Friday, July 26, 2013

Itinerário da Mente para Deus

Para compreender o contexto desse pequeno livro sobre o qual vamos escrever deve-se remeter um pouco ao franciscanismo, que foi um importante movimento espiritual no Ocidente entre séculos XI e XI. Alguns elementos condicionantes de sua formação foram:

a) A cristalização das estruturas hierárquicas da igreja, dividindo a comunidade entre clero, monges e leigos de forma muito rígida; 
b) O surgimento de movimentos populares que rejeitavam a hierarquia e uso da riqueza por parte de monges e do clero; 
c) Havia uma apelação à volta dos ideias primitivos da igreja, pregando a pobreza, e às vezes a rejeição ao corpo e ao mundo. 

Francisco de Assis surgiu como um catalizador desses sentimentos, acolheu-os e integrou  suas tendências mais válidas. Coisas como "viver segundo o evangelho" e "sustentar-se com o próprio trabalho" foram alguns dos ideais acolhidos, ao passo que outros elementos característicos daqueles movimentos como "pessimismo existencial" e a "insubordinação" foram rejeitados.

São Boaventura,  (1217-1274) herdeiro direto desse ideal "crítico", foi responsável por captá-lo e transportá-lo ao nível da tradição intelectual cristã. Criticando e polemizando contra o aristotelismo e contra a pretensa proclamação "autonomia" seja da natureza ou da razão em relação a Deus, ofereceu uma polaridade vigorosa ao escolasticismo. Inspirando-se na tradição platônico-agostiniana ele traz à tona a noção de que não só a razão em sua ascensão conceitual depende de Deus diretamente, mas que toda a criação é signo de Deus em diversos níveis. O aristotelismo havia reduzido Deus a "motor imóvel" e causa final das coisas, que, durante todo o processo cognitivo dos filósofos  se mantinha suspenso ou afastado. 

É no espírito de retomada mística da ascensão divina e de crítica a pretensão de independência filosófica que Boaventura escreve esse pequeno livro em 7 capítulos. E tanto é assim que o livro foi concebido em um intuição mística semelhante à de Francisco de Assis. Buscando a paz prometida pela revelação cristão, Boaventura sobe ao monte Alverna e, inspirado na visão que Francisco de Assis tiveram do anjo de seis asas, lhe surge a intuição da obra. Boaventura entende que cada um das asas deve ser compreendida como um dos seis estágios de progressiva iluminação da alma em direção a Deus e esses estágios são explicados no livro.

Toda a realidade constitui uma escada para ascender a Deus. Para chegar à realidade espiritual que está em nós, é preciso começar contemplando os vestígios corpóreos e suas razões seminais. Daí, o autor estabelece uma série desses vestígios que seriam baseados em inúmeras tríades presentes na própria estrutura das coisas; os elementos do mundo criado vão sendo enumerados segundo suas analogias à tríade corpo-mente-espírito, tríade representada pelo próprio Cristo em certo sentido. A própria constituição interna e ontológica das coisas se dá através de outra tríade: essência-potência-presença; em todos os cantos vemos essa relação, como no fato de que Cristo se expressou de três formas dando origem a três teologias: simbólica (sensível), literal (inteligível) e mística (supra-mental); a tríade desdobrada pelo Alfa e o Ômega, dá origem à héxade: seis dias da criação  seis degraus do trono de salomão, seis asas do Serafim de Isaías, seis dias até o senhor chamar Moisés do meio da nuvem, seis dias até Cristo chamar os discípulos e se transfigurar, seis planos de ascensão:  sentido, faculdade imaginativa, razão, intelecto, inteligência e a chamada sindérese. Boaventura vai desenhando um complexo arcabouço metafísico e físico constituído pelo número três:
"Todas essas coisas, no entanto, são traços nos quais podemos ver o reflexo de nosso Deus.  Uma vez que a apreensão das espécies é uma igualdade produzida no meio e então imprimida no órgão mesmo, e por meio dessa impressão, se é levado ao princípio e à fonte--quer dizer, ao objeto de conhecimento--manifestamente, segue-se que a luz eterna gera, a partir de si mesma, uma semelhança ou radiância 'coigual' que é consubstancial e coeterna [...] Podemos determinar que todas as criaturas desse mundo sensível levam a mente daquele que contempla e obtêm sabedoria à Deus. Pois são sombras, ecos, pinturas, traços, simulacros e reflexos daquele Primeiro Princípio." (cap. II)
Ao sair da contemplação dos fatos do macrocosmo entra-se no microcosmo. A mente do homem fornece também as mesmas equivalências trinitárias que são símbolos da realidade da trindade última. A mente, composta de memória (que lembra da Eternidade), a inteligência (que concebe a Verdade) e a vontade (que aspira ao Bem) refletem a Trindade Divina. Deus, é pura Memória, Verbo e Vontade. A mente e sua ciência natural (que busca a causa do Ser) se remete ao Pai; a ciência racional (que busca o princípio inteligível) se remete ao Filho; e a ciência moral (que busca a ordem da vida) se remete ao Espírito Santo.

Se esse Princípio está em todo lugar, simbolizado em todas as dimensões, por que é que tão poucas pessoas a percebem? Ora,  distraídas por cuidados diversos, as pessoas não entram em si mesmas através da memória; obscurecidas por fantasmas as pessoas não retornam a si mesmas pelas inteligência; e instigadas pela concupiscência nunca retornam a si mesmas pelo desejo da doçura e da felicidade espiritual. De maneira que, quando caem, pessoas ficam ali prostradas até que alguém as ajude; a alma falhando em suas tentativas de se elevar da intuição de si mesma para a verdade Eterna, requer que a Verdade, tendo assumido a forma de Cristo, faça de si uma escada, consertando a primeira escada que havia sido quebrada em Adão.

Tendo contemplado Deus nas coisas foras de nós através de seus vestígios, e nas coisas dentro de nós através de sua imagem, é preciso ir além disso, é preciso contemplá-lo nas coisas além de nós, é preciso contemplá-lo em sua unidade primária cujo nome é Ser através de sua luz. Os primeiros entraram no átrio do tabernáculo, os segundos no "sanctum", o terceiro entrará no Santo dos Santos. Boaventura, observa que há então dois modos de contemplação das coisas invisíveis e eternas de Deus. A primeira  é pela contemplação de seus atributos essenciais, a outra pelas propriedades das Pessoas. A primeira se refere ao Antigo Testamento (Eu sou o que sou), a segunda ao Novo Testamento, que revela uma pluralidade Pessoas sob o nome de "Bem". 

O Ser é o mais puro e absoluto, é o primeiro e o último, é a origem e a causa final de tudo. Através dessa unidade simples, dessa verdade verdade pura e dessa bondade supinamente sincera, há nele todo o poder, toda causalidade e toda comunicabilidade, e portanto, dele, por ele e nele todas as coisas estão. E ver isso perfeitamente é ser abençoado. 

No entanto, assim com o Ser é a raiz e o nome da visão das características essenciais, o Bem é o principal fundamento de nossa contemplação da Divina Trindade. O Bem é auto-difusivo, mas a suprema difusão pode ocorrer somente se ela for atual, intrínseca, substancial e hipostática, natural e voluntária, livre, necessária e perfeita. E, a não ser que o Bem seja eternamente uma produção que é atual e consubstancial, amada em si mesma  e co-amada como o são o Pai, o Filho e o Espírito Santo, de maneira alguma isso seria o Bem último, pois não haveria a difusão suprema, uma vez que a difusão temporal na criação nada mais é que "puntiforme" em relação a imensidão da bondade eterna. Boaventura assume uma linguagem sublime, porém poderosa para descrever essa realidade, ao mesmo tempo enfatizando a impossibilidade de fazê-lo com perfeição.

O texto termina com a lembrança da aparição do serafim a Francisco de Assis, que, segundo Boaventura, foi o modelo perfeito de contemplação e ação,  e incita ao abandono de todas operações intelectuais uma vez que "toda a altura de nossa afeição deveria ser transferida e transformada em Deus"; cita Dionísio Areopagita sobre as verdades que estão além da compreensão humana e admoesta que, uma vez que natureza não tem poder sobre essa matéria, é preciso menos "língua" e mais júbilo interno, menos palavras e escritos e mais essência criativa (Pai, Filho e Espírito Santo).