escandalizando culpados e inocentes

[Jacob Jordaens, 1642] 
Quero ler Luciano de Samosata, mas terá de ser bem no futuro. Pelo que vi, ele, além de ter ficado famoso por ter dito que cristãos seguiam um 'sofista crucificado', escreveu inúmeros diálogos filosófico-satíricos que mantêm uma relação temática e estrutural muito próxima com as farsas e autos medievais, sendo a provável inspiração destas. Nos diálogos do retórico siríaco, que escrevia em grego mesmo vivendo sob o Império Romano, aparece não raro o filósofo cínico como personagem fundamental. Muitos dos diálogos têm sátiras à religião popular, denúncias da hipocrisia dos costumes e da busca desenfreada pela riqueza, poder e fama. E isso me traz de novo ao cinismo.

O filósofo cínico, desvelador da hipocrisia, e que conseguiríamos até ajeitar dentro do arquétipo junguiano do tolo, é marcado nitidamente pela imagem de Diógenes com uma lâmpada acesa em pleno o dia buscando um 'ser humano' no meio da multidão. A imagem (que encabeça nossa postagem) desvela também que, de certa forma, o cínico tem uma espécie de sacerdócio ou missão ao mesmo tempo escandalosa, inevitável e quiçá necessária. 

Epiteto, o famoso estoico  (e há uma estreita relação entre os dois movimentos), simpatizava com o cinismo, e alguns dizem que era um cínico moderado. Consultado por um discípulo sobre como tornar-se um seguidor de Diógenes, afirmou que 'levar a cabo tão grande empreendimento sem Deus' é tornar-se 'odioso aos olhos de Deus'. Dizia o estoico ex-escravo que quem optasse pelo cinismo deveria eliminar em si toda autopiedade, luxúria, desejo de reconhecimento e deveria tornar-se, por fim, um cidadão cósmico, não amparado pela privacidade das paredes das casas, e nem mesmo pela privacidade confortável das roupas. O cínico rompe, diretamente, de forma brutal e escandalosa, com as paredes até mesmo da pólis e, por conseguinte, com a noção peripatética de 'animal político'.

O Bhagavad Gîtâ, infalível manual espiritual, diz que o sábio não deve perturbar as pessoas. A  mesma recomendação é dada por Jesus, em outro contexto, ao pedir que os inocentes não sejam escandalizados, e talvez ainda num sentido mais especial, os pitagoristas, como é registrado nos Versos Áureos, se dispunham a seguir estritamente a lei e a ordem social e os costumes, e por conseguinte a religião, de onde estivessem. O 'chamado' do cínico, por outro lado, vem de uma dimensão espiritual que permanece selvagem: existe e se sustenta fora da fundação da civilização e constantemente escandaliza a sabedoria constituída pelas instituições, em geral engessadas.

As memórias hindus contam que Shiva é o fundador da tradição marginal que segue sempre paralela às tradições mais domesticadas como a tradição de Vishnu e do Prajapati. Assim, a casa tradicional de Daksha, brâmane por excelência e descendente direto do Demiurgo de quatro cabeças não poderia aceitar Shiva, um yogue obscuro. Contudo, Sati, a filha do brâmane, acha de se apaixonar justo por Shiva, e, para ganhá-lo como esposo, a moça de família tradicional, teve de virar uma asceta, abandonando a sociedade e o luxo, jejuando e passando por inúmeros sofrimentos até que o Mahadeva fosse persuadido a aceitá-la como esposa, reconhecendo suas motivações sinceras. O conflito legendário se instaurou de forma aguda, pois Daksha não aceitava, e impedia, que sua filha buscasse um noivo fora do sistema de castas e da tradição. Por fim, Sati se imola no fogo, atraindo sobre seu pai a ira de Bhairava (o mesmo que teria encontrado Shankârâcharya na figura de um chandâla no episódio da postagem anterior). A ira do Deus de três olhos diante da imolação de Sati tornou-se memória muito importante para a fundação de várias vias espirituais na Índia.

Vimos que Peregrino, o cínico, também se imolou na pira olímpica. E vemos inegáveis conexões entre as tradições shramânicas, xátrias, rebeldes, tão diferentes entre si quanto os ajîvitas, pâshupatas, jainas e budistas, que para os gregos eram todos 'gimnosofistas', e as escolas filosóficas marginais que surgiram na Grécia adotando práticas como vegetarianismo, nudismo, ascetismo rigoroso e cosmopolitismo (e o nomadismo, de certa forma). E para lançar mais suspeitas de uma possível conexão, basta lembrar aqui a mítica viagem do pitagórico Apolônio de Tiana à Índia para conhecer os segredos esotéricos dos brâmanes, que, dizem, se tornavam deuses.

Em postagem anterior mencionei a impressão que me causam os encontros entre os homens (notáveis) da pólis, que moram sob um teto, e os cosmopolitas, que vivem sob a estrelas. Há inúmeros registros desse antagonismo arquetípico, indo desde o encontro entre Alexandre e Diógenes, até a situações em que o mesmo antagonismo se dá entre dois homens que vivem ambos sob as estrelas como o caso de Demonax, que é muito amigo dos homens, e Peregrino, que nem humano é. Testemunhos jainas narram também, em outro contexto, as interações entre Mahavîra e Goshala (representado às vezes como louco, mago negro e criminoso sem escrúpulos), e por que evitar citar até mesmo a óbvia referência de Abel e Caim?

Se os registros, precários, dizem que os cínicos vêm do ordenamento de Apolo, arriscamos, pela nossa intuição visceral perfeitamente infundada cientificamente, a ir contra essa informação. De fato, Apolo pode ter ordenado a linhagem de seus irmãos mais modestos e sociáveis, os estoicos, cosmopolitas mas não 'antipolistas', mas os cínicos se apresentam muito mais como representantes de Dionísio -- mas longe de mim a pretensão de amarrar aqui nesse blog o assunto ou colocá-lo dentro de antinomias invencíveis, apenas divago e sugiro.

O cínico quer dizer, a seu modo, que, se por um lado não se deve escandalizar os inocentes (ai daquele pelo qual o escândalo vem!), é preciso sim escandalizar constantemente os 'culpados'. E nesse sentido, assim como ocorreu com os descendentes de Caim, os causadores do escândalo dispõem, e fazem bom ou mau uso, de um tipo de 'passaporte especial' (marca na testa?), que impede que eles sejam descartados completamente ou submetidos pela pisada altiva dos chamados sábios, no sentido mais institucional. E o que é a 'liberdade de expressão', institucionalizada nas nossas democracias modernas, se não uma homenagem póstuma (ou talvez tentativa de domesticação póstuma, se tal houver) desse movimento, e um reconhecimento indireto da salutar presença dos discordantes e escandalosos na civilização?

Thursday, December 28, 2017

As doutrinas de renascimento, conclusões (parte I)

Depois de ter apresentado as várias posições sobre o tema do renascimento, chego aqui à conclusão, que será dividida em duas partes.

A primeira coisa importante a se notar é que a discussão tradicional vedântica sobre a distinção entre Âtman e Brahman não entra na discussão do renascimento (punarjanman), pois se dá em outro nível; o importante é que, qualquer que seja o caso, o Âtman, segundo o Veda, nem nasce, nem renasce, mas permanece impassível e inafetado pelo ciclo do sâmsara (como explica a narrativa dos dois pássaros dos Upanishades).

Por outro lado, o jîvâtman, que é o transmigrante, de fato se compõe (de alguma maneira) com o corpo físico (que empiricamente morre) e migra após a morte física,  mantendo algum tipo unidade ou envoltório sutil constituído de elementos sutis, da mente, das virtudes e vícios, e do 'corpo de sensações' . 

É esse envoltório, chamado lînga-sharira, que vai até a Esfera da Lua, ou desce aos infernos, e que se manifesta novamente em novos corpos físicos. Na Via dos Ancestrais, esse jîvâtman, como vimos, passa por um transformação guiada pelas devatâs e segue as ordens e interesses dessas divindades nas esferas cósmicas infernais, terrestres e celestes. 

Também vimos que a natureza dessas transformações não é matéria de lógica, nem de filosofia profana, e sua natureza não é de amplo conhecimento. Sabemos que os âchâryas vedânticos costumam explicar essa doutrina de forma literal às pessoas, com fins de aplicação ética e social, e vimos que há também meditações esotéricas sobre o tema e que só podem ser compreendidas pela proficiência em um determinado vidyâ.

Acrescentamos que existem outras doutrinas parecidas nas escrituras, que não se referem ao renascimento, como as doutrinas de avatares, ou coisas assim, que são colocadas nas escrituras na figura de divindades, e não deveriam ser confundidas com o renascimento.

A questão doutrinal mais complexa que se coloca, dentro das doutrinas védicas é sobre a relação entre o jîvâtman e o lînga-sharira. 

Os sâmkhyas defendem que o linga-sharîra é somente a  Prakrti, o que leva a entender que se trata de um veículo inconsciente que muda de lugar e de plano mantendo uma unidade. Segundo essa perspectiva, o Purusha não transmigra, o que, no fim das contas cria dificuldade para sua tese da multiplicidade de Purushas, pois se há um vínculo particular entre os múltiplos Purushas e os múltiplos linga-sharîras, de que maneira os Purushas efetuam essa influência particular dentro da Prakriti? 

Os vedânticos advaitinos, se fossemos continuar usando a linguagem do sâmkhyas, usam uma espécie de bilogismo (cosmológico e metafísico) que indica basicamente a seguinte solução: enquanto o Purusha se identificar com a Prakriti (através de um modo de conhecimento parcial) ele vai ser aparentemente múltiplo e renascer; quando o purusha se identificar (através de um conhecimento correto) com o purushottama (Homem Supremo), a Prakrti termina sua dança e é como se nunca tivesse existido, e assim também termina a multiplicidade dos Purushas e seus renascimentos.

A resposta sobre se "o homem" renasce ou não, para cosmologistas (nyaya-vaisheshika), a resposta é sim, pois o o Jivâtmâ permanece coeso; para  os sâmkhyas seria - não, pois tudo o que renasce é o cosmos ou a Prakrti e seus processos, o Purusha, o homem verdadeiro, permanece solitário na intelecção de si mesmo; para os vedânticos advaitinos seria, sim e não, pois o renascimento é mero estado cognitivo; os dvaitinos, em seu ponto de vista realista diriam também, seguindo os cosmologistas, que sim, o homem renasce pois todas essas realidades, inclusive as cosmológicas ou a prakrti inferior são criadas por Deus e experimentadas realmente (e não ilusoriamente) pelo jîvâtman (contudo, mesmo entre estes, dá para dizer, em algum sentido, que o verdadeiro homem permanece sempre destacado disso tudo).

Tendo em vista esses pontos, resumamos então o ponto de vista dos perenialistas seguidos por breve comentário.

a) Julius Evola

Evola não concorda com Guénon em que as doutrinas reencarnacionistas nunca foram ensinadas tradicionalmente; ele diz que, ao contrário, as doutrinas apresentadas por espíritas e teósofos eram de fato ensinadas por muitos povos antigos, contudo, eram doutrinas exotéricas. Diz ele que a presença disso é mais marcante na doutrina vedântica tardia do que no budismo (que para Evola, oferece uma alternativa mais heroica ao homem contemporâneo). 

Evola diz que a doutrina recorrente nos povos antigos, é a de que o homem têm um duplo astral (chamado de daimon). Esse daimon estaria ligado ás forças da vida, ao sopro vital e ao 'totem' ou à ancestralidade e seria, assim, a 'força procriativa' de um clã (daí o retorno ao mundo dos ancestrais), e que desfruta de certa forma de imortalidade ou recorrência. Evola diz que essas doutrinas dizem respeito ao homem ligado à natureza ou à terra, e nada têm a ver com o homem espiritual., que busca o caminho solar e imortalidade verdadeira.

Comentário: a posição do pensador italiano parece ser bem lúcida e razoável. Tirando sua especulações históricas sobre a evolução das doutrinas, de fato, daria para dizer, ainda que isso não seja dito dessa forma pela ortodoxia hindu, que a ida à Esfera da Lua e o encontro com os pitrs é um ciclo de ancestralidade, mantido por uma identidade ritual, e é uma certa forma de imortalidade. Poderíamos também dizer que nada disso tem a ver com o homem espiritual e que são 'tecnologias' totêmicas ligadas ao culto da Terra. Vemos que entre os védicos em geral procura-se desenvolver uma atitude de  'terror cósmico' ao samsâra e não incentivá-lo em qualquer sentido. Em algum momento talvez os ritualistas possam ter se focado em ir ao chandraloka e viver lá, contudo, essa atitude é bastante criticada pelos textos védicos, e tanto a devoção ao Supremo como a gnose visam se libertar desse ciclo. 

b) Frithjof Schuon

Schuon diz que a reencarnação está de fato presente em alguns doutrinas tradicionais, discordando de Guénon, contudo, diz que são aproximações mais ou menos simbólicas e não devem ser tomadas literalmente. Ele diz, de forma semelhante a Evola, que a necessidade de abordar a questão se dá mais pela degeneração da consciência dos homens atuais e a perda da consciência simbólica. Chega a dizer que alguns santos das tradições, que interpretam literalmente e não simbolicamente esses ensinamentos, o fazem porque carecem de conhecimento metafísico. Tenta reconciliar os ensinamentos das tradições semíticas e orientais sobre o tema, dizendo que as tradições semíticas, uma vez que seu surgimento é mais recente, têm um horizonte de visão mais focado na condição humana. Schuon contempla cinco destinos post-mortem: o paraíso, o limbo ou lótus, o purgatório, o limbo-transmigração e o inferno. As três primeiras saída mantêm o estado humano, a quarta faz sair dele; a quinta o mantêm para finalmente fazer sair dele.

Comentário: as doutrinas do suíço são boas, fornecem bastante material de reflexão e inclusive vias de diálogo interreligioso, contudo têm um compromisso implícito muito difícil que é o de reconciliar as diferenças doutrinárias de diversas tradições espirituais, o que, apesar da habilidade inegável do autor, acaba convertendo-se numa posição insustentável. E se ele traz de fato alguns insights interessantes, suas conciliações e seu esforço para manter a tese da Unidade Transcendente das Religiões, às vezes criam alguns outros problemas e aporias, como por exemplo, a de ir contra santos e autoridades de algumas tradições e pretender possuir uma meta-revelação espiritual. Ademais, parece que Schuon não faz distinção entre intuição intelectual e revelação sagrada, mas esse é outro tema.

c) Ânanda Kumârasvâmî


Ananda aceita em geral a perspectiva guenoniana, mas acrescenta e cita repetidas vezes que 'o único transmigrante é Îshvara', e que a renascimento, no sentido de retorno de indivíduos para uma encarnação como ser humano, não é uma doutrina hindu e alega inclusive que Shankarâchârya deixa isso bem claro. Utiliza alguma citações para comprovar sua tese. 

Em artigo sobre os ciclos cósmicos, ele apresenta a tese de que a subida até a Esfera da Lua é uma processão entre dois estados diferentes de ser (doutrina guenoniana), e que o que se considera reencarnação em alguns casos é da herança transmigrantes dos seres ancestrais que vão gerar o novo ciclo cósmico. 

Comentário: após estudar o tema não posso evitar de dizer que Kumârasvâmî é desonesto em sua abordagem. Não se trata apenas de defender seu ponto de vista de que há uma contemplação mais esotérica do tema, mas de distorcer informações. Sustentando essa posição, ele inclusive fez inimizades com autoridades hindus que o admiravam por outros trabalhos.

A frase que ele usa reiteradamente, à maneira de um slogan persuasivo, de que Îshvara é o único transmigrante, é retirada do comentário de Shankarâchârya ao Brahma-Sûtra (I.I.5) quando o âchârya refuta a tese dos sâmkhyas de que a Prakrti (Matéria Prima) é responsável pela criação dos mundos. Shânkarâchârya diz que, sendo inconsciente e carecendo de inteligência, a Prakrti não pode gerar todos esses mundos, e eis que, no fim das contas, no que diz respeito a esse aspecto, ou seja o da inteligência, 'não há jîvâtmans diferentes de Îshvâra' pois 'não há outro que veja senão Ele, não há outro conhecedor, senão Ele'. 

Ora, a desonestidade de Kumârasvâmî é pegar essa frase isolada, como se fosse uma frase central e essencial, e usá-la em sentido primário, quando é uma frase dada em sentido metafórico ou secundário, pois como é que Îshvâra iria transmigrar para algum outro estado se ele é o Senhor de todos os estados? 

Assim, quando se atribui a propriedade de transmigrante a Îshvara, o que se faz é transferir, poeticamente, uma propriedade da jîvâ a Îshvara para indicar que, em essência, no que diz respeito ao aspecto de Inteligência, a jîvâ é Îsvara; contudo, isso não implica, para qualquer observador imparcial,  que Îsvara seja a jîva (pois como diria o Gîtâ, o Senhor está na criatura, mas não o inverso). 

E inclusive a posição contrária é possível e poderia ser amplamente embasada: a de que Îshvara é o único que, afinal, não transmigra. No próprio trecho Îshvara é comparado ao espaço ou vazio em relação a um pote de barro, ou seja, a transmigração é do pote ou do espaço? Quando duas posições contrárias são simultaneamente aceitas em um contexto é óbvio que não se trata de demonstração. Kumârasvâmî passou a usar esse sofisma em diversos escritos, e em inúmeras correspondências, o que é francamente decepcionante vindo de um erudito.

d) René Guénon

O metafísico francês diz que a reincarnação nunca foi ensinada em nenhuma doutrina tradicional, e que quando definida, como o é pelos espíritas,  como a passagem do 'Ser real' repetidas vezes pelo mesmo estado é uma impossibilidade metafísica. Ele entende que o pitriyâna é um uma transmigração por diferentes estados de Ser (segundo sua doutrina dos Estados Múltiplos do Ser) e que o retorno do Ser a uma forma individual não é um retorno a uma vida humana como a conhecemos, mas só pode se dar em outro ciclo cósmico. O ciclos cósmicos são, assim, diferentes estados de Ser e a sucessão entre diferentes ciclos é apenas lógica. 

Comentário: o francês tem uma teoria interessante, complexa e bem elaborada em seu Homem e Seu Devir Segundo o Vedânta, contudo deveria tê-la apresentado também a título de elaboração pessoal, e não como demonstração more geometrico ou revelação sagrada e impessoal.

Há pontos ali, como as articulações entre renascimento e ciclos cósmicos que são soluções originais para questões propostas no Veda e que fazem sentido sim, merecem comentários e reflexão, contudo, não é legítimo dizer que sejam soluções adotadas por âchâryas hindus, pela revelação védica, ou mesmo que sejam colocadas daquela forma na tradição hindu.

Ora, a reincarnação, de forma literal, foi sim ensinada em doutrinas tradicionais, no sentido seguinte: há uma alma (pneuma, anima ou sopro vital) que se destaca (de alguma maneira) do corpo físico, mantém sua unidade separada do corpo físico, e depois retorna (de alguma maneira) a outro corpo, e ele provavelmente não desconhecia isso; ele poderia ter alegado, com o faz Evola e Schuon, que se trata de doutrina simbólica ou exotérica, contudo apenas descarta todo o assunto de forma absolutamente contrária aos fatos. 

Marco Palllis em correspondência chega a dizer:
"(reencarnação] é uma palavra infeliz, usada com frequência, porque quase inevitavelmente invoca a imagem de uma nascimento humano no nosso mundo familiar. O que nem Guénon ou seus críticos abordam com suficiente clareza é que o samsara, a transmigração, o ciclo existencial de nascimento e morte como apresentado pelo Hinduísmo e pelo Budismo (nos quais é uma doutrina básica) é antes de mais nada 'indefinido'; o que quer que a imaginação popular possa inserir nessa ideia, é contrário ao seu significado real tentar definir a forma particular em que o 'renascimento' vai ocorrer para tal o qual ser — a classificação tradicional dos seres dentre esferas celestiais, infernais e humanas ou animais etc. é evidentemente esquemática e simbólica e não viola a condição acima de qualquer forma capciosa. Somente outra coisa precisa ser colocada sobre o samsara (e aqui Guénon estava certo), ou seja, que o caráter ilimitado da Possibilidade Total exclui a repetição; nenhum ser ou coisa pode retraçar a existência de outra num sentido de identidade real, seja mesmo por um momento. o caráter de único da criação se aplica atè às menores características ou componentes dos seres implicados.
E ainda:
"A apresentação guenoniana dos 'Estados Múltiplos do Ser' é uma versão estática da mesma verdade que o 'samsara' tradicionalmente expressa de modo dinâmico. O esquema de Guénon dos graus de realidade é iluminador, contanto que não seja transformado em um sistema em detrimento da indefinitude do samsara e seus conteúdos. Pareceria, contudo, que Guénon, apesar das advertências que fazia aos outros, sistematizou seus próprios pontos de vista sobre o tema; daí sua afirmação de que, entre os hindus, a frequente referência ao renascimento em forma humana é conscientemente intencionada para uma leitura somente simbólica, e que é a incompreensão ocidental, notavelmente da parte dos teósofos, que é exclusivamente responsável  pela fraseologia reencarnacionista. Tendo tido bastante contato com lamas e brâmanes em seus respectivos países, eu só posso dizer que essa afirmação não se mantém.
Sobre a demonstração lógica do Guénon, que já cheguei a endossar, após estudar mais de metafísica, posso dizer que, caberia comentário mais elaborado e técnico sobre suas doutrinas, o que talvez eu faça depois, contudo é preciso dizer aqui que, se de fato é possível demonstrar a impossibilidade absoluta repetição de uma determinada condição particular,  não é possível demonstrar apoditicamente, como quer Guénon, a impossibilidade de qualquer repetição em absoluto, pois a repetição, entendida na categoria metafísica de relação, refere-se, obviamente, e algo que tem consistência ontológica, e é o próprio fundamento, em certo sentido, da relação vertical entre forma e matéria, que dá origem, segundo certa perspectiva metafísica (diferente da de Guénon) ao indivíduo, que é, também, repetição de ideia com matéria diferente. Assim também, se é possível demonstrar que não há um círculo fechado de modo absoluto, não é coerente dizer que nenhum círculo nunca se fecha.

Ademais, as doutrinas que podem ser postas dialeticamente podem ser debatidas dialeticamente, e se Guénon se arrogava a posse de doutrina irrefutável, ele deveria entender que sua pretensão ou postura não foi compartilhada por nenhum dos mestres esotéricos registrados na história, que entendiam que o campo dialético e lógico (e doutrinal) não é sagrado, mas está aberto para a razão discursiva e requer demonstrações e não afetações de superioridade.

Se, por outro lado, Guénon se arrogava autoridade revelada, ou 'não-humana', ele teria de apelar ou para petição de fé alheia ou para o seu 'poder taumaturgo' de endossar, com milagres, o fato de 'falar como quem tem autoridade'. Se suas doutrinas, por outro lado, são evidentes, como ele quer em alguns momentos, só para quem tem 'qualificação iniciática', tais sujeitos, já de posse de um intuição não-discursiva, não obteriam benefício nenhum de doutrinas ou inferências lógicas ou teorias sobre Estados Múltiplos, fazendo melhor talvez, em ler as escrituras tradicionais ou em não ler  nada.

(Leia aqui a última postagem dessa série)

Wednesday, December 27, 2017

O renascimento segundo o Veda (Parte III)

Segundo o Veda, cada uma das leis cósmicas é regida por um devatâ. Isso significa que temos a manifestação empírica de determinada unidade dos fenômenos, e temos uma espécie de lei transcendental, uma noção semelhante, de certa forma, às ideias platônicas; contudo o Veda entende que não são só estruturas inteligíveis, mas inteligências também. Assim, se há uma lei da gravidade, há um devatâ, se há um órgão da visão há uma devatâ do órgão da visão, ou seja, há um princípio inteligente que mantém cada aspecto da manifestação. 

Aqui é preciso remetermo-nos, antes de mais nada, à noção do ciclo anual como reprodução do infinito. O sol representa sûrya-devatâ, e sua visão frontal, além do ciclo terrestre é o caminho da iluminação. Desde o ponto de vista da terra como planeta, e desde o ponto de vista do nosso plano de existência (bhur), temos duas relações com a luminosidade solar, o ciclo completo é a divindade do ano, e há duas aproximações dessa divindade - o curso solar austral, que é a divindade representada pelos seis meses em que o sol, em relação a um observador fixo, 'caminha' em direção ao sul, e o curso solar boreal, em que, para o observador fixo, o sol caminha em direção ao 'norte'.

A divindade do sul é a que rege o caminho chamado pitryâna, krishna-marga, ou 'caminho da fumaça'. Esse caminho não permite a visualização da divindade do ciclo anual, e nem a contemplação direta do sol, portanto é um ciclo que desdobra-se internamente e aqueles que o seguem permanecem sob a iluminação lunar.

Vou citar aqui traduções das três principais escrituras sagradas que tratam do tema.

No Bhagavad Gîta temos o trecho abaixo:
B.G. VIII.23-26. 
Mas em que tempo (kâla) os yogues retornam ou não, depois que morrem, é disso que vou falar Árjuna:  Fogo, luz, dia, a via branca, os seis meses do curso solar boreal, ao partir então, aqueles que conhecem o Brahman, vão para o Brahman. Fumaça, noite, a via negra, os seis meses do curso solar austral, pelo brilho da lua o yogue nasce novamente. Estes são os dois caminhos: luz e escuridão, perpétuos nesse universo.Por um deles não se retorna, pelo outro sim.
É bom insistir que aqui temos de entender que o 'kâla' não é tampouco tempo cronológico em que o indivíduo morre, mas se refere aos auspícios de devatâs relacionado aos tempo. Abhinavagupta em seu comentário ao Gîtâ observa:
"É suficiente dizer aqui que todas as divisões externas de tempo (kâla) pertencem à esfera do tempo interno (âbhyantara kâla). E para entender isso, é preciso praticar yoga."
O Gîtâ cita os seguintes devatas para a via solar, contudo há um número maior e mais detalhado nos Upanishades.

1. Agni devatâ (divindade do fogo)
2. Jyotir devatâ (divindade da luz)
3. Ahar devatâ  (divindade do dia)
4. Shuklapaksha devatâ (divindade do período luminoso da lua)
5. Uttarâyana devata (divindade do curso solar boreal)

Na via lunar o Gîtâ menciona uma divindade a menos:

1. Dhûma devatâ (divindade da fumaça)
2. Râtri devatâ (divindade da noite)
3. Krishnapaksha devatâ (divindade do período obscuro da lua)
4. Dakshinaya devatâ (divindade do curso solar austral)

Só se alcança a divindade do ciclo anual por meio do uttarayana-devata, e é a partir da divindade do ciclo anual que se chega à divindade solar (sûrya-devatâ); da divindade solar, por algum motivo não muito bem conhecido pelos humanos e nem revelado, o yogue que está na via solar retorna ainda à divindade lunar, e a partir da divindade lunar ele recebe a divindade do raio, e por fim, narra-se que algo ainda mais misterioso ocorre: uma 'pessoa não-humana', de vestes douradas, conhecida como 'a pessoa que vive dentro do sol' o carrega para fora do samsâra. 

Quando o yogue (e aqui o título 'yogue' a título de cortesia, explica Adi Shankarâchârya), percorrendo o curso solar austral não consegue atingir a divindade do ciclo anual, ele cai dentro do ciclo sublunar novamente. Aqui há um ponto interessante, pois as escrituras se referem àquele que atingiu a esfera da lua como tendo atingido a imortalidade. O que ocorre de fato, como explica Adi Shankarâchârya, é um 'tipo de imortalidade': a continuação até a dissolução dos elementos.

Segue o trecho completo que trata da via dos ancestrais no Chândogyopanishad:
Ch.Up.V.10.
3. Mas aqueles nas vilas [em oposição aos ascetas], que praticam uma vida de libações e altruísmo, vão para a fumaça, da fumaça eles vão para a noite, da noite para a fase obscura da lua, da fase obscura da lua para os seis meses da trajetória austral solar, mas eles não alcançam a divindade do ciclo anual.
4. Das divindades dos meses da trajetória austral, eles seguem para o mundo dos ancestrais, do mundo dos ancestrais para o éter, do éter para a lua. Essa é o rei Soma. Esse é o alimento dos devas. Os devas o comem.
5. Tendo ali vivido enquanto houver o resíduo de mérito, eles retornam pelo curso pelo qual vieram - [da lua] ao espaço, do espaço para o ar, e após terem se tornado ar, eles se tornam fumaça, e após terem se tornado fumaça, eles se tornam uma névoa. 
6. Após terem se tornado névoa eles se tornam nuvem, após terem se tornado nuvem eles chovem. Daí, renascem como arroz e cevada, ervas e árvores, sésamo e feijões. Assim, a libertação fica muito difícil pois, ele (que retornou) se torna igual àqueles que comem o alimento, e semeiam a semente (masculina).

E o trecho sobre o mesmo tema no Brhadâranyakopanishad:
Bh.Up.V.2.
9. Esse mundo, Gautama, é o fogo sacrificial. O sol é seu combustível, e seus raios são fumaça; o dia é sua chama, os quadrantes são seu carvão, os quadrantes intermediários são as faíscas. Esse fogo é que os devas oferecem a libação. É dessa libação surge Rei Soma.
10. A chuva, Gautama, é o fogo sacrificial. O ciclo anual é seu combustível, as nuvens são sua fumaça, os raios são sua chama, a trovoada são suas faíscas. Nesse fogo os deuses oferecem o rei Soma. E dessa oferta surge a chuva.
11. Esse mundo, em verdade, Gautama, é o fogo sacrificial. A própria é terra é seu combustível, o fogo é a fumaça, a noite é sua chama, a lua é o carvão, as estrelas são faíscas. Nesse fogo os deuses oferecem a chuva. Dessa oferta surge o alimento.
12. O Homem, em verdade, Gautama, é o fogo sacrificial. Sua boca aberta é o combustível, o sopro vital é a fumaça, a fala é a chama, o olho é o carvão, os ouvidos são faíscas. Nesse fogo os devas oferecem alimento. Dessa oferta surge o sêmen.
13. A Mulher, em verdade, Gautama, é o fogo sacrificial. Seu órgão sexual é o combustível; seus cabelos são fumaça, sua vulva é a chama, a penetração é o carvão; o prazer sexual são faíscas; nesse fogo os devas oferecem o sêmen. Dessa oferta O Homem surge, e vive o quanto tem de viver. E então, morre.
14. Eles carregam o homem para ser oferecido no fogo. Esse fogo se torna fogo. O combustível, combustível. A fumaça, fumaça, a chama, chama. As faíscas, faíscas. Nesse fogo os deuses oferecem o homem. Desse oferta, em cores radiantes, o homem surge.
[...]
16. Mas aqueles que por sacrifícios, caridade e austeridade conquistam os mundos, eles alcançam a fumaça (do fogo crematório), passam da fumaça em direção à noite, da noite eles passam para a fase obscura da lua, da parte obscura da lua eles passam para os meses do caminho austral do sol, e desses meses eles chegam ao mundo dos ancestrais, do mundo dos ancestrais vão à Lua e ao chegar á Lua, eles se tornam alimento. [...] eles voltam ao éter, do éter em direção ao ar, do ar viram chuva, da chuva viram terra. Chegando à terra tornam-se alimento. E novamente são oferecido no fogo do homem, renascem no fogo da mulher, com objetivo de renascer em outros mundos. Esse é o ciclo. Mas os que não conhecem essas duas vias se tornam insetos, mariposas, [...]

O panchagni-vidya como um exercício de transformação cognitiva

Resta ainda dizer que o panchâgni-vidyâ, segundo alguns âchâryas, não é uma descrição empírica e não visa rastrear cartograficamente um evento, como se em algum ponto do tempo e do espaço pudesse pegar o jîvâtman  e dizer o que está ocorrendo com ele. O vidyâ védico é oferecido inclusive uma meditação, um procedimento de sâdhana, talvez semelhante à dos estoicos em alguns aspectos, sobre a conexão e interdependência entre todos os níveis do Ser.

Vejamo como o explica Swâmi Krishnânanda em seu comentário sobre o Chângodgyopanishad:
Não há algo como ato privado nesse mundo. Não há algo como 'meu filho' ou 'seu filho'. Se esse segredo fosse conhecido, ninguém diria ' é meu filho, minha filha'. Não é seu, nem de ninguém. Pertence àquilo do qual veio. E de onde veio? Veio de cada uma das células do universo.Não veio da essência seminal do pai ou da mãe, como creem. É a quintessência de cada partícula da natureza inteira, de forma que o cosmos está refletido em todo corpo.Por isso é que se diz que o brahmânda é o pindânda—o macrocosmo é o microcosmo. O cosmo está reverberando e está refletido no bebê. Como é que você pode então dizer que é seu filho? É filho do universo, que vai tomar conta dele, e que vai removê-lo quando for a hora; é o universo que projeta a hora de retirá-lo por razões que são conhecidas somente pela lei universal."
E ainda:
"Somos tão ignorantes que pensamos que a criança nasce do útero da mãe.  É só isso que sabemos, mas esse é o tipo mais inferior de conhecimento que se pode ter sobre o nascimento de uma criança. A criança não é retirada do útero de uma mãe, como que por mágica. É um tremendo processo que ocorre através do cosmos. Todos os oficiais do governo do universo estão ativos na produção da jornada de uma criança.  Todo o universo vibra em ação, mesmo se um único bebê nasce em algum lugar, no canto de alguma casa. Não é um fenômeno privado de um bebezinho vindo de lugar nenhum em algum canto do mundo, com as pessoas acreditam por ignorância. .Todo o universo sente a presença e o nascimento de uma criança em qualquer lugar.  Então, o que produz a criança não é o pai e a mãe. É o cosmos inteiro que produz o bebê.  O universo é o pai desse bebezinho. Seja um bebê humano, sub-humano ou super-humano. [...] O universo inteiro é nosso pai, o universo inteiro é nossa mãe, o universo é o progenitor. 
E por fim:
"Não deveríamos considerar nada como um evento local, como uma estrutura local, como um corpo local, como um indivíduo local. Nada disso existe, e a ideia de que existem é a origem da escravidão. Somos escravizados por noções incorretas das coisas, não pelas coisas mesmas, mas pelas ideias erradas que temos sobre suas relações mútuas ou com outras coisas. Temos noções sobre as coisas baseadas inteiramente na percepção dos sentidos, e não na intuição sobre o pano-de-fundo da ocorrência dos eventos.  [...] mas a meditação propõe introduzir uma técnica de visualizar o universo inteiro como sendo responsável pela manifestação de todas as coisas, de forma que todas as coisas estão em todas as coisas, e todas as coisas estão em todos os lugares.  Não há nada como um indivíduo em particular, ou um corpo em particular. Essa é a meditação que nos liberta da escravidão do apego às coisas particulares. [...] A descrição das causas e seus efeitos nessas passagens do Upanishad, é, portanto, destinada a levar-nos acima do nível da percepção empírica normal, e abrir os portões de um conhecimento completamente novo, por trás dos efeitos visíveis dos chamados objetos de sensação, percepção e cognição.  

O ponto de vista dos samkhyas e yogues

Falta ainda abordar brevemente um ponto de vista que é relevante para o tema e para algumas escolas hindus. O texto clássico Samkhyakarika de Ishvarakrishna observa o seguinte sobre o linga-sharîra, que é o chamado 'envoltório sutil' que é a conexão gerativa ou genética que liga duas existências.
40. O linga-sharîra, formado no início do cosmos, não sujeito a obstáculos, permanente, composto pelos tattvas de buddhi para baixo, incapaz de desfrutar (ter consciência), é aquele que migra, e que recebe as impressões (kármicas).
41. Assim como uma pintura não existe sem um pano-de-fundo, a sombra sem o poste, o linga-sharîra não substiste sem suas especificações (os tattvas que o acompanham).
42. Para os propósitos do Purusha, o linga-sharîra, por meio de instrumentos e resultados, e com o suporte da Prakrti, age como um ator.
[...]
62. Nenhum Purusha é escravizado ou liberto, nenhum Purusha transmigra. É a Prakrti sustentada por suas diversas formas, que transmigra, que é liberta ou é escravizada.
Note-se que aqui os samkhyas e yogues dizem que todo o processo migratório é associado à Prakrti. Essa posição não é refutada nos Brahma-Sutras, e pode ser uma posição legítima desde certo ponto de vista restrito. Os vedânticos contudo não concordam no poder da Prakrti de criar e desenvolver o universo. Mas essa é outra questão.

Na próxima postagem vou tentar reunir o que foi abordado até aqui e comparar com algumas teses perenialistas de Evola, Schuon, Kumârasvâmî e Guénon sobre o tema.

Tuesday, December 26, 2017

O renascimento segundo o Veda (Parte II)

Nessa segunda postagem sobre o ponto de vista védico sobre o renascimento, vou apresentar alguns conceitos úteis, mas antes de prosseguir, é de bom tom notar que os chamados quatro caminhos não esgotam as possibilidades de post-mortem. E, na verdade, se o Veda ensina a doutrina dos cinco fogos, é  somente com o objetivo de criar desapego diante do ciclo de renascimentos; Swãmi Paramârthânanda observa que o Veda não quer nós saibamos todas as possibilidades post-mortem e não se deve crer que conhecemo-las todas.

Os cinco lokas e os cinco agnis

O  Swâmi Paramârthânanda diz que, do momento em que o jîvâtman deixa o corpo, ele vai migrar pos 5 estações ou lokas, e em cada loka recebe a assistência de Agni (fogo) para transformar-se e poder passar para o loka seguinte, esse processo é comparável ao de um de cozimento de alimentos, o Swâmi observa ainda que os lokas não são lugares físicos, e nunca é demais notá-lo.

Os cinco lokas no processo descendente (mais à frente vou colocar o ciclo completo) são chamados respectivamente swarga (céu), mega (núvem), bhumi (terra), purusha (homem) e nari (mulher). Em cada um desses estágios o envoltório aquoso (explicado na postagem anterior), através do fogo, se transforma: no swarga o envoltório chamado jalam (água) se converte em néctar (soma); a segunda conversão, na nuvem, é o néctar para chuva (vristi), a terceira conversão ocorre na terra e é a conversão da chuva em alimento (anna), a quarta conversão ocorre no homem, é a conversão do alimento em sêmen (bîja), a quinta conversão ocorre na mulher e é a conversão do sêmen em envoltório sutil que é chamado de homem (purusha).

Temos então o quadro dos cinco agnis:

1.  Swarga = Jala > Soma
2. Mega = Soma > Vristi
3. Bhumi = Vristi > Anna
4. Purusha = Anna > Bîja
5. Nari = Bîja > Purusha

Toda passagem por Agni é chamada de ahûti (libação), de maneira que cada um dos estágios da transformação é realizado por devatas que são os senhores do karma, e que cuidam do funcionamento ou harmonia cósmica. Isso vem em resposta à pergunta feita à Svetaketu no Chândogyopanishad:
Ch.Up.V.3.3. [...] você sabe por que na quinta libação a água é chamada de homem?

Conhecimento não-humano

Swâmi Paramarthananda citando Vyasadeva diz que todo esse tema é apaurusheya, não é possível inferi-lo logicamente, nem demonstrá-lo por meios empíricos, portanto, qualquer pretensão de fazê-lo que não seja pela autoridade do Veda é falha. 

A psique não se dissolve

É importante também ressaltar que o jîvâtman não pode existir sem o sopro vital (prâna), de maneira que a jornada do jîvâtman tem de ser feito com esses envoltórios, e isso é declarado nas escrituras. Não há dissolução dos prânas após a morte, eles continuam associados ao jîvâtman, portanto as afirmações védicas de que as partes sutis do homem retornam à natureza têm de ser entendidas metaforicamente. 

Ademais, outro ponto importante é que o jîvâtman, migrando acompanhado dos prânas, leva consigo já o germe do corpo físico que será gerado, isso significa que o jîvâtman não deixa o tecido geral do cosmos e depois 'entra' em um novo corpo, mas aquele novo feto gerado, desde antes de ser gerado, já é o jîvâtman, existe uma integração ou articulação harmônica entre os 5 fogos, de forma que inclusive o fogo sexual que une o homem e a mulher faz parte do mesmo processo kármico e é unificado no tecido cósmico.

Uma coisa interessante de se observar, e insiro aqui minhas próprias reflexões, é que esse ciclo, ou caminho da fumaça, está integrado dentro de um sistema ou ecologia ritualista muito precisa e muito específica, de maneira que, é possível pensar que os povos ou pessoas que não dispõe dessa tecnologia, não vão até a esfera lunar e não renascem como humanos, mas que vão para os mundo subterrâneos, até que por ventura lhes surja uma oportunidade de participar desse ciclo e adquirir a condição humana.

Ainda uma observação sobre o fato de que ao chegar na esfera da lua os ritualistas são comidos pelos devas. Obviamente, observa Swâmi Parmârthânanda os devas não comem nem bebem, eles apenas entram em contato com seus objetos, no caso o jîvâtman convertido em néctar, e obtêm a satisfação.

Os três tipos de karma.

E nesse ponto é preciso distinguir os três tipos de karma para compreender melhor. A ilustração tradicional é a de um arqueiro atirando flechas: as que estão na sua aljava são chamadas sanchita-karma, ações que estão acumuladas mas cujos resultados não se manifestaram ainda, a flecha que foi atirada (e que não pode mais ser parada) é chamada de prarabhda-karma, ações que estão frutificando e vão frutificar necessariamente, e a flecha que está no arco, prestes a ser atirada é chamada de agami-karma, que são as ações que estão sob nosso controle e dependem do arbítrio. A migração vai ser determinada pelo sancita-karma e o agami-karma, assim como a existência atual é determinada pelo prarabhda-karma. Os animais estão sofrendo o seu prarabhda e têm sanchita (que vai definir o próprio nascimento) também, os devas estão desfrutando do prarabhda e também tem sanchita, a diferença do ser humano está em que ele está experimentando o  prarabdha (bom ou mau) e tem a seu dispor tanto o sanchita e como o agami. 

A tecnologia ritualística e social para obter o swarga

E aqui já dá para notar que sistema de varnâshrama tradicional, que hoje está decadente, foi uma tecnologia de gestão do karma baseado no conhecimento védico, e sua degeneração já preocupava  Árjuna no Bhagavad Gîtâ:

B.Git. I.40-41. Na destruição da kula, o Dharma eterno da kula desaparece. Quando o dharma desaparece, o adharma domina toda a kula. Com a ascensão do adharma, as mulheres da kula são corrompidas, quando as mulheres são corrompidas as castas são misturadas. A mistura das castas leva ao inferno os destruidores da kula, e os ancestrais da kula (pitr) caem, sendo privados dos rituais (com arroz e água).

Boa e má conduta (carana)

Para encerrar essa parte (pensei que concluiria em duas, mas vai ser necessário algumas postagens) há uma discussão técnica entre os âchâryas sobre se somente os de boa conduta ascendem ao swarga, e se, afinal, o que define a decida é a conduta (carana) ou o karma, bem como qual é a diferença entre os dois. Essa discussão técnica é pouco proveitosa para nossos fins, então vamos pular. Ademais, é suficiente entender que boa conduta aqui deve ser entendida dentro do escopo dos chamados mahayajñas em geral sintetizados em 5 obrigações que o ser humano tem em relação ao semelhante, aos cosmos e a si mesmo. 

Os âchâryas em geral concordam que aqueles que tiveram má conduta (ou karma, caso sejam sinônimos, o que alguns defendem) vão para o mundo da escuridão de yama para purgar ou sofrer o karma, e depois ascendem (para esse mundo e não para chandra-loka) ou há aqueles que descem ainda mais.

Madhwâcharya têm uma opinião peculiar que vale a pena colocar aqui: ele diz que é possível que o jîvâtman desça e se embrenhe nos mundos infernais de tal forma que não seja mais possível sair. O âchârya enumera  5 infernos principais dos quais se pode escapar - Raurava, Maha-Raurava, Vanhi, Vaitarani e Kumbheepaka e descreve os outros dois, que são perenes: Tamas e Maha-Tamas, nesses últimos prevalece a 'dor absoluta', sem traço de prazer algum.


(Leia também a terceira parte dessa postagem)

Monday, December 25, 2017

O renascimento segundo o Veda (Parte I)

Pensei bastante antes de colocar esse tema aqui, e como fazê-lo. Não sou erudito em Vedânta, e tenho apenas noções rudimentares de sânscrito, mas decidi colocá-lo no blog porque creio que pode esclarecer dúvidas de pessoas que tomam conhecimento desses assuntos através de outras fontes como, por exemplo, o René Guénon e o Kumârasvâmî, ou ainda acham que se trata da mesma noção dos espiritas, quando na verdade não é. 

Vou me limitar a colocar as referências dos âchâryas tradicionais hindus, e não vou entrar em polêmica. Caso as pessoas queiram se aprofundar, procurem um instrutor qualificado em qualquer das três principais escolas vedânticas. Se notarem algum erro nas referências, sintam-se à vontade para apontá-los.

É bom ainda enfatizar que não é doutrina banal e de fácil apreensão, e está inserida dentro da compreensão esotérica da chamada doutrina dos 5 fogos, daí ser assunto que exige um estudo e uma mentalidade sutil para ser compreendido corretamente em todas suas implicações. Ademais, no Chândogyopanishad o rei xátria declara ao brâmane que 'esse conhecimento nunca foi próprio dos brâmanes antes de você, portanto, em todos os mundos esse ensinamento pertence somente aos xátrias'.

O post-mortem segundo os Vedas tem 4 caminhos possíveis: o caminho tratado aqui é o renascimento (punarjanman) pelo caminho dos ancestrais, pitris ou 'da fumaça', ou seja, o caminho daqueles que, após a morte vão para a esfera da Lua, que é diferente do caminho daqueles que se encaminham aos mundos subterrâneos ou infernais de yama, ou pelo caminho luminoso chamado caminho dos devas, ou daqueles que se libertam do samsâra. Eu vou tratar só desse aspecto porque ele é o mais polêmico e, de certa forma, às vezes é confundido com doutrinas de outras origens. 

Os temas dessa primeira parte são.

1. Se após a morte a jîva deixa o corpo em um envoltório.
2. Qual é a natureza desse envoltório.
3. Qual é o destino desse envoltório.

(traduzo aqui 'rûpa' quando se refere ao aspecto sutil do jîvâtman como envoltório, porque o termo 'corpo' tem conotações muito próprias dos 5 elementos grosseiros e as sensações pelas quais os conhecemos)

As fontes são o Chândogyopanishad de V.3. até V.9 e o Brahma Sûtra III.1 com os comentários de Swâmi Shivânanda, Adi Shankarâchârya, Râmânujâchârya  e Madhwâchârya, apoiado também no comentário do filósofo Râdhâkrishnan e as palestras do Swâmi Paramârthânanda. Vamos seguir a ordem em que as questões são expostas pelo Brahma Sûtra de Badarayana. Não vou usar muitas citações em sânscrito, mas os interessados em conferir podem se remeter diretamente às fontes indicadas.

B.S.III.1.1. Para a obtenção de um outro corpo o jîvâtman deixa o presente corpo após a morte envolvido por elementos sutis. 

Swâmi Shivânanda observa que o Vedânta rejeita a visão dos Bauddhas de que a metempsicose se dá sem os indriyas e que eles são gerados segundo o novo corpo, a dos Vaisheshikas de que somente manas participa do processo, a metáfora dos jainas de que a alma é como um papagaio que pula de uma árvore para outra. Segundo o Vedânta, o jîvâtman carrega consigo após a morte buddhi, manas, os prânas, os indriyas e os elementos sutis (não confundir com elementos físicos). 

Há uma discussão entre os vedânticos, pois parece, segundo a escritura, que somente o elemento sutil da água acompanha o jîvâtman, contudo todos os âchâryas concordam que, dado o caráter cumulativo na formação cósmica dos elementos (doutrina do surgimento dos elementos, também explicada no Veda) são três elementos sutis que formam o envoltório sutil aquoso - água, fogo e terra.

Os âchârya discutem alguma objeções sobre como é possível que os sentidos e órgãos sejam devolvidos às divindades e ao mesmo tempo migrem com o jîvâtman, contudo todas estão de acordo em que os pranas partem com o jîvâtman e que, na verdade, os órgãos e pranas não são dissolvidos nas suas respectivas divindades, mas recebem como que a graça de cada uma delas. As divindades cooperam para a nova configuração, por assim dizer.  Madhwâchârya tem uma aproximação levemente diferente, e diz que parte dos prânas é absorvido pelas divindades correspondentes, e parte migra junto com o jîvâtman. 

Râmânujâchârya observa que, partindo com um corpo aquoso, que tem em si também os três elementos sutis, jîvâtman chega ao dyuloka e seu corpo aquoso é convertido em néctar (amrta) que é consumido pelos devas daquele plano, e o jîvâtman se torna o 'Rei do Soma' (somarajanah). Quando esse néctar se encerra, o jîvâtman é atraído pelos remanescente do karma de novo.Os âchâryas também comentam a 'simpatia' entre os elementos usados nos rituais e a natureza do envoltório que a jîvâtman carrega. 

B.S. III.1.7. Mas que as jîvas sejam alimentos para os devas no mundo celestial é usado metaforicamente, uma vez que essas jîvas não conhecem o Si Mesmo.

E ainda:

C.Up.V.10.4. Esse é o Soma, o Rei. Ele é alimento dos devas. Eles o comem.

Swâmi Shivânanda observa que se de fato as jivas servissem de alimento aos deuses os rituais védicos e as virtudes seriam inúteis ao jîvâtman mesmo. Portanto, que os devas se alimentem do jîvâtman, não significa que os devas os matiguem ou os engulam (observação dos âchâryas), mas que se regozijem e que interajam com os jîvâtman, que lhes são subordinados e fazem parte do 'banquete dos devas'. Râmânujâchârya acrescenta que o jîvâtman que ali vai parar é como um 'animal dos devas', ou seja, eles não interagem no mesmo nível, mas servem-lhes de desfrute e entretenimento. Madhwâchârya  observa que a 'imortalidade' conferida na esfera da lua é uma imortalidade temporal, por assim dizer, pois a imortalidade verdadeira é dada pelo 'conhecimento do Senhor'. Ora, se o jîvâtman é o 'soma' ou o néctar de Indra, sua imortalidade perdura somente pelo tempo em que o Indra, Manu, ou o Surya daquele ciclo viva.
III.1.8. Quando o seu karma é exaurido pela fruição dos devas, o jîvâtman retorna ao mundo do karma[...] 
E também
Ch.Up.V.10.5 "Tendo ali habitado até que o karma seja exaurido, eles retornam novamente da mesma maneira que vieram"
Madhwâchârya  observa que, quando a fruição dos deuses esgota o karma que o levou até aquela esfera, o jîvâtman se 'recorda' de onde veio e então retorna. O caminho de descida, contudo, não é o mesmo caminho da subida (vamos descrever isso melhor nas postagens seguintes). Râmânujâchârya também tem a mesma posição. Adi Shankarâchârya, em seu comentário, rebate à uma possível objeção de que o karma teria sido exaurido no Chandraloka mesmo e que não haveria mais karma para que o jîvâtman voltasse ao mundo da ação. Ele diz que o karma que leva até o aquela esfera não é o mesmo que traz de volta. Swami Shivânanda explica que o corpo sutil aquoso do jîvâtman é desfeito pelo fogo de uma tristeza que lhe acomete, e ele volta ao mundo da ação, ou seja, os diferentes tipos de karma que ele carrega consigo, fazem com que ele primeiro ascenda à esfera da lua, e depois seja atraído novamente pela esfera da terra.  

Na próxima postagem vou falar um pouco sobre os cinco fogos que catalizam as cinco etapas de ascensão e descenso do jîvâtman no caminho dos pitris ou ancestrais. E no último vamos falar sobre ciclos cósmicos e possíveis relações entre esses movimentos, usando também textos do Bhagavad Gîtâ e outros Upanishades, junto com os comentários. Os argumentos usados aqui são os de autoridade, ou seja, são baseado no Veda e nos comentários autorizados, contudo, em postagens futuras vou fazer meus próprios comentários desde o ponto de vista 'profano' da lógica ou inferência (laukikânumâna), principalmente no que diz respeito às demonstrações guenonianas.

(Leia também a segunda parte dessa postagem)

Sunday, December 24, 2017

Encontros entre cães e homens

Diógenes e os cães
Estou lendo o livro 'The Cynics" de William Desmond. As informações sobre a escola filosófica, em si mesmas, são preciosas e dão substância para pensar - a busca da desonra, a renúncia ao costume, a sinceridade brutal, o viver de acordo com a natureza, posturas filosóficas que trazem consigo possibilidades prolíficas para a compreensão de si, e principalmente das relações entre a liberdade humana e as instituições sociais. Como é o meu primeiro livro sobre o tema, não tenho lá como avaliá-la comparativamente, mas a associação etimológica, semântica e 'ética' (se for possível) dos cínicos com os cães me deixou pensando, e dá para desnovelar algumas coisas... 

Lembrei, por exemplo, que Maomé em certa ocasião mandou matar todos os cães. Depois voltou atrás e permitiu que se preservasse os de caça. Parece que não gostava dos cães pretos em  especial. E parece que os associava a coisas ruins. Em várias citações, ele diz que manter um cachorro afasta os anjos e anula os méritos religiosos.

Parece que o cão materializa algumas relações simbólicas interessantes: não descartemos, por exemplo, as célebres associações populares entre o cão e o diabo, que é inimigo do homem, ao mesmo tempo em que em outros contextos o cão é chamado de melhor amigo. Parece que a figura do cachorro 'dá voz' e articulação (por vezes complexas) ao Amor e Rigor, Chesed e Geburah -- encontros de Água e Fogo, alguns diriam. 

O cínico grego, por exemplo, era um cão. O nome realmente significava isso. Era um homem que usava o modo de vida dos cães para criticar a sociedade. Assim, adotavam modos de vida desonrados, contra os costumes de seu tempo, e denunciavam sarcasticamente a riqueza, a corrupção e a vaidade da sociedade. Diógenes, o mais famoso, com o tempo tornou-se dessas biografia mitológicas e sobre-humanas.

A mitologia grega também tem uma figura notável, e cuja aura simbólica dificilmente seria ignorada pelos cínicos mesmos, de Cérbero, o cão de três cabeças que guardava a porta do Hades. O último trabalho de Hércules, protótipo da vida heroica, foi capturá-lo trazê-lo à superfície, então é algo a se levar em conta.

Hércules e Cão do Hades
Alexandre, bem menos heroi que Hércules, em seu encontro com o cão Diógenes, talvez por falta de empenho ou por estar embriagado com a contemplação de sua própria glória, não chegou a ganhar um rosnado consistente do cão, que, parece, apenas solicitou, com um gesto (ou talvez um resmungo curto), que o imperador saísse da frente do sol.

Na tradição grecorromana dos cães temos figuras notáveis, algumas são de fato melhores amigos do homem, outras nem tanto. Demonax, cipriota, cínico, era um grande amigo dos homens: filantropo e pacificador. A única fonte sobre sua vida vem do sátiro Luciano de Samósata, onde o filósofo é descrito, com aquele entusiasmo incontido dos hagiógrafos, como um sábio irrepreensível que amava a humanidade. E o amor parece que era inclusive correspondido: 
"Não somente Atenas, mas toda a Grécia, amava-o tanto que quando ele passava, os grandes cediam-lhe seus lugares, e um silêncio geral se estabelecia. Ao fim de sua longa vida, costumava entrar na primeira casa que se apresentasse sem ser convidado, ali jantava e dormia, e a família considerava-o como um ser celestial que lhes trazia bênçãos. Quanto partia, as mulheres disputavam a honra de lhe oferecer pães, e feliz era aquela que ganhasse a disputa. As crianças chamam-lhe pai e ofereciam-lhe frutas."
Caminhava desimpedido nas ruas de Atenas conclamando as pessoas a viverem no presente e a abandonarem as preocupações, a busca desenfreada de riquezas, reconciliava os inimigos, fazia as pazes entre esposas e maridos, e exibia uma felicidade incontida onde quer que fosse. Desprezava os ritos e iniciações secretas e devoções ritualísticas e ficou famoso pela frase "se os mistérios fossem ruins, ninguém deveria ser iniciado, se fossem bons eles deveriam ser divulgados a todos".

Se Demonax ganhara a simpatia e devoção de Luciano, o caso não era igual para o outro cão, mais raivoso: Peregrino Proteu tinha muitas formas e  reaparecia em diferentes lugares, como seu nome não falha em indicar. Vivera na Palestina junto aos cristãos, narra-se, e ganhou entre eles notoriedade, respeito e até dinheiro. Luciano, mais adepto dos mansos que dos raivosos, lhe é francamente desfavorável, acusando-o de parricídio, de tornar-se cristão para ficar rico, de insultar ricos não-cristãos, de ser indecente, de ir para a prisão para ganhar fama, e até de ter se matado na pira olímpica para coroar sua vida infame vida, louca vida. Aulo Gélio, outra fonte, discorda de Luciano, indicando que Peregrino era 'homem constante e sério'. Diz que o filósofo grego pregava os mesmos princípios dos cínicos e estoicos de todos os tempos - honestidade e amor à justiça divina. 

Diz a lenda que Demonax nunca teve um só inimigo, ao passo que Peregrino teve-os inúmeros.

William Desmond comenta sobre uma refinada interação entre os dois:
Em um diálogo, Peregrino criticou Demonax por rir demais: ele não era sério o suficiente para ser um Cínico. "Você não é um cachorro" [sinônimo de Cínico], disse Peregrino. "E você", respondeu Demonax, "não é um ser humano", querendo dizer que o Cinismo de Peregrino era muito severo.
Ambos, no fim das contas, no exercício de sua vontade canina, suicidaram-se: Peregrino, jogando-se na pira dos jogos olímpicos, Demonax, ao modo dos jainas hindus ou gimnosofistas (que é uma influência possível, inclusive) jejuou até bater as botas.

E ao falar em gimnosofistas, sou obrigado, dada a minha concentração frágil, a pular da Grécia para a Índia, e falar dos avadhutas: andarilhos nus, com cinzas no corpo, acompanhados por cães e descompromissados, por vezes hostis às formalidades da sociedade bramanista e seu complexo sistema ritualístico. E não podemos deixar de citar também o Dattatreya, avatar de quatro cabeças, símbolo do indivíduo livre, do liberto vivo (jivanmukta),  acima das quatro castas (ativarnashrami) e sempre acompanhados pelos seus cães.
Dattatreya e os cães
Ainda que bastante diferentes entre si, os encontros entre Alexandre e Diógenes e entre Demonax e Peregrino, têm de nos levar de regra, ao menos aqui nesse blog, ao clássico episódio em que Adi Shankara, reformador do sistema devocional hindu, e que caminhou por toda a Índia medieval resgatando o Dharma, foi obrigado, num dia qualquer, a se deter justo diante de um chandala ou cão, e foi impulsionado, pela força do Espírito, a tocar-lhe os pés e reconhecer naquele que era seu antagonista na ordem dos papeis mundanos, o próprio Shiva em sua forma irada de Bhairava.

Adi Shankara encontra o chandala e seus cães
E por que não trazer aqui também, sob o risco de ofender os religiosos, a santidade canina de São Francisco de Assis, e seus desencontros e dissabores com a hierarquia católica -- narra-se inclusive seu encontro com o Papa Inocente III, que, talvez impulsionado por uma força superior, beijou os pés do chandala italiano, reconhecendo-lhe a santidade.

Santidade Canina de São Francisco
Desmond nota que a tradição dos cínicos, como toda tradição, protocolar ou não, foi perdendo sua essência e seu vigor à medida que destacou-se do seu chamado ascético, missão que segundo alguns viera de ordens oraculares do próprio deus Apolo.  Passaram a reunir bandos de vagabundos, preguiçosos e homens de tendência imoral, criando infâmia inclusive ao 'filósofo' em geral, que virou persona non grata no meio do povo. Isso talvez tenha justificado gradualmente a mudança  de significado do termo cínico, que na atualidade indica o sujeito egoísta, desumano e indiferente ao sofrimento. 

O imperador Juliano, último bastião da civilização grega, aceitava os cínicos como parte da grande tradição filosófica que buscava resgatar, contudo estava consciente de que o movimento havia se degenerado. Ainda há no oriente tradições semelhantes aos cínicos -- entre os pashupatas e jainas, muitos dos costumes adotados pelos cínicos gregos ainda vigoram (mas há lá também a mesma degeneração apontada pelo antigo imperador). No ocidente deixaram suas marcas entre os cristãos, entre os livres pensadores modernos, na sátira, no humor, na crítica social e pode-se dizer que suas atitudes se incorporaram definitivamente no ethos do homem ocidental, para o bem ou para o mal, na saúde ou na doença.

Friday, December 22, 2017

O renascimento segundo René Guénon

"Nenhuma doutrina tradicional autêntica jamais falou da reencarnação, que nada mais é que uma invenção moderna"

René Guénon foi um dos mais contumazes opositores da ideia de reencarnação. Chegou a mencionar que dedicaria uma obra exclusivamente ao tema, o que não chegou a ocorrer. O cerne de seus comentários sobre o assunto estão condensados em dois capítulos da obra 'O Erro Espírita', aqui citados extensamente, e o restante está distribuído em curtas referências presentes em seus livros mais doutrinais, dos quais citamos também alguns trechos.

Guénon sempre se referiria ao assunto, inclusive em correspondências a amigos, negando-lhe qualquer valor, observando que "o assunto vale a pena, não em si mesmo, já que trata-se de um absurdo puro e simples" e complementa que a única razão para abordá-lo é "a estranha difusão da ideia de reencarnação que, em nossa época, é uma das que mais contribuem para o transtorno mental.".

A ideia de renascimento ou reencarnação atacada é principalmente a do espiritismo francês ou kardecista, contudo, a argumentação vale para "todas as demais escolas «neoespiritualistas» que vieram em seguida adotando essa ideia". O ataque guenoniano não abrange todo o espiritismo, uma vez que "a reencarnação não [lhes] é um elemento absolutamente essencial, e é possível ser espírita sem admiti-la, ao passo que não é possível sê-lo sem admitir a manifestação dos mortos por meio de fenômenos sensíveis."

A crítica guenoniana pode ser divida em quatro pontos 1) a discordância entre os reencarnacionistas sobre o cerne da doutrina; 2) a origem mesma da doutrina, que se encontra nos meios socialistas, e foi criada para resolver o problema teórico da injustiça social; 3) A diferença essencial entre a reencarnação e as doutrinas antigas da metempsicose e da transmigração 4) A  impossibilidade metafísica da reencarnação, sendo que essa última seria a mais importante.

1. Discordância entre os reencarnacionistas

Guénon, tendo vivido em meios ocultistas, apontava que entre alguns espíritas a reencarnação era dogma inquestionável, e, de fato, Allan Kardec a tratava literalmente como dogma em seus livros. As outras correntes como o teosofismo e o ocultismo papusiano viriam a adotar a ideia a partir da influência kardecista, aceitando-a também como artigo de fé, ainda que complicando-a com adornos filosóficos; a primeira incoerência, segundo o metafísico, se dá na divergência existente entre os próprios espíritas, ironiza:
"Os ensinamentos dos «espíritos» são bastante flutuantes e contraditórios, e as pretensas constatações dos «clarividentes» não o são menos. Assim, para uns, um ser humano se reencarna constantemente no mesmo sexo; para outros, reencarna-se indiferentemente em um ou outro, sem que se possa fixar nenhuma lei; para outros ainda, há uma alternância mais ou menos regular entre encarnações masculinas e femininas. De igual modo, uns dizem que o homem se reencarna sempre sobre a terra; outros dizem que pode reencarnar-se também em outro planeta do sistema solar ou inclusive sobre um astro qualquer; alguns admitem que há geralmente várias encarnações terrestres consecutivas antes da passagem para outra morada, e esta é a opinião do próprio Allan Kardec; para os teosofistas, não há senão encarnações terrestres durante toda a duração de um ciclo extremamente longo, depois do qual uma raça humana inteira começa uma nova série de encarnações em outra esfera, e assim por diante."
E ainda:
"Outro ponto, não menos discutido, é a duração do intervalo que deve transcorrer entre duas encarnações consecutivas: uns pensam que é possível reencarnar de imediato, ou ao menos ao cabo de um tempo muito curto, para outros, as vidas terrestres devem estar separadas por longos intervalos; vimos que os teosofistas, depois de primeiro terem suposto que estes intervalos eram de mil e duzentos ou de mil e quinhentos anos no mínimo, chegaram a reduzi-los consideravelmente, e a fazer distinções segundo «graus de evolução» individuais. Nos ocultistas franceses produziu-se também uma variação bastante curiosa: em suas primeiras obras, Papus, embora atacasse os teosofistas, com os quais acabara de romper, repete ao modo destes, que, «segundo a ciência esotérica, uma alma não pode reencarnar-se senão ao cabo de mil e quinhentos anos ou mais, salvo no caso de algumas exceções muito claras (morte na infância, morte violenta, adeptado)», e afirma inclusive, sob fé de Mme Blavatsky e de Sinnet, que «estes números são retirados de cálculos astronômicos do esoterismo hindu»
E conclui:
Tudo isso inspira pouca confiança nos que examinam as coisas de forma imparcial, e, se a reencarnação não foi «revelada» pelos «espíritos», pela boa razão de que estes jamais falaram realmente por intermédio de mesas ou médiuns, as poucas precisões que acabamos de fazer já bastam para mostrar que não pode tratar-se de um verdadeiro conhecimento esotérico, ensinado por iniciados que, por definição, saberiam a que se ater a esse respeito.
2. A ideia de reencarnação se origina em concepções socialistas

Guénon, que tinha desprezo por concepções filosóficas, considerado conhecimento profano, encontra na reencarnação mero eco desse tipo de conhecimento:
[Reencarnação] não é nada mais que isso, e está inclusive no nível das piores concepções filosóficas, posto que é absurda no sentido próprio da palavra. Há muitos absurdos também entre os filósofos, mas ao menos, em geral, eles não os apresentam senão como hipóteses; os «neoespiritualistas» são ainda mais iludidos (e aqui admitimos sua boa fé, incontestável no caso da massa, mas nem sempre para os dirigentes), e a segurança mesma com que formulam suas afirmações é uma das razões que as tornam mais perigosas que as dos filósofos.
Ou talvez seja menos ainda que uma concepção filosófica:
«Concepção social» seria talvez uma classificação ainda mais justa, se consideramos qual foi a origem real da ideia da reencarnação. Com efeito, para os socialistas franceses da primeira metade do século XIX, que inculcaram em Allan Kardec essa ideia, ela se destinava essencialmente a explicar a desigualdade de condições sociais, que a seus olhos ganhava um caráter particularmente pungente. Os espíritas conservaram esse mesmo motivo, dentre os invocados com mais vontade para justificar sua crença, e quiseram inclusive estender a explicação a todas as desigualdades, tanto intelectuais como físicas; eis o que diz Allan Kardec: «As almas, em seu nascimento ou são iguais ou não são, não há dúvida. Se são iguais, por que essas atitudes diferentes? Se são desiguais, é porque Deus as criou assim, mas, então, por que Deus concede essa superioridade inata a algumas? Estaria essa parcialidade em conformidade com sua justiça e com o seu amor proferido por todas as criaturas? Admitamos, ao contrário, uma sucessão de existências anteriores progressivas, e tudo fica explicado.[...]
E as escolas espiritualistas mais sofisticadas não conseguem tampouco fugir desse tipo de argumentação 'moralista' e dá o exemplo de Papus:
Papus faz exatamente o mesmo: «os homens começam uma nova trajetória no mundo material, ricos ou pobres, felizes ou desgraçados, segundo os resultados obtidos em trajetórias anteriores, nas encarnações precedentes» . Em outra parte, ele se expressa ainda mais claramente: «sem a noção de reencarnação, a vida social é uma iniquidade. Por que seres estúpidos vivem afogados em dinheiro e adornados em honra, enquanto seres valorosos se debatem em preocupações e na luta cotidiana pelo alimento físico, moral e espiritual?  Pode-se dizer, no geral, que a vida social atual está determinada pelo estado anterior do espírito e que determina a posição social futura» 
2.1. Incoerência lógica da fundamentação moral

Guénon argumenta a seguir sobre por que uma fundamentação moral é essencialmente incoerente nesse caso:

a) Mero deslocamento do problema da injustiça
Se o ponto de partida não é o mesmo para todos [almas mais novas e almas mais velhas], e há homens mais ou menos distantes desse ponto e que não percorreram um número igual de existências (é o que diz Allan Kardec), há nisso uma desigualdade pela qual eles não são responsáveis, e que, por conseguinte, os reencarnacionistas têm de considerar como um tipo de «injustiça» que sua teoria é incapaz de explicar. Depois, admitindo inclusive que essas diferenças não tivessem ocorrido entre os homens, é necessário que tenha havido, em sua evolução (e falamos aqui segundo o ponto de vista dos espíritas), um momento em que a desigualdade começou, e é necessário que tenha havido uma causa para isso; ao dizer que essas causas são os atos que os homens realizaram anteriormente, é preciso explicar como esses homens puderam se comportar de maneira tão diferente antes de que as desigualdades fossem introduzidas em seu meio. Isso é inexplicável, simplesmente porque há aí uma contradição: se os homens tivessem sido perfeitamente iguais, teriam sido semelhantes em todos os aspectos, e admitindo que isso fosse possível, jamais poderiam deixar de sê-lo, a menos que se conteste o princípio da razão suficiente (e nesse caso, já não haveria sentido buscar uma lei ou explicação qualquer); se eles puderam de fato tornar-se desiguais, é evidente que a possibilidade de desigualdade estava entre eles, e essa possibilidade preliminar bastava para constituí-los como desiguais desde a origem, ao menos potencialmente.[...] Assim, não se faz mais que retroceder com a dificuldade, crendo havê-la resolvido.
b)  Intervenção moralista em questões de outra ordem
Dá para dizer que esta questão, como muitas outras questões filosóficas, só existem porque estão mal colocadas. E se isso ocorre, é sobretudo, no fundo, pela intervenção de considerações morais e sentimentais onde não há lugar para tal: essa atitude é tão pouco inteligente como seria o caso de um homem que perguntasse, por exemplo, por que tal espécie de animal não é igual a alguma outra, o que carece claramente de qualquer sentido. Que haja diferenças na natureza, e que tomemos algumas como desigualdades e outras não, diz respeito somente ao ponto de vista humano; se deixamos de lado esse ponto de vista, eminentemente relativo, não se deve mais falar em justiça ou injustiça nessa ordem de coisas. Ou seja, perguntar-se por que um ser não é igual a outro, é perguntar porque é diferente do outro; mas, se não fosse diferente de outro, ele seria outro ao invés de ser ele mesmo. Uma vez que há uma multiplicidade de seres, a diferença entre eles é necessária; duas coisas idênticas são inconcebíveis, porque se são verdadeiramente idênticas, não são duas coisas, mas uma só. Leibnitz está inteiramente certo sobre esse ponto. Cada ser se distingue dos demais, desde o princípio, a partir do qual traz em si algumas possibilidades que são essencialmente inerentes a sua natureza, e que não são possibilidades de nenhum outro ser; a questão para a qual os reencarnacionistas pretendem dar uma resposta equivale, pois, simplesmente a perguntar por que um ser é ele mesmo e não outro.
Em outro trecho aponta que:
Ao invés de perguntar se algo é verdadeiro ou falso, que é a única coisa que importa, se discute para saber se é ou não «consolador», e assim é possível discutir indefinidamente sem avançar e, nada, pois esse é um critério puramente «subjetivo», como diria algum filósofo.
c) A justiça como harmonia e ordem cosmológicas.
A noção de justiça, destituída de seu caráter sentimental e especificamente humano, se reduz à de equilíbrio e de harmonia; pois sim, para que haja harmonia total no Universo, é preciso, e suficiente, que cada ser esteja no lugar que deve ocupar, como elemento desse universo, em conformidade com sua própria natureza.  Isso é o mesmo que dizer que as diferenças e as desigualdades, que alguns se comprazem em denunciar como injustiças reais ou aparentes, concorrem, ao contrário, de forma efetiva e necessária, para essa harmonia total;
2.2. a reencarnação, a Igreja católica e os textos evangélicos

Vale a pena transcrever aqui, a título de registro, as objeções de Guénon questionando a honestidade dos adversários na caracterização do tema, ao atribuir a doutrina à igreja católica ou o evangelho mesmo: 
A propósito da doutrina católica, devemos mencionar também uma afirmativa dos espíritas que é verdadeiramente extraordinária: Allan Kardec afirma que o «dogma da ressurreição da carne é a consagração do dogma da reencarnação ensinado pelos espíritos», e que «assim a Igreja, pelo dogma da ressurreição da carne, ensina também a doutrina da reencarnação»; [...] e é o «espírito» de São Luis quem lhe responde que «isso é evidente», adicionando que «Em breve se reconhecerá que o espiritismo está presente em cada passagem do texto mesmo das Escrituras sagradas»
E oferece a citação:
[...] Encontrou-se um sacerdote católico, mais ou menos suspeito de heterodoxia, para aceitar e sustentar opinião; é o abade J. A. Petit, da diocese do Beauvais, familiar longínquo da duquesa de Pomar, que escreveu estas linhas: «A reencarnação foi admitida pela maioria dos povos antigos…Cristo também a admitia. Se ela não é ensinada mais expressamente pelos Apóstolos, é porque era preciso que os fiéis obtivessem as qualidades morais que lhes dessem acesso a tal doutrina… [...] quando o ensinamento cristão, sob a pressão de interesses humanos, foi fixado em um árido símbolo, não ficou, como vestígio do passado, senão a ressurreição da carne, ou 'na carne', que, tomada no sentido estreito da palavra, fez acreditar no engano gigantesco da ressurreição dos corpos mortos ». 
E ainda:
O conde de Larmandie, concretamente, queria que [a reencarnação] fosse admitida para crianças mortas sem batismo. É certo que em alguns textos, como os do Quarto Concílio de Constantinopla, que parecem depor contra a reencarnação, não se aplicam a ela em realidade; mas os ocultistas não puderam triunfar, e, se  assim ocorreu, é simplesmente porque, naquela época, a reencarnação ainda não tinha sido imaginada.[...] Tratava-se de uma opinião de Orígenes, segundo a qual a vida corporal seria um castigo para almas que, «preexistindo enquanto potências celestes, teriam chegado a saciar-se da contemplação divina»;
E conclui Guénon diante da citação:
Como se vê, não se trata de outra vida corporal anterior, mas sim de uma existência no mundo inteligível no sentido platônico, o que não tem nenhuma relação com a reencarnação.
E critica novamente Papus: 
É penoso conceber que Papus pôde escrever que «a opinião do concílio indica que a reencarnação formava parte do ensino, e que se havia quem voltava voluntariamente a reencarnar-se, não por desgosto do Céu, mas sim por amor de seu próximo, o anátema não podia lhes tocar» (imaginou [Papus] que esse anátema se dirigia contra «aqueles que proclamassem terem voltado à terra por não terem gostado do Céu»); e é nisto que ele se apóia para afirmar que «a idéia da reencarnação faz parte dos ensinos secretos da Igreja»
E sobre a presença da reencarnação em textos evangélicos nota:
Diremos ainda algumas palavras dos textos evangélicos que os espíritas e os ocultistas invocam em favor da reencarnação; Allan Kardec indica dois, dos quais o primeiro é este, que segue ao relato da Transfiguração: «Quando desciam da montanha, Jesus fez este mandamento e lhes disse: Não falem com ninguém sobre o que acabam de ver, até que o Filho do Homem seja ressuscitado dentre os mortos. Seus discípulos lhe interrogaram então e lhe disseram: por que então os escribas dizem que é preciso que Elias venha antes? Mas Jesus lhes respondeu: É verdade que Elias deve vir e que restabelecerá todas as coisas. Mas eu lhes declaro que Elias já veio, e não lhe conheceram, mas sim lhe têm feito sofrer como quiseram. É assim como farão morrer ao Filho do Homem. Então seus discípulos compreenderam que era de João Batista de que lhes tinha falado». E Allan Kardec adiciona: «Posto que João Batista era Elias, houve pois reencarnação do espírito ou da alma do Elias no corpo do João Batista». Papus, por sua vez, diz igualmente: «Primeiro, os Evangelhos afirmam sem rodeios que João Batista é Elias reencarnado. Era um mistério. João Batista interrogado se cala, mas outros sabem. Há também essa parábola do cego de nascimento castigado por seus pecados anteriores, que dá muito que refletir».
E comenta:
Em primeiro lugar, no texto não se diz de que maneira «Elias já veio»; e, se pensarmos que Elias não estava morto no sentido comum da palavra, pode parecer ao menos difícil que seja por reencarnação; além disso, por que Elias, na Transfiguração, não havia se manifestado sob os traços de João Batista? Depois, João Batista, interrogado, não se cala como quer Papus mas, ao contrário, nega formalmente: «Eles lhe perguntaram: O que, pois? É você Elias? E ele lhes disse: Eu não o sou». Se disserem que isso é só  prova de que não tinha memória de sua precedente existência, responderemos que há outro texto que é muito mais explícito ainda; é aquele em que o anjo Gabriel, anunciando a Zacarias o nascimento de seu filho, declara: «Marchará ante o Senhor no espírito e na virtude de Elias, para reunir o coração dos pais com seus filhos e recordar as desobediências à prudência dos justos, para preparar ao Senhor um povo perfeito». Não é possível indicar mais claramente que João Batista não era Elias, mas que tão somente pertencia, se for possível se expressar assim, a sua «família espiritual»; é desta maneira, e não de forma literal, que é precisar entender «a vinda de Elias».
Outro ponto:
Quanto à história do cego de nascimento, Allan Kardec não fala dela, e Papus parece conhecê-la mal, dado que toma por parábola o que é o relato de uma cura milagrosa; eis aqui o texto exato: «Quando Jesus passava, viu um homem que era cego desde seu nascimento; e seus discípulos lhe fizeram esta pergunta: Mestre, é o pecado deste homem, ou o pecado dos que lhe trouxeram para o mundo, que é causa de que tenha nascido cego? Jesus lhes respondeu: Não é que ele tenha pecado, nem aqueles que o trouxeram ao mundo; mas sim, é a fim de que as obras do poder de Deus brilhem nele». de maneira que aquele homem não havia sido «castigado por seus pecados», mas isso teria podido ser assim, a condição de distorcer o texto adicionando-lhe uma palavra que não se encontra nele: «por seus pecados anteriores»; não fosse a ignorância demonstrada por Papus nesse caso, poderíamos ficar tentados a lhe acusar de má fé. O que era possível no caso, é que a enfermidade daquele homem lhe tivesse sido infligida como sanção antecipada em vistas de pecados que cometeria posteriormente; esta interpretação não pode ser descartada senão pelos que levam o antropomorfismo até ao ponto de querer submeter Deus ao tempo.
Segue:
[...] o segundo texto usado por Allan Kardec não é outro que o da conversa de Jesus com Nicodemus; para refutar as pretensões dos reencarnacionistas a este respeito, basta reproduzir a passagem: «Se um homem não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus… Na verdade, eu lhes digo, se um homem não renascer da água e do espírito, não pode entrar no Reino de Deus. O que nasce da carne é carne, e o que nasce do espírito é espírito. Não lhes surpreendam de que lhes haja dito, que é mister que nasçam de novo».
E conclui:
É necessária uma ignorância tão prodigiosa como a dos espíritas para crer que se trate de reencarnação quando se trata do «segundo nascimento», entendido em um sentido puramente espiritual, e que é inclusive oposto aqui ao nascimento corporal; a concepção do «segundo nascimento», sobre a que não vamos insistir agora, é das que são comuns a todas as doutrinas tradicionais, entre as quais não há nenhuma, apesar das afirmações dos «neoespiritualistas», que tenha ensinado jamais algo que lembre de perto ou de longe a reencarnação.
2.3. A reencarnação como fato excepcional

Guénon cita, com aprovação parcial, os ensinamento da H.B do L, que era antirreencarnacionista, dizendo que eles mantêm um lastro tradicional em seu pensamento; segue a transcrição de tais trechos da irmandade:
«Quando se alcança o grande estado de consciência, cume da série das manifestações materiais, a alma nunca mais voltará à matriz da matéria, nem sofrerá a encarnação material; daí em diante, seus renascimentos são no reino do espírito. Aqueles que sustentam a doutrina estranhamente ilógica da multiplicidade dos nascimentos humanos, certamente jamais desenvolveram em si mesmos o estado lúcido de consciência espiritual; [...]  Uma educação exterior é relativamente sem valor como meio de obter o conhecimento verdadeiro. A bolota torna-se carvalho, a noz de coco torna-se palmeira; mas por miríades de outras bolotas que se tornem carvalho, ela mesma já não se torna bolota nunca mais, nem tampouco a palmeira volta a ser noz. Assim é também com o homem: desde que a alma se manifestou sobre o plano humano, e alcançou assim a consciência da vida exterior, jamais volta a passar por nenhum desses estados rudimentares… Todos os pretensos “despertares de memórias” latentes, pelos quais algumas pessoas asseguram lembrar-se de suas existências passadas, podem ser explicados, e inclusive só podem ser de fato explicados pelas simples leis da afinidade e da forma.
Segue:
Cada raça de seres humanos, considerada em si mesma, é imortal; é o mesmo para cada ciclo: jamais o primeiro ciclo sucede o segundo, mas os seres do primeiro ciclo são (espiritualmente) os pais, ou os geradores, dos do segundo ciclo. Assim, cada ciclo compreende uma grande família constituída pela reunião de diversos grupamentos de almas humanas, onde cada condição está determinada pelas leis de sua atividade, de sua forma e de sua afinidade: Uma trindade de leis… É assim que o homem pode ser comparado à bolota e ao carvalho: a alma embrionária, não individualizada, precede um homem do mesmo modo que a bolota precede o carvalho, e, do mesmo modo que o carvalho dá nascimento a uma quantidade inumerável de bolotas,  o homem proporciona por sua vez a uma infinidade de almas os meios de obter nascimento no mundo espiritual.[...] Há correspondência completa entre os dois, e é por esta razão que os antigos druidas prestavam tão grandes honras a esta árvore, que era honrada acima de todas as outras pelos poderosos hierofantes». 
E ao fim da citação acrescenta:
[...] Há nisto uma indicação do que é a «posteridade» entendida no sentido puramente espiritual;[...] Infelizmente a H. B. de L. admitia a possibilidade da reencarnação em alguns casos excepcionais, como o dos meninos nascidos mortos ou mortos de pouca idade, e o dos idiotas de nascimento. Vimos em outra parte que Mme Blavatsky admitia esta maneira de ver na época em que escreveu Isis Sem Véu. Na realidade, desde que se trata de uma impossibilidade metafísica, não poderia haver a menor exceção.
3. A reencarnação é distinta da metempsicose e da transmigração
O termo «reencarnação» deve ser distinguido de outros dois termos ao menos, que têm um significado totalmente diferente, e que são a «metempsicose» e a «transmigração»; Essas são coisas muito bem conhecidas pelos antigos, como o são ainda pelos orientais, mas que os ocidentais modernos, inventores da reencarnação, ignoram absolutamente. Entenda-se bem que, quando se fala de reencarnação, isso quer dizer que o ser que esteve já encarnado toma um novo corpo, quer dizer, que volta para estado pelo que já passou; [...] admite-se que isso diz respeito ao ser real e completo, e não simplesmente aos elementos mais ou menos importantes que puderam entrar em sua constituição sob qualquer título. Fora destas duas condições, não pode tratar-se de reencarnação.
E enfatiza os aspectos simbólicos usados pelas tradições:
Há expressões mais ou menos simbólicas que podem dar lugar a mal-entendidos, mas somente quando não se sabe o que querem dizer de verdade, e que é isto: há no homem elementos psíquicos que se dissociam depois da morte, e podem ser transmitidos a outros seres vivos, homens ou animais sem que isso tenha mais importância que o fato de que, depois da dissolução do corpo desse mesmo homem, os elementos que lhe compunham possam servir para formar outros corpos. Nos dois casos, trata-se de elementos mortais, e não da parte imperecível que é seu ser real, que não é afetado de maneira alguma por essas mutações póstumas.
E retorna a Papus:
A este propósito, Papus cometeu um equívoco de outro gênero, ao falar «das confusões entre a reencarnação ou retorno do espírito a um corpo material, depois de uma estadia astral, e a metempsicosis ou passagem feita pelo corpo material de corpos de animais e de plantas, antes de voltar para um novo corpo material»; sem falar de algumas raridades de expressão que podem ser lapsos (os corpos de animais e de plantas não são menos «materiais» que os corpos humanos, e não são «perpassados» por este, mas sim por elementos que provêm dele), não se pode de maneira nenhuma chamar isso de «metempsicose», já que a formação desta palavra implica que se trata de elementos psíquicos, e não de elementos corporais. Papus tem razão ao pensar que a metempsicose não se refere ao ser real do homem, mas se equivoca completamente sobre sua natureza; e ademais, quanto à reencarnação, quando diz que «foi ensinada como um mistério esotérico em todas as iniciações da antiguidade», confunde-a pura e simplesmente com a transmigração verdadeira.
3.1. A metempsicose 

Nesse trecho Guénon explica o que é metempsicose, segundo ele a entende:
A dissolução que segue à morte não recai somente sobre os elementos corporais, mas também sobre alguns elementos que podem ser considerados psíquicos; isto, já dissemos ao explicar que tais elementos podem intervir às vezes nos fenômenos do espiritismo e contribuir para dar a ilusão de uma ação real dos mortos; de uma maneira análoga, podem também, em alguns casos, dar a ilusão de uma reencarnação. O que importa reter, sob esta última relação, é que estes elementos (que, durante a vida, podem ter sido propriamente conscientes ou só «subconscientes») compreendem concretamente todas as imagens mentais que, ao resultar da experiência sensível, formaram parte do que se chama memória e imaginação: estas faculdades, ou melhor, estes conjuntos, são perecíveis, quer dizer, sujeitos a dissolver-se, porque, ao serem de ordem sensível, são literalmente dependências do estado corporal; por outra parte, fora da condição temporal, que é uma das que definem este estado, a memória não teria evidentemente nenhuma razão de subsistir.
E observa:
Certamente, isto está muito longe das teorias da psicologia clássica sobre o «eu» e sua unidade; estas teorias têm o defeito de estarem quase tão desprovidas de fundamento, em seu gênero quanto as concepções dos «neoespiritualistas». Outra precisão que não é menos importante, é que pode haver uma transmissão de elementos psíquicos de um ser a outro sem que isso suponha a morte do primeiro: em efeito, há uma herança psíquica tanto como uma herança fisiológica, isto é bastante pouco contestado, e é inclusive um fato de observação vulgar; mas o que muitos não se dão conta provavelmente, é que isso supõe ao menos que os pais proporcionem uma semente psíquica junto com um semente corporal; e esta semente pode implicar potencialmente um conjunto muito complexo de elementos pertencentes ao domínio da «subconsciência», além das tendências ou predisposições propriamente ditas que, ao desenvolver-se, aparecerão de uma maneira mais manifesta; estes elementos «subconscientes», ao contrário, poderão não se tornar visíveis senão em casos bem excepcionais. É a dupla herança, psíquica e corporal que é expressa na fórmula chinesa: «Você reviverá em seus milhares de descendentes», que, seguramente, seria muito difícil de interpretar em sentido reencarnacionista, embora os ocultistas e inclusive os orientalistas tenham obtido muitas outras façanhas comparáveis a esta. As doutrinas extremo-orientais consideram inclusive, de preferência, o lado psíquico da herança, e vêem nele um verdadeiro prolongamento da individualidade humana; por isso é que, sob o nome de «posteridade» (que é suscetível também de um sentido superior e puramente espiritual), associam-na à «longevidade», que os ocidentais chamam imortalidade.[...]
Segue:
Alguns feitos que os reencarnacionistas acreditam poder invocar em apoio de sua hipótese se explicam perfeitamente por um ou outro dos dois casos que acabamos de considerar, quer dizer, por uma parte, pela transmissão hereditária de alguns elementos psíquicos, e, por outra, pela assimilação a uma individualidade humana de outros elementos psíquicos provenientes da desintegração de individualidades humanas anteriores, que não têm por isso a menor relação espiritual com aquela. Em tudo isto, há correspondência e analogia entre a ordem psíquica e a ordem corporal; e isso se compreende, posto que um e outro, repetimo-lo, referem-se exclusivamente ao que se pode chamar os elementos mortais do ser humano.
E conclui:
Tudo isso, já dissemos, não diz respeito nem afeta de maneira nenhuma o ser real; é verdade que alguém poderia perguntar-se por que, se for assim, os antigos parecem ter dado uma importância tão grande à sorte póstuma dos elementos em questão. [...] efetivamente, como regra geral, estas coisas não são absolutamente indiferentes; se fossem, os ritos funerários não teriam nenhuma razão de ser, enquanto que, ao contrário, têm uma razão muito profunda. Sem poder insistir sobre tudo isto, diremos que a ação destes ritos se exerce precisamente sobre os elementos psíquicos do defunto; mencionamos o que pensavam os antigos da relação que existe entre seu não cumprimento e alguns fenômenos de «obsessão»
3.2 A transmigração

Guénon explica a transmigração como a a ascensão vertical por diversos estados de Ser:
Trata-se em efeito do ser real, mas não se trata para ele de um retorno ao mesmo estado de existência, retorno que, se pudesse ocorrer, seria talvez uma «migração», mas não uma «transmigração». O caso é, ao contrário, da passagem do ser a outros estados de existência, que estão definidos, como dissemos, por condições inteiramente diferentes daquelas às quais está submetida a individualidade humana (com a única restrição de que, enquanto se trate de estados individuais, o ser está revestido sempre de uma forma, mas que não poderia dar lugar a nenhuma representação espacial ou outra, mais ou menos modelada sobre a da forma corporal); quem diz transmigração diz essencialmente mudança de estado. É isto o que entendem todas as doutrinas tradicionais do oriente, e temos múltiplas razões para pensar que este ensino era também o dos «mistérios» da antiguidade; inclusive em doutrinas heterodoxas como o budismo, não se trata de outra coisa, apesar da interpretação reencarnacionista que ocorre hoje em dia entre os europeus. É precisamente a verdadeira doutrina da transmigração, entendida segundo o sentido que lhe dá a metafísica pura, que permite refutar de maneira absoluta e definitiva a idéia de reencarnação; e, sobre este terreno, não há nenhuma outra refutação que seja possível.
3.2.1. O caminho dos ancestrais e os ciclos cósmicos

No seu O Homem e Seu Devir Segundo o Vedânta, Guénon dá algumas interpretações do chamado Pitriyana, às quais caberia objeção segundo as interpretações ortodoxas (assim como também seu argumento lógico ou metafísico), que serão discutidos em outra postagem, mas basicamente esses são os trechos:
No final do pitriyâna, existe retorno ao “mundo do homem” (mânava-loka), ou seja, à condição individual, designada assim por analogia com a condição humana, embora necessariamente diferente, pois o ser não pode voltar a um estado pelo qual ele já passou.
E ainda:
No que se refere ao pitriyâna, diremos apenas que ele não conduz além da Esfera da Lua, de modo que, por ele, o ser não se liberta da forma, ou seja da condição individual entendida no seu sentido mais geral, pois, como já dissemos, é precisamente a forma que define a individualidade como tal.[...]
E em outro trecho Guénon afirma a relação entre a doutrina dos ciclos e a transmigração, e esse é um dos pontos mais importantes de sua doutrina, desenvolvido também por Kumârasvâmî:
Esta Esfera da Lua representa a “memória cósmica”: é por isso que ela é a morada dos Pitris, ou seja dos seres do ciclo antecedente, que são considerados como os geradores do ciclo atual, em razão do encadeamento causal de quê a sucessão dos ciclos é apenas o símbolo; e é daí que vem a denominação de pitriyâna, enquanto que dêvayâna designa naturalmente a Via que conduz aos estados superiores do ser, portanto para a assimilação à própria essência da Luz inteligível. É na Esfera da Lua que se dissolvem as formas que cumpriram o curso completo de seu desenvolvimento; e é aí também que estão contidas as sementes das formas ainda não desenvolvidas, pois, para a forma como para tudo o mais, o ponto de partida e o ponto de chegada situam-se necessariamente dentro da mesma ordem de existência. Para detalhar ainda mais estas informações, seria preciso remetermo-nos expressamente à doutrina dos ciclos; mas aqui basta dizer que, sendo cada ciclo na realidade um estado de existência, a forma antiga que deixa o ser não liberto da individualidade e a forma nova da qual ele se reveste pertencem necessariamente a dois estados diferentes (a passagem de um para outro efetua-se na Esfera da Lua, onde se encontra o ponto comum aos dois ciclos), pois um ser, qualquer que seja, não pode passar duas vezes pelo mesmo estado [...]

4. É possível estabelecer a impossibilidade metafísica da reencarnação

E por fim, o principal argumento ou pretensa demonstração apodítica do Guénon:
[...] vale contra todas as teorias reencarnacionistas, qualquer que seja a forma que tomem, e aplica-se igualmente, e sob o mesmo título, a certas concepções de matiz mais propriamente filosófica, como a concepção do «eterno retorno» de Nietzsche, e em uma palavra a tudo o que suponha no Universo uma repetição qualquer.
E explica:
Basta que um ser tenha passado por um certo estado, ainda que de forma embrionária, ou inclusive sob a forma de simples semente, para que não possa em nenhum caso voltar a esse estado, cujas possibilidades efetuou segundo a medida disposta por sua própria natureza; se o desenvolvimento dessas possibilidades parece haver-se detido para ele em certo ponto, é porque não tinha que ir mais longe em sua modalidade corporal, e o que é aqui causa engano é o fato de só considerarem essa modalidade, não levando-se em conta todas as possibilidades que, para esse mesmo ser, podem desenvolver-se em outras modalidades do mesmo estado; se levassem isso em conta, veriam que a reencarnação, inclusive em casos assim, é absolutamente inútil, o que se pode admitir, ao saber dessa impossibilidade, é que tudo o que é, quaisquer que sejam as aparências, concorre para a harmonia total do Universo.
Segue:
Esta questão é análoga a das comunicações espíritas: em ambos os casos trata-se de impossibilidades; dizer que pode haver exceções seria tão ilógico como dizer, por exemplo, que pode haver um pequeno número de casos nos que, no espaço euclidiano, a soma interna dos três ângulos de um triângulo não seja igual a cento e oitenta graus; o que é absurdo é absolutamente absurdo, e não só «em geral». Ademais, se começarmos a admitir exceções, não vemos muito bem como poderíamos atribuir-lhes um limite preciso: como se poderia determinar a idade a partir da qual um menino, se morrer, não terá necessidade de reencarnar-se, ou o grau que deve alcançar a debilidade mental para exigir uma reencarnação? Evidentemente, nada poderia ser mais arbitrário, e podemos dar a razão a Papus quando diz que, «se rejeitarmos esta teoria, é preciso não admitir exceção, sem o qual se abre uma brecha através da qual tudo pode passar».
a) A reencarnação como pura impossibilidade
Somos conduzidos assim a mostrar que a reencarnação é uma impossibilidade pura e simples; por isso é preciso entender que um mesmo ser não pode ter duas existências no mundo corporal, considerando este mundo em toda sua extensão: pouco importa que seja sobre a terra ou sobre outros astros quaisquer; importa pouco também que seja em ser humano ou, segundo as falsas concepções da metempsicose, sob qualquer outra forma, animal, vegetal ou inclusive mineral. Adicionaremos ainda: importa pouco que se trate de existências sucessivas ou simultâneas, já que alguns têm colocado esta hipótese,  de uma pluralidade de vidas que se desenvolvem simultaneamente, para um mesmo ser, em diversos lugares, em planetas diferentes;
b) E finalmente, a demonstração, que é o cerne de sua argumentação, em três pontos  e com as próprias palavras do autor:
I- A Possibilidade universal e total é necessariamente infinita e não pode ser concebida de outro modo, já que, ao compreender tudo e ao não deixar nada fora dela, não pode estar limitada por nada absolutamente; uma limitação da Possibilidade universal, posto que deve lhe ser exterior, é própria e literalmente uma impossibilidade, quer dizer, um puro nada.

II - Supor uma repetição no seio da Possibilidade universal, como se faz ao admitir que haja duas possibilidades particulares idênticas, é supor uma limitação, já que a infinidade exclui toda repetição: não é senão no interior de um conjunto finito onde se pode voltar duas vezes a um mesmo elemento, e mesmo esse elemento não seria rigorosamente o mesmo senão sob a condição de que esse conjunto forme um sistema fechado, condição que não se realiza nunca efetivamente.

III- Uma vez que o Universo é verdadeiramente um todo, ou melhor, o Todo absoluto, não pode haver em nenhuma parte um ciclo fechado: duas possibilidades idênticas seriam uma só e mesma possibilidade; para que sejam verdadeiramente duas, é necessário que difiram por uma condição ao menos, e então não são idênticas. Nada pode voltar nunca para mesmo ponto, e isto inclusive em um conjunto que é em si mesmo indefinido (e não já infinito), como o mundo corporal: enquanto se traça um círculo, se efetua um deslocamento, e assim o círculo não se fecha senão de uma maneira inteiramente ilusória, e há nisso mera analogia, mas pode servir para ajudar a compreender que, «a fortiori», na existência universal, o retorno a um mesmo estado é uma impossibilidade: na Possibilidade total, estas possibilidades particulares que são os estados de existência condicionados são necessariamente em multiplicidade indefinida; negar isto, é querer limitar a Possibilidade; é necessário, pois admiti-lo, sob pena de contradição, e isso basta para que nenhum ser possa voltar a passar duas vezes pelo mesmo estado.
E a conclusão:
Como se vê, esta demonstração é extremamente simples em si mesma, e, se para alguns dá trabalho compreendê-la, não pode dever-se senão ao fato de que lhes faltam os conhecimentos metafísicos mais elementares; para esses, talvez fosse necessária uma exposição mais desenvolvida, mas lhes rogaremos que esperem, para encontrá-la, a que tenhamos a ocasião de dar integralmente a teoria dos estados múltiplos; em todo caso, podem estar seguros de que esta demonstração, tal como acabamos de formulá-la no que tem de essencial, não deixa nada a desejar sob o aspecto do rigor.
Resposta à objeção de que rejeitar a reencarnação é limitar também a Possibilidade Universal:
Quanto àqueles que imaginarão que, ao rejeitar a reencarnação, arriscamo-nos a limitar de outra maneira a Possibilidade universal, responderemos simplesmente que não rejeitamos senão uma impossibilidade, que é nada, e que não aumentaria a soma das possibilidades senão de maneira absolutamente ilusória, por não ser nada mais que um puro zero; não se limita a Possibilidade negando um absurdo qualquer, por exemplo dizendo que não pode existir um quadrado redondo, ou que, entre todos os mundos possíveis, não pode haver nenhum onde dois e dois somem cinco; o caso é exatamente o mesmo. Há gente que, nesse campo de idéias, tem estranhos escrúpulos: assim Descartes, quando atribuía a Deus a «liberdade de indiferença», por temor a limitar a onipotência divina (expressão teológica da Possibilidade universal), e sem entender que essa «liberdade de indiferença», ou a escolha em ausência de toda razão, implica condições contraditórias; diremos, para empregar sua linguagem, que um absurdo não o é tal porque Deus o quis arbitrariamente, mas sim, ao contrário, é porque é um absurdo pelo qual Deus não pode fazer que seja algo, sem que isso atente contra sua onipotência, posto que absurdo e impossibilidade são sinônimos.
E por fim, para evitar supostas confusões sobre os Estados Múltiplos do Ser, o metafísico francês arremata:
Estes estados [Estados Múltiplos do Ser] podem ser concebidos como simultâneos ou sucessivos, e que inclusive, no conjunto, não se pode admitir sua sucessão senão a título de representação simbólica, posto que o tempo não é senão uma condição própria de um destes estados, e posto que inclusive a duração, sob um modo qualquer, não pode ser atribuída senão a alguns dentre eles; se queremos falar de sucessão, é necessário tomar cuidado para deixar claro que isso se dá somente em sentido lógico, e não no sentido cronológico. Por esta sucessão lógica, entendemos que há um encadeamento causal entre os diversos estados; mas a relação mesma de casualidade, se a tomarmos segundo seu verdadeiro significado (e não segundo a acepção «empirista» de alguns lógicos modernos), implica precisamente a simultaneidade ou a coexistência de seus termos. Além disso, é bom precisar que inclusive o estado individual humano, que está submetido à condição temporal, pode apresentar, uma multiplicidade simultânea de estados secundários: o ser humano não pode ter vários corpos, mas, fora da modalidade corporal e ao mesmo tempo, pode possuir outras modalidades nas quais se desenvolvem também algumas das possibilidades que contém.

E uma última observação:
Isto nos conduz a apontar uma concepção que se relaciona bastante estreitamente com a da reencarnação, e que conta também com numerosos partidários entre os «neo-espiritualistas»: segundo esta concepção, cada ser deveria, no curso de sua evolução (já que aqueles que sustentam tais idéias são sempre, de uma maneira ou de outra, evolucionistas), passar sucessivamente por todas as formas de vida, terrestres e outras. Uma teoria desse tipo não expressa mais que uma  manifesta impossibilidade, pela simples razão de que existe uma infinidade de formas vivas pelas quais um ser qualquer jamais poderá passar, posto que estas formas são todas as que estão ocupadas por outros seres.
Pois sim, nas próximas postagens vou apresentar as perspectivas ortodoxas hindus sobre o tema segundo suas escrituras e tentar relacioná-las com os autores perenialistas apresentados aqui e em postagens anteriores para ver em que pontos concordam ou não, e ainda adiante vou fazer um comentário sobre a refutação guenoniana desde o ponto de vista propriamente metafísico.