Friday, January 5, 2018

As doutrinas de renascimento - conclusões (parte II)



Nâsato vidyate bhâvo (O asat não tem existência)
Nâbhâvo vidyate satah (O sat não tem não-existência)
Ubhayor api drshto ‘ntas (Essas duas proposições são vistas com certeza)
Tvanayour tattva darshibhih (Por aqueles que percebem a verdade)

Bhagavad Gîtâ 2,16

Eu fiz e refiz essa postagem inúmeras vezes, indo pelo caminho puramente lógico e metafísico. Contudo, decidi fazer a coisa de forma bem mais simples e direta: vou apenas indicar que a doutrina do Guénon e do Kumâraswâmî sobre o tema do renascimento é interpretação livre do Veda, original e diferente das expressas pelos âchâryas hindus, e que é parcialmente fundada na interpretação advaita-vedânta de Shankarâchârya; de forma que a visão do Guénon sobre a Possibilidade Universal é nada mais que a chamada doutrina mâyâvada, já conhecida entre os hindus, e que tem já histórica oposição em diversas escolas, por diferentes ângulos. Para estudarem essas refutações leiam Ramanujâchârya, Madhwâchârya, Vadirajâchârya ou Abhivavaguptâchârya.

Vamos aos três trechos da demonstração guenoniana destacados na postagem anterior:
I- A Possibilidade universal e total é necessariamente infinita e não pode ser concebida de outro modo, já que, ao compreender tudo e ao não deixar nada fora dela, não pode estar limitada por nada absolutamente; uma limitação da Possibilidade universal, posto que deve lhe ser exterior, é própria e literalmente uma impossibilidade, quer dizer, um puro nada.
As categorias dadas diretamente nos Upanishades são sat, asat, e sat-âsat. 

A Possibilidade Universal, usada por Guénon, é o que os vedânticos chamam de Mâyâ, que segundo Shankarâchârya não é nem ‘sat’ nem ‘asat’, e portanto os proponentes dessa doutrina dizem que é anirvachanîya (inefável). 

A processão do Ser Real (Âtman) pelos diversos Graus de Ser (na terminologia guenoniana) seria assim uma produção dessa Mâyâ. Quando vista desde o ponto de vista do Âtman, essa Mâyâ se chama avidya (ignorância). Essa é em linhas gerais a doutrina que se chama mâyâvâda. O universo é uma processão do Ser Real por estados de cumulativa obscuridade cruzada (limitações compossíveis, negações) ou ignorância de Si Mesmo (ajñâna). A libertação (mukti) seria a eliminação súbita ou gradual (kramamurti) desses véus e a identidade suprema com o Brahman (eliminação que na verdade também é irreal, pois a ignorância também é irreal).

Bom, comecemos pensando que, se Mâyâ não é nem sat nem asat, nem satâsat, como é que alguém pode deduzi-la por inferência, se ela não se refere a nenhuma das categorias de conhecimento? 

Portanto, quando Guénon diz que a Possibilidade Universal é infinita, ela só pode ser Infinita Possibilidade e não Infinita Realidade, Verdade ou Existência (sat). Assim, não tendo essa positividade metafísica, a Mâyâ só pode ser destituída de um Si Mesmo (Âtman), de maneira que a postulação da existência do universo precisaria logicamente, e precisa de fato de um Ato Universal deliberativo, vindo do Brahman. E é assim que está no Veda quando se diz, em frase memorável, que o Brahman quis tonar-se muitos (bahu syâmi).

Sobre esse tema muita confusão vem talvez da dificuldade de entender camadas da linguagem: os trechos excepcionais do Veda que dizem que 'no princípio era asat', na verdade dizem, como explicam os âchâryas nos Brahma-Sûtras, que há dois modos de usar o termo sat, e que em comparação com o sat de 'todos esses seres', divididos entre jîvas (sencientes) e jagad (insencientes), Brahman coloca-se como se fosse asat (e é daí que vem a expressão neti-neti, pois Brahman não é uma jîvâ, nem é jagad), pois não é afetado pelas limitações daqueles, e é desse modo, um tanto metafórico, esguelhado, talvez poético mesmo, que é compreendido e chamado de Não-Ser (Brahma-Sûtras I, 4, 15).

Portanto, segundo o Veda o Brahman é melhor e mais apropriadamente compreendido como sat, ainda que de seja um sat dito de maneira inefável e, sei lá, análoga. Deve ser  portanto compreendido como asat de forma metafórica em relação ao cosmos. Ao passo que o cosmos  ou a totalidade, pode ser compreendida mais apropriadamente como satâsat, ou, de forma metafórica, como sat.

Assim, se formos pensar bem, Mâyâ não tem condições de compreender sat e transcendê-lo positivamente (espalhando ignorância e ilusão), pois se fosse o caso ela correria por fora do fio ou coluna que liga Brahman a todos os seres, tornando-se um abismo entre duas positividades. Em alguns casos, quando contemplamos sob certo aspecto,  e sob efeito da fraqueza mental humana, chega a parecer que de fato há uma força de absurdo avançando por cima do Ser - Plotino, o filósofo grego, digamos aqui de passagem, chega perto de posições desse tipo, absurdistas, gnosticistas, dando uma efetividade ao não-ser da matéria, e depois, em outros lugares, recua e notamos que foi uma espécie de fraqueza da expressão.

No fim das contas, não tem sentido dizer que a Possibilidade Universal pode ou não pode ser limitada em si mesma, como se fosse entidade positiva ou uma legítima opositora lógica do asat, pois ela não tem um ‘Si Mesmo’ que possa ser sujeito de limitações, e quando se diz que é ilimitada, ela é ilimitada enquanto possibilidade objetiva, criada, desde o ponto de vista humano, para entender a amplitude da Icchâ-Shakti (Vontade Divina) que nos parece 'bifurcada'.
II - Supor uma repetição no seio da Possibilidade universal, como se faz ao admitir que haja duas possibilidades particulares idênticas, é supor uma limitação, já que a infinidade exclui toda repetição: não é senão no interior de um conjunto finito onde se pode voltar duas vezes a um mesmo elemento, e mesmo esse elemento não seria rigorosamente o mesmo senão sob a condição de que esse conjunto forme um sistema fechado, condição que não se realiza nunca efetivamente.
As possibilidades particulares são ou jagad ou jîvâs. Que a jîvâ não pode ser ao mesmo tempo duas jîvâs é óbvio; que a jîvâ é idêntica a si mesma é também óbvio. Que ela seja idêntica ao jagad, ou que o jagad seja o si mesmo da jîvâ não é verdade. Ou seja, a coisa é simples: as jîvâ mantém sua unidade no lînga-sharira e nas disposições do buddhi individual cruzando os diversos mundos e sendo destruido na pralaya, essa é sua ‘possibilidade particular’ e não alguma composição com o corpo de cinco elementos.
III- Uma vez que o Universo é verdadeiramente um todo, ou melhor, o Todo absoluto, não pode haver em nenhuma parte um ciclo fechado: duas possibilidades idênticas seriam uma só e mesma possibilidade; para que sejam verdadeiramente duas, é necessário que difiram por uma condição ao menos, e então não são idênticas. Nada pode voltar nunca para mesmo ponto, e isto inclusive em um conjunto que é em si mesmo indefinido (e não já infinito), como o mundo corporal: enquanto se traça um círculo, se efetua um deslocamento, e assim o círculo não se fecha senão de uma maneira inteiramente ilusória, e há nisso mera analogia, mas pode servir para ajudar a compreender que, «a fortiori», na existência universal, o retorno a um mesmo estado é uma impossibilidade: na Possibilidade total, estas possibilidades particulares que são os estados de existência condicionados são necessariamente em multiplicidade indefinida; negar isto, é querer limitar a Possibilidade; é necessário, pois admiti-lo, sob pena de contradição, e isso basta para que nenhum ser possa voltar a passar duas vezes pelo mesmo estado.
Tendo portanto comentado a Possibilidade Universal desde o ponto de vista das escrituras, evito mergulhar de cabeça no turvo campo lógico, insuficiente quando o assunto em si mesmo não é matéria de inferência (ainda que Guénon o faça).  Ao transferimos tudo para o campo da tal Possibilidade Universal, dentro da qual cabem coisas que ninguém sabe, que não têm nenhuma medida com nada, e que está inclusive acima do Ser (que a limita), não há base nenhuma para pensar.

Ademais, se é a postulação dialética do nada absoluto que permite-nos subir até a esfera dos princípios, ficamos totalmente sem ferramenta (e sem tapete) quando Guénon nos diz que o nada absoluto se opõe é à Possibilidade Universal e não ao Ser, sem demonstrar onde é que ele conseguiu instrumentos para optar pelo seu ponto de vista ao invés do contrário.

Resta-nos, portanto, apenas olhar para a interpretação de Kumâraswâmî sobre a transmigração como ocorrendo entre dois ciclos que são, por sua vez, os Estados de Ser da teoria guenoniana. A teoria deles é a seguinte:

1) Há um dilúvio (ou mini-pralaya) entre cada manvantara.
2) Esse dilúvio elimina o nosso mundo dos cinco elementos e sobe até perto da esfera da lua destruindo todo o resto que está na atmosfera.
3) As jîvâs ficam lá na esfera da lua (sendo alimento para os deuses), esperando os patriarcas  que vão chegar no dilúvio, e que só voltam ao mundo individual dos cinco elementos físicos no manvantara seguinte.
4) Essa transição entre dois manvantaras é símbolo para a transição entre dois Estados de Ser segundo a representação geométrica guenoniana.

É uma interpretação simbólica interessante, e explicaria algumas coisas. Contudo, deve ser colocada no seu lugar apropriado.

A primeira tese, de que há um dilúvio entre cada manvantara (além dos dois grandes dilúvios ao fim do kalpa, e ao fim da vida do Brahmá), é uma interpretação (interessante, inclusive), e Kumaraswami mesmo sabe disso: não há narrativa purânica, nem confirmação alguma de que o tal dilúvio ocorra regularmente em todos os 14 manvantaras, ou quiçá em ciclos ainda menores como yugas. Ademais, no samkhyakarika é dito, por exemplo, que o linga-sharîra é criado no 'começo' e destruído somente no pralaya, o que leva a crer que sua unidade se mantém por um kalpa inteiro, e, como ele é feito de elementos sutis, nada impede que volte ao mundo físico no mesmo manvantara, ou seja, antes da hipótetica destruição dos cinco elementos contemplada por Kumâraswâmî. 

Que a transição entre dois manvantaras seja uma transição entre dois Estados de Ser, ao modo guenoniano, é também uma possibilidade interpretativa criativa e fértil, contudo, nenhuma dessas interpretações é claramente expressa por nenhum âchârya védico. Podemos elocubrar simbolicamente que quando se diz que as jîvâs viram alimento para os devas, elas perdem a sua individualidade original e descem com outro envoltório (essa especulação eles nem fazem, mas já faço logo, por via das dúvidas). Isso é pouco provável pois a disposição do linga-sharîra se dá com elementos sutis próprios, constantes e individuais que vão manter a unidade do buddhi (diferenciando-se da prakrti) durante todo o processo.

É possível dizer que a doutrina é a mesma dos kardecistas? Não. Há similaridades estruturais, digamos, na descrição, e uma montanha de diferenças relevantes e incontornáveis. Contudo, o erro guenoniano foi tentar ocultar até o que era francamente parecido, o que é uma atitude muito estranha e muto pouco espiritual inclusive.  Schuon chegou a confessar em suas observações que era frustrante tentar ajudar o Guénon contra os teósofos, e vê-los ter mais razão sobre o tema. E ceteris paribus a doutrina dos teósofos está de fato mais próxima das descrições védicas (esotéricas ou não) do que a do Guénon, que é um modo de representar a coisa (geometria tridimensional) completamente inusitada nas fontes ou grandes nomes tradicionais hindus.

As provas lógicas do Guénon contra a reencarnação, baseadas no conceito de Possibilidade Universal e sua ilimitação (ou limitação), no meu modesto entendimento, não podem levar à definição de uma identidade unívoca das possibilidades particulares, pois na ordem da razão humana o possível é inferido a partir do real e não o contrário. Tampouco uma suposta intuição direta do Guénon resolveria (segundo ele todo possível é real, e somente o metafísico é real, então concluam algo com isso); uma intuição individual tem de ser corroborada pela autoridade da shruti segundo métodos muito bem delimitados de hermenêutica e dialética, de forma que ele segue em conflito com muitos âchâryas e comentaristas tradicionais hindus que resolvem a questão de outras forma como, por exemplo, usando a vontade ativa do Brahman ao invés de uma processão de negações.

É necessário, e justo, dizer que tanto Guénon, como Shankârâcharya, não negam que, desde o ponto de vista da não-dualidade, a Mâyâ é também Icchâ-Shakti de Brahman  (Guénon de fato o nota em seus livros). Contudo pede-se implicitamente aqui a adesão ao bilogismo advaitino (solução não-védica, herdada do budismo de Nagarjuna), que é apenas uma das formas de resolver a questão. Se os não-dualistas mâyâvadas entendem que, em algum sentido, a Shakti é poder transitivo do Ato Universal, um poder de Brahman, é inevitável fixar que, para os seres, essa Shakti se torna uma 'opressão' ontológica e gnosiológica chamada avidya. A questão pode deslizar indefinidamente, e entreter-nos em definições circulares, e pode inclusive levar a acreditar que o ponto de vista do Guénon é indestrutível, qual o deus grego Proteu, ganhando o direito de defender contradições, pulando de um nível para outro quando pressionado logicamente e mudando de forma ao ser atacado.

Em alguns pontos o que parece separar as águas é a questão axiológica ou ética. Guénon responderia que a dificuldade é meramente humana, o que nos remete à necessidade de um discurso e autoridade não-humana, eterna, que é o próprio Veda. Se Guénon adere a essa autoridade, para ser coerente, ele deveria se colocar como representante de uma das escolas ortodoxas de interpretação do Veda e falar em nome delas e não como muçulmano.

Contudo, e esse é um bom ponto, o Brahman guenoniano segue sendo livre de qualquer limitação, porém não livre para limitar (svâtantrya), a não ser esquecendo de Si mesmo, desconhecendo-se enquanto limita, ou desconhecendo as limitações que produziu (esquecendo inclusive as possibilidades particulares irrepetíveis). O Brahman guenoniano quando lembra de Si Mesmo desconhece o mundo, e inclusive desconhece a obra guenoniana, seus argumentos, desconhece o próprio Guénon e sua preocupação com a Modernidade e suas crises, é completamente indiferente.

A minha conclusão sobre o punarjanman, ainda que pouco esclarecedora, parece-me que é a mais justa e a única possível, não tendo intuição direta sobre a coisa. Basicamente, após alguns anos meditando sobre a questão, sou levado a dizer que não há uma definição exata, matemática ou dogmática do punarjanman: o conceito dá-se em campo operacional e simbólico flexível, escorrega nas definições, pode ser matéria de fé ou de autoridade escritural entre hindus, ou ainda matéria de conhecimento direto yóguico, dizem. Lemos nas escrituras hindus, como o Garuda Purâna, por exemplo, um rico quadro imagético das punições dos infernos e das delícias dos paraísos. O Manusmriti, por outro lado, é rigoroso e legalista, descreve renascimentos baseando-se em infrações muito exatas. Os Samhitas pouco ou nada dizem sobre o tema -- o que Evola não deixou de observar. O Vedânta narra sobre o yogue sendo puxando pelo Homem de dentro do Sol e saindo do samsâra, lemos no Mahâbhârata as operações da lei invisível do karma ligando todas as esferas do Universo: devas, humanos e animais interagindo e trocando de lugar numa ciranda estonteante de personagens e de sacrifícios (yajñas) em inúmeras esferas, onde se confundem as limites nos apresentando o tempo eterno de infinitas possibilidades.

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