Sunday, December 23, 2018

Sobre o Raja-Dharma

Yuddhistira, o mais velho dos pândavas, após ter vencido a famosa guerra do Mahabharata, e matado muitos de seus parentes, fica melancólico e abatido. Condição semelhante à de Árjuna, já bem conhecida por meio do Bhagavad Gîtâ. 

O conselheiro da melancolia de Árjuna foi o próprio Krishna, que lhe entregou segredos esotéricos que iam muito além do horizonte da batalha dinástica. Yuddhistira recebe agora a instrução dos anciães, dos sábios, dos amigos, irmãos e o episódio gera excelentes reflexões sobre o tema do raja-dharma: a lei dos reis. 

Yuddhistira seria coroado rei por ser o primogênito do pândavas, mas fica cheio de dúvidas e medos, os racionaliza, e, diante da assembleia dos nobres, lamentando ter entrado na guerra, ter causado tantas mortes, acusa a si mesmo: diz que seria melhor terem vivido de esmolas do que desfrutar uma vitória de uma guerra por um reino material e elogia a vida espiritual dos ascetas da floresta (Raja Dharma, 7-34): 
Vergonha da conduta dos kshatriyas, vergonha da força que seus peitos ostentam. Vergonha da intolerância que nos levou a esta calamidade. Perdão, autocontrole, pureza, ausência de inimizade, ausência de egoísmo, não-violência e veracidade nas palavras devem ser louvados. Aqueles que se retiram para floresta são os que de fato praticam isso. Foi por ganância e ilusão que recorremos à arrogância e à insolência. Chegamos a esse estado por causa da nossa ânsia por um reino insignificante. Mesmo a soberania sobre os três mundos não nos deleitará agora, pois aqueles de nossos parentes que desejavam a carne da terra foram mortos. [...] nossos parentes estão mortos, continuamos vivos. Nós não somos cães. Mas feito cães, brigamos pela carne. Essa carne agora foi destruída e aqueles que desejavam comê-la também.
A fraqueza de Yuddhistira desaponta a todos, e iniciam um debate em defesa de Kama, Artha e Dharma. Ora, se o rei desistisse da vida mundana e se refugiasse na floresta como um asceta ele provaria que a batalha fora em vão, assim como a fidelidade de todos os que lutaram do lado dos Pândavas, inclusive o próprio Krishna.

Se o rei desiste de seu dharma, quem é que vai desfrutar do mundo? Quem é que vai manter a ordem da sociedade? De que valeu toda a luta? Estavam todos enganados e iludidos por egoísmo? Os capítulos seguintes trazem trechos magnânimos defendendo diferentes posições sobre o tema. O excelente Bhîma, o segundo dos pândavas, por exemplo, faz estas observações censurando o irmão:
Ó rei! Vossa compreensão se obscureceu feito a de um estudioso estúpido dos Vedas que recita passagens sem notar seu verdadeiro significado. Ó touro da linhagem de Bharata! Se é vossa decisão serdes preguiçoso e censurardes o dharma dos reis, de que nos valeu a destruição dos filhos de Dhritarashtra? Perdão, compaixão e não-violência - ninguém que trilhe o caminho dos kshatriyas é amarrado por isso, com exceção de vós! Se soubéssemos que vossas intenções eram desse tipo, nunca teríamos pegado em armas e matado. Teríamos vagado pelo mundo pedindo esmolas até o dia de deixar esse corpo, e esta terrível batalha entre os reis não teria ocorrido.
E oferece seu ponto de vista sobre o tema:
Aqueles mortos por nós eram maus. Eles eram um obstáculo para estabelecimento do reino. Ó Yudhishthira! Tendo agora causado sua morte, devemos seguir o dharma e aproveitar a terra. Somos comparáveis ao homem que, cavando um poço, desiste de sua tarefa antes de chegar à água e só fica sujo de lama. Somos comparáveis ao homem que sobe numa árvore alta para colher mel, mas cai e morre antes de conseguir obtê-lo. Nós somos comparáveis ao homem que começa uma grande jornada com grandes esperanças, mas que se desespera e retorna. Ó supremo da linhagem de Kuru! Nós somos comparáveis ao homem que mata seus inimigos e depois se mata. Nós somos comparáveis ao homem que tem fome, mas tendo obtido comida, desiste de comer. Somos comparáveis ao homem movido pelo desejo, que se casa com  uma mulher bonita, e não realiza o ato. Somos nós que devemos ser censurados, sim. Somos nós que somos estúpidos, ó rei! Ó descendente da linhagem de Bharata! Nós vos seguimos porque sois o mais velho.  Nós temos a força das armas! Nós cumprimos o nosso aprendizado! Mas agora seguindo as palavras de um eunuco, nós nos tornamos também impotentes! Nós somos o refúgio daqueles que não têm refúgio. Mas agora nossa prosperidade será destruída e nossos objetivos não serão bem-sucedidos. Quando o povo nos vir nessa condição o que pensarão? [...] Aqueles que têm sabedoria não recomendam a renúncia em uma situação como essa. Aqueles que têm discernimento entendem que a renúncia nesse caso é uma transgressão do dharma. Portanto, como podeis deixar-vos cair num estado não recomendável para vossa estatura?
A discussão segue e Vaishampayana, um dos narradores famosos, também censura o rei:
Ouvi, ó rei. Por causa da vossa confusão, tudo está agora incerto. Estamos todos perplexos e fracos. Sois o rei do mundo. Sois realizado nos textos sagrados. Como podeis ser derrotado pela confusão e tristeza agora, como se homem inferior fosseis?
Árjuna também o desaconselha a abandonar o raja-dharma:
Ó grande rei! Conquistai o mundo conquistando vossos sentidos e dai suporte aos ascetas que se vestem de ocre, aos que vivem na floresta vestidos com peles de animais, aos que andam vestidos em farrapos, aos que andam nus, aos que raspam a cabeça, aos de cabelos engrenhados. Quem é nesse mundo superior àquele que mantém aceso o fogo sagrado, realizando sacrifícios e fazendo doações? Dia após dia, dar suporte [ao mundo]. Não há dharma superior a esse. 
Vaishampayana nos lembra poeticamente do dharma do tempo (Kalâ):
Ó rei! Lembrai-vos do dharma dos kshatriyas e não vos entristeçais inutilmente. Ó touro entre os kshatriyas! Foi seguindo seu próprio dharma que aqueles outros kshatriyas foram mortos. Eles desejaram prosperidade completa e fama na terra. Eles seguiram a lei da morte e, foi pela lei do tempo que foram mortos. Eles não foram mortos por vós, Bhîma, Árjuna ou os demais. Seguindo o dharma do tempo, esses seres vivos desistiram de suas vidas. O tempo não tem mãe nem pai, nem é parcial com esse ou aquele. Ele é testemunha dos atos cometidos. Touro entre os homens, vós fostes instrumento do tempo.  O tempo, senhor de tudo, usa os seres para matar outros seres. O tempo é a essência das ações, o tempo é testemunha do bem e do mal. O tempo traz felicidade e infelicidade. E é o tempo que produz os frutos.
A discussão é rica e tem diversas histórias e ensinamentos (como todo o Mahabharata), e termina por estabelecer o raja-dharma e a dimensão apropriada dos purusharthas. Ao longo do caminho, argumentos persuasivos dos dois lados (a favor e contra a renúncia) ganham voz, inclusive alguns argumentos adhármicos, para reflexão. 

O conceito de danda ou cajado chama a atenção. O cajado é o arquétipo da justiça e da punição-- pode ser interpretado de muitas formas e em muitos contextos também, não deve ser transposto mecanicamente para teorias políticas do dia. Apenas notemos que em alguns casos o ahimsa, considerado dharma supremo em várias partes do Mahabharata, é rejeitado justo por ser nocivo ao dharma. 

A discussão, para quem vive no nosso contexto contemporâneo, mostra ao menos que o dharma é complexo, não é uma cartilha com respostas fáceis. A discriminação parte sempre de um fato concreto, de uma dor, ou de um problema existencial, que vai ser  debatido pela comunidade dos sábios, exposto a diferentes pontos de vista. A fraqueza humana de Yuddhistira, o rei do mundo, o supremo conhecedor do Dharma, também nos ensina boas lições.

É bom notar que muitos instrutores espirituais de hoje ignoram os diferentes dharmas aplicáveis a diferentes naturezas, e pregam uma via 'espiritual' isolada do contexto real da vida das pessoas, como se todos devessem seguir ideais abstratos, amputando em absoluto sua 'agressividade' em prol de ideais de docilidade e conciliação, o que nem sempre é dhármico. 

O próprio Yuddhistira, ao final, trata de colocar as coisas em perspectiva correta, observando que não é possível renúncia alguma quando o sujeito está tomado por dúvida ou dominado por ignorância e escuridão, mas só quando o intelecto, vendo claramente, estabelece um sankalpa, uma resolução:
A resolução é a base de tudo. A resolução diz respeito a objetos materiais. Todos os objetos materiais obtém sucesso ao serem adquiridos. Estes formam a base para os três purusharthas. Moksha é sair do mundo. O dharma protege o corpo e o artha é desejado por causa do dharma. Kama leva ao prazer sexual. Mas tudo isso é pó. Deve-se buscar o purusharta que estiver ao alcance e não apenas descartar mentalmente. Começando a busca com o dharma e terminando com kama. A renúncia só deve ocorrer quando a pessoa estiver livre de tamas. (Raja Dharma, 123)

Saturday, August 25, 2018

Sobre o conceito de Tradição

Há tempos nesse blog, eu não em exato defendia, mas usei instrumentalmente, e era simpático à noção de Tradição em René Guénon. Hoje quero desfazer essa minha associação, assim como fiz em relação ao tema do "punarjanman" (renascimento) em série de postagens antiga. Vamos lá.


Guénon entende que a 'Tradição' tem três elementos fundamentais¹:  

1) Unidade transcendente: pois o princípio da realidade mesma é único.
2) Vínculo sobre-humano: a tradição não se vincula a iniciativa nem a acréscimo humano.
3) Transmissão: a tradição é uma cadeia ininterrupta desse vínculo sobre-humano.

Algumas questões de ordem epistemológica:

1) Que "o princípio da realidade é único" é admissível; mas

a) não implica que as religiões enquanto tais tenham necessariamente o mesmo vínculo com esse princípio. E há o risco do argumento circular, tradições estão ligadas a essa unidade porque são verdadeiras, e são verdadeiras porque estão ligadas a essa unidade.

b) que algo seja verdadeiro em si mesmo não implica que seja necessariamente e imediatamente evidente para outros.

Portanto, a alegação de uma tradição de estar vinculada ao princípio único, sob qualquer título, não é imediatamente óbvia, e essas alegações precisariam ser substanciadas por 'pramânas', ou seja, meios de prova e conhecimento. 

2) Que uma tradição alegue vínculo a uma realidade sobre-humana cai no mesmo problema epistemológico anterior, e cai também no problema de ignorar distinções e meios cognitivos para perceber distinções entre o conjunto das realidades sobre-humanas mesmas, pois há realidades sobre-humanas provenientes de diferentes pontos da realidade total, e todos esses pontos fogem igualmente do escopo da empiria e da lógica. 

3) Que toda tradição legítima tenha vínculo com realidade sobre-humana é uma declaração de ordem geral, que nada diz sobre a natureza mesma desses vínculos na ordem prática, e não dá um critério para comparar os diferentes vínculos, bem como a distinção entre uma vinculação alegada ou real ².

4) Se Guénon quer dizer que somente o sobre-humano reconhece o sobre-humano, então a tradição como meio de transmissão perde o sentido, pois o sobre-humano seria separado sempre e necessariamente, com cisão ontológica, de a ordem humana, e se comunicaria apenas consigo mesmo, e não com outro.

Algumas questões de ordem lógica e de autoridade:

1) O fato de que uma suposta tradição tenha vínculo com ordem sobre-humana, não implica necessariamente que a disposição ou as relações entre a ordem sobre-humana e a humana se deem somente por meio das tradições (no sentindo implicado na teoria guenoniana) em todos os casos. 

Guénon nesse ponto compara as tradições com a reprodução biológica, ou seja, o homem espiritual ou iniciado só pode nascer, nas condições desse mundo, pela causa eficiente da tradição, ainda que metafisicamente possa haver uma 'geração espontânea'. 

Ora, a questão novamente depende da definição de tradição: se a tradição é sempre o 'corpo' ou 'veículo' visível, ou se a tradição é o princípio supremo mesmo que se faz presente simultaneamente e todos os pontos do tempo. 

Se a tradição é só o 'corpo visível', ele tem de estar visível desde sempre na ordem imanente, ou seja, tem de ser uma linhagem visível que remete ao Criador do universo (e guru primordial) e não uma revelação ou intervenção posterior, uma vez que revelações posteriores nem sempre (como é facilmente observável) têm unidade histórica harmônica com as anteriores³.

2) Se Guénon alega que as críticas entre as tradições se dão somente em plano externo ou acidental, teríamos que questioná-lo se os dogmas cristãos ou muçulmanos, no que concerne à rejeição de outras tradições e fatos históricos fundamentantes, são um plano acidental ou essencial, e negar que eles são essenciais vai contra a interpretação ortodoxa. 

3) Se Guénon diz que a interpretação ortodoxa dos dogmas se dão em dois planos (exotérico e esotérico), ele teria que apontar o corpo tradicional visível que o interpreta em plano esotérico. Como os próprios intérpretes superiores desses dogmas não aceitariam a visão guenoniana, ele teria de se voltar ao ocultismo, ou seja, a alegação de que a interpretação legítima está de posse de pessoas ocultas ou inacessíveis, e afirmar também que a autoridade do Guénon se dá porque ele tem acesso (não ideal ou espiritual, mas concreto) a essas pessoas ocultas.

4) Se Guénon tem acesso a essas pessoas ocultas, vinculadas à tradição primordial, e que afirmam, e podem provar, que todas as tradições são iguais inclusive no que diz respeito aos dogmas conflitantes do Islam e Cristianismo, ele ou pode prová-lo (e não o prova) ou exige argumento de fé ou autoridade, e se coloca na posição de revelação, ou, como ele o faz normalmente, diz que a questão só pode ser compreendida por meio de intuição intelectual para quem é qualificado, o que torna fútil escrever livros com conceitos, uma vez que os qualificados já o perceberiam e não precisariam desse auxílio rudimentar.

Proposições que aceito hoje em dia:

1) A Tradição perene (Sanatana Dharma) é somente aquela que é coexistente com o tempo mesmo, e não a que coexiste com determinada parte do tempo ou somente se manifesta como eternidade (acima do tempo) e transcendência. Qualquer tradição que alegue ter sido fundada em ponto histórico específico, implicando que a tradição anterior tenha sido eliminada ou quebrada, não pode alegar ser concretamente o Sanatana Dharma, ainda que possa ser uma tradição espiritual em diferentes graus e com diferentes objetivos.

2) Segundo a autoridade hindu, ilustradas nos Purânas, as tradições espirituais diversas podem ter diferentes níveis de erros e acertos em suas alegações de vínculo com a Unidade, e podem desempenhar diferentes papeis na ordem total, inclusive papeis de ordem assúrica, ou papeis contingentes, "lîlâs" diversas, e não precisam seguir uma expansão ou desdobramento geométrico  de necessidade como a obra do Guénon indica.

3) A intuição espiritual, pode ocorrer, e tem de ocorrer a cada geração, através do indivíduo por meio de experiência direta (anubhava) em estado de samadhi, como está explicado nos Yoga-Sûtras, a ser validada pela tradição (shastra-pramâna) e pelo 'peer-review' de pessoas qualificadas (apta-pramâna), uma vez que esse anubhava pode assumir diferentes pontos de vista (inclusive errados) à medida em que o yogue desce do samadhi e articula sua experiência com os planos grosseiros da linguagem.



***

Notas

1. "Le Dictionnaire de René Guénon" de Jen-Marc Vivenza. Verbetes 'Tradition" e "Tradition Primordiale"
2. Inclusive, o vínculo, para dar uma ilustração extrema, poderia ser meramente ontológico, como o de uma pedra enquanto realidade ontológica contingente, por exemplo, se vinculando à realidade total enquanto objeto existente.
3. Se fossemos pegar a coisa do ângulo cristão, esse conceito de tradição poderia se confundir com a noção de transmissão do pecado original mesma, pois o pecado seria o único contemporâneo do tempo.


Thursday, May 3, 2018

Ram Swarup e a diferença

Símbolo antigo da interdependência
A obra de Ram Swarup poderia ser acusada de usar de generalizações muito amplas e hostis para caracterizar seus adversários. Haveria nessa crítica algo de verdade. E haveria também uma justificativa para isso dentro da própria tradição dialética hindu: romper com o debate quando o adversário não preenche os requisitos básicos para que um debate honesto ocorra. O fato é que a obra, em sua essência, nos inspira na reflexão sobre o papel da diferença: nos contatos intelectuais com o Ocidente, os representantes das tradições espirituais orientais assumiram uma das seguintes posturas:

1) Indiferença 

Como observei, mencionando os registros de Alberuni e de Filóstrato, muitos hindus ao longo do tempo se recusaram a reconhecer a intelectualidade ocidental, ou a respondê-la. O que levou os ocidentais a projetarem o que quisessem nos mestres hindus e monopolizarem a narrativa sobre o papel dessas tradições na compreensão de temas globais. Isso acontece ainda. Grandes mestres como Ramana Maharshi, que recebeu centenas de ocidentais em seu Ashram, se recusavam a comentar questões pertencentes ao mundo prático ou dialético, se focando apenas no aspecto espiritual ou metafísico. O que fez com que pensassem que os homens espirituais hindus nunca se interessaram por essas questões ou não tem nada a dizer sobre elas. O Oriental transformou-se em objeto de contemplação dentro dos moldes ocidentais. O que é falso, e para verificá-lo basta consultar a extensa tradição de tarka (debate dialético)  entre budistas, jainas, nyayas, samkhyas e vedânticos.

2) Síntese ecumênica

Em alguns casos, muitos mestres hindus, tentando talvez seguir o princípio de não-violência, ou talvez pelo efeito psicológico mesmo da colonização e da inferioridade diante dos resultados práticos da ciência ocidental, têm a tendência a endossar a tese de que todas as religiões são iguais. O que se vê são tentativas afetivas e incomplexas de síntese a todo custo, ou até mesmo uma petição de ser integrado dentro do círculo de compreensão ocidental. Essa atitude tem diferentes níveis de sofisticação, mas o seu problema central é dar margem para todo tipo de manobra adaptativa e oportunismo. As religiões ficam inclusive vulneráveis a forças políticas, ou assimilativas de todo tipo, quando as entendemos como superficialidades digeríveis, e perde-se de vista suas diferenças específicas e 'indomesticáveis'.

3) Síntese esotérica

Essa postura não é tanto oriental. Vem mais dos ocidentais, mas é uma postura importante: alguns autores dizem que as grandes religiões são como que manifestações de ideias platônicas: cada uma 'encarnando' o mesmo grupo de possibilidades transcendentais, apenas mudando de roupagem. Ou seja, o Cristo teria um correspondente no Corão, e Maomé na Virgem, por exemplo; em ambos os casos, essas correspondências seriam participações em ideias metafísicas que transcendem as duas formas. Essas transcendência seria conhecida e reconhecida por uma elite intelectual, e em geral esse conhecimento não é acessível à massas. No fim das contas, todas as religiões, da forma total como se apresentam, em todos os seus pontos, seriam incorporações dessa mesma alma ou ideia, como se participassem em uma espécie eterna. Isso é falso pois ignora os problemas históricos e factuais, a sínteses históricas no encontro entre tradições, e tende a validar todas as religiões como blocos absolutos. Além de trazer também um problema de autoridade, pois as autoridades religiosas mesmas não se entendem assim, de forma que a autoridade é transferida para alguma esfera misteriosa, de alguns mestres que estão ocultos ou coisas desse tipo.

4) Diferença

Essa é a originalidade que aparece em Ram Swarup, e que justifica tomar sua obra como importante. O autor diz que é preciso posicionar-se e deixar claro as diferenças de perspectiva e não só buscar a unidade ou evitar a questão. E, de fato, hoje em dia essa me parece uma postura mais honesta, inclusive para um possível diálogo.

Todo estudioso das religiões reconhecerá as inúmeras similaridades entre as tradições, e as atribuirá a diferentes origens. Houve extensos estudos sobre as religiões desde o século XIX, e em certo sentido, todos eles visavam absorver as tradições espirituais num projeto universalizante e ocidental de conhecimento. A origem (e os objetivos) desses projetos universalizantes pode e deve ser questionada.

As tradições dhármicas, como explica Rajiv Malhotra, outro autor contemporâneo que vou resenhar em seguida, se distinguem das tradições abraâmicas (e estamos aqui falando de linhas gerais de orientação e não de exceções) pelo menos nas seguintes oposições amplas:

a) Conhecimento incorporado x Centralidade histórica:

No dharma o conhecimento, ainda que seja transmitido historicamente, e siga como que uma linha paralela, perene (sanatana), mudando de forma externa ao longo das eras, tem de estar presente na corporalidade de um indivíduo que tenha a realização da realidade transcendental, aceitando também a possibilidade de que as pessoas possam verificar esse conhecimento através das técnicas ancestrais e da orientação de pessoas que estejam estabelecidas nesse conhecimento. Essas pessoas passam pela avaliação tripla -- shastra, apta, âtmâ. Ou seja, a experiência  não pode ser uma aberração em relação ao registro das diversas escrituras, tem de ser validada por outros que a tiveram, e é preciso que o indivíduo que transmite a tradição tenha o conhecimento em si mesmo, incorporado e operante em sua vida. Essa noção é diferente nas religiões abraâmicas, pois elas dependem de um fato histórico, ou seja, de uma 'smrti' (memória do passado) da qual não é possível se dissociar, de maneira que se essa memória fosse esquecida pelos praticantes, a religião entraria em colapso.

b) Unidade Integral x Unidade Sintética:

As tradições dhármicas pressupoem que haja uma unidade ou interdependência entre a totalidade dos fatos do Universo. Ou seja, o Universo é uma unidade que sob certo aspecto tem um ritmo, um dharma, e uma rede de interdependência, e uma linguagem que aponta para o Absoluto. A unidade do conhecimento é paralela à manifestação universal e não algo a ser obtido por uma intervenção pontual. As religiões abraâmicas, por outro lado, acreditam que o universo não tem em si mesmo uma unidade integral. Nesse caso, unidade ou possibilidade de transcendência é obtida em algum ponto do tempo, onde um novo fato vem instaurar uma unidade sintética. Ou seja, essa unidade é obtida desde fora da totalidade do existente, e por meio de uma intervenção histórica.

c) Ansiedade diante do caos x Convivência com a complexidade:

Assim, as tradições ocidentais, para instaurar a ordem, buscam rejeitar ou abafar o caos ou o diferente. Esse padrão psicológico é repetido inclusive em seus processos e atualizações internas: sempre que há a proclamação de uma nova tradição ou religião, ela surge já com ímpeto exclusivista, aos moldes e segundo o paradigma das anteriores, buscando eliminar todo que não está dentro de seu círculo de compreensão e se declarar como única e definitiva e muitas vezes como universal. A relação entre as tradições cristãs e muçulmanas, por exemplo, é de constante conflito e tentativa de rejeitarem-se mutuamente ou declararem que o restante das religiões estão canceladas. No caso das tradições dhármicas, o traço mais proeminente é a busca de convivência com a complexidade, a ausência da ansiedade para assimilar ou destruir o diferente, e a integração do conhecimento em círculos cada vez maiores e com articulações complexas, como em um ecossistema.


Na próxima postagem vou resenhar o livro 'Being Different' de Rajiv Malhotra que também valoriza as distinções e busca uma diálogo tradicional baseado no respeito mútuo e não apenas na tolerância ou ecumenismo.

Tuesday, May 1, 2018

Ram Swarup e a visão hindu do Ocidente (parte 4)

Patañjali-Rshi
Para Swarup, conhecer o Deus da Bíblia ou do Corão é conhecer um Deus sem interioridade, e sem universalidade. Ele compara a devoção dos judeus ao que se chama de bhakti tamásico ou rajásico no Bhagavad Gîtâ, e oferece alguns exemplos ilustrativos com a história de Abraão, Rute e outros para endossar sua tese de que a tendência à exclusividade e iconoclasmo foi evoluindo dentro da religião judaica, uma vez que no início a interação com os deuses 'das nações' era mais tolerante. Assim, o culto de um Deus exclusivista se inicia apenas com Moisés.

A expectativa do messias como salvador político do povo judeu se inseria nesse contexto, uma revelação única e exclusiva, e um intermediário fundamental que levaria a cabo as aspirações de um povo escolhido. A história registra que vários proclamaram ser o messias, citando o exemplo de Theudas que supostamente realizou o milagre de abrir o rio Jordão para que seus discípulos passassem. Ao mesmo tempo em que o messias era esperado, uma parcela do sacerdócio judeu temia os romanos e sentia-se confortável com a ordem estabelecida. E de fato, algumas décadas após a morte de Jesus, os receios viriam a se concretizar, o Templo foi queimado e a cidade de Jerusalém destruída pelo general romano Tito. 

O ideia do messias judeu continuaria muito tempo após a destruição do templo, como exemplifica a figura de Simão Bar Kokhba que chegou a juntar meio milhão de soldados de sua causa, e teve vitórias importantes, controlando Jerusalém por três anos.  Por fim a cidade passou para as mãos dos cristão e finalmente dos muçulmanos. Contudo, o fato é que:  ainda que Jerusalém houvesse sido perdida, a esperança de um messias atravessou séculos, renascendo por exemplo em outras figuras como Sabbatai Zevi no século XV. 

Jesus foi tomado pelos judeus como um dos candidatos a messias judaico, como era relativamente comum na época. Swarup especula que Jesus talvez tenha até se esforçado ou tido intenção de cumprir tal função, ao declarar, por exemplo, que tinha vindo cumprir a lei e não a abolir, ou pregando que seus discípulos não deveriam ir à casa dos gentis e nem entrar na cidade dos samaritanos. O autor diz que foi somente quando Jesus foi rejeitado pelos judeus que ele também os rejeitou. 

Dessa ruptura, quebrou-se também a Aliança divina com os judeus, segundo a perspectiva cristã. A nova aliança era com os que criam em Jesus e não mais com o povo escolhido: "quando a Cristandade rompeu com seu antigo ancoradouro e buscou um novo público, ela se viu encarando muitos competidores, engajando-se numa disputa de superioridade. A Cristandade deu início a um série de empréstimos não reconhecidos e roubos." 

A função de salvador tampouco era desconhecida entre os povos antigos, e autor nos lembra a história de Mitra, que tem relações com o Mitra hindu e Maitreya budista. 
"Devido a esses fatos, muitos estudiosos consideram a vida de Jesus mais próxima da lenda do que da história, e se houve algum Jesus histórico é algo que é muito discutido no mundo acadêmico. Mas a questão está perdendo a importância e muitos teólogos cristãos agora começam a falar em um Jesus da fé ao invés de um Jesus  histórico. Talvez eles tenham percebido que a insistência em um Jesus histórico é uma forma de idolatria. Contudo, mudar o formato não muda a natureza da questão e nem a elimina as objeções racionais. Se uma fé gratuita, baseada em uma figura de uma salvador imaginado ou histórico é racionalmente e espiritualmente sustentável, é uma questão que permanece."
Swarup segue dando exemplos dos empréstimos e 'roubos' que constituiram a doutrina, o rito e o mito cristão.
"Justino, o mártir, disse que o diabo tinha antecipado e introduzido na religião de Mitra usos similares aos dos cristãos. Mais tarde Tertuliano veio com o mesmo tipo de explicação em conexão com a Santa Ceia e disse que os deuses pagãos, que, para impedir a verdade, imitam a circunstância exata dos sacramentos divinos nos mistérios dos ídolos" 
e ainda
"[O cristianismo] tomou elementos emprestados do Judaísmo, como sua escritura, seus profetas, sua crença em um povo especial e uma aliança especial, e acima de tudo o seu Deus ciumento, o seu ódio por outros Deuses, e consequentemente seu ódio proverbial à humanidade. O misoteísmo é o pai da misantropia. Também tomou emprestado a ideia de expiação através de um sacrifício de sangue da mesma fonte. Essas ideias eram ideias centrais e tiveram grande influencia em seu ethos subsequente. Mas há também fontes não-judaicos de importância para outras ideias centrais como a do Salvador, do Nascimento por meio de uma virgem, a Ressurreição, a Ceia. Sua contribuição original foi a de um Deus que estabelece uma aliança especial e proclama soberania universal. O fato de que seu salvador proclamava que iria salvar a todos, ou seja uma missão mundial. Sua outras contribuição foram a Cruz, o Inferno, o Demônio, a possessão e o exorcismo". 
O autor observa que quando Maomé surgiu, já estava estabelecida a ideia de exclusividade universal.  Não bastava falar com Deus ou ser um profeta, mas a tendência era a de buscar um profeta exclusivo ou um salvador que anulasse as outras tradições espirituais.
"Mas apesar das circunstância inibidoras e repressivas em que os pretensos salvadores e profetas se inserem, eles nunca deixaram de existir. O fenômeno não é algo que aconteceu somente nos dias antigos ou durante a Idade Média. As proclamações continuaram acontecendo até mesmo nos tempos atuais, e, o que é mais importante, muitos continuaram acreditando. É claro que não eram estórias de tanto sucesso como as de Moisés, Jesus ou Maomé, mas não ficavam sem seu público. " 
Por que essa tendência, tão estranha aos outros povos? Por que certas coisas tinham de ser reveladas a certos profetas e escondidas de outros? Será que esse profetas tinham qualidades morais ou espirituais que os distinguiam da massa? Muitos profetas não ofereciam justificações para sua profecia. Se a revelação é remover um véu, em seu sentido etimológico, o que é que é revelado exatamente? E quais as justificativas de Deus chamar certas pessoas em segredo e lhes contar de certos planos que o resto da humanidade desconhece?
"Pode-se objetar que isso tudo é arbitrário. Mas como explica  H.L. Goudge 'diz respeito a Deus, o revelar-se quando e como Ele quiser. Se ele se revela a uma nação mais completamente do que a outra isso é parte da administração divina'"

E ainda
"Como de costume, a teologia Cristã usa linguagem piedosa para chegar a conclusões arrogantes: 'Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos.', diz a Bíblia com aparente piedade, e com grande satisfação. A pretensão é, no fim das contas, prepotente, mas vista por outro ângulo, ela tem algo de verdade. A Cristandade só se importa com um Deus conhecido por crianças e pecadores; quase não há a ideia de um Deus revelado à sabedoria, à compreensão e à pureza."
Deus dos pecadores 

A apresentação correta de Deus, segundo os Upanishades, não é a de um Deus dos pecadores, mas o destruidor do pecado. Ele é antes de tudo protetor do Bem e não dos pecadores. Deus é certamente misericordioso, mas não guardião de criminosos. O autor observa que os cristãos não raro carregam o esnobismo e o orgulho por se chamarem pecadores, de forma muito parecida aos comunistas por serem proletários. Chamar um cristão de pecador chega a ser um cumprimento ou uma obrigação e em sua religião a prioridade é sempre dada aos pecadores ou pessoas perdidas, como demonstra a parábola do filho pródigo.

Práxis espiritual

O autor diz que as religiões semíticas carecem do conceito hindu de sâdhana também. E quando chegam a conceitos próximos, misturam-no com aspectos irracionais, emotivos. Ele dá o exemplo de algumas dessas quase-sâdhanas, como por exemplo o chamado 'dom das línguas', que autor diz que poderia ser comparado em alguns casos com problemas psiquiátricos. Outra sâdhana cristã, essa mais consistente, é o 'arrependimento'. Na compreensão cristã os conceitos de inferno, punição, arrependimento e pecado se articulam em um sistema de sâdhana, uma tecnologia para obtenção de fins espirituais. Contudo, a peculiaridade desse método, segundo Swarup, levou a muitos danos psicológicos ao longo das gerações, e descambou não raro em mentalidade neurótica e relações sadomasoquistas com a divindade. O 'iconoclasmo' para com os deuses dos outros povos, característica do Cristianismo é Islam, é entendido pelo autor como uma espécie de sâdhana também.

Teologia da missão e da jihad

Cada religião é moldada segunda as perguntas que faz e as respostas que seus líderes oferecem. Segundo Swarup, no Hinduísmo as perguntas fundamentais são perguntas do tipo 'O que é o real? Qual é o bem supremo? O que é o homem? Quais são suas raízes?', o autor observa que essas perguntas não eram fundamentais nas religiões proféticas. Elas não surgiam para responder as aspirações mais profundas do homem. As figuras características dessas religiões são dadas em função da teologia, da personalidade de certa divindade: o pregador e o jihadista. Essa figura não tem nada a aprender, só a impor. Ele se sente perdido se não realizar sua missão de converter. O tempo não mudou essa característica central nem no Cristianismo, nem no Islam. Os católicos se definem ainda como um povo "missionário por natureza".

Citações seletivas e apelo a analogias e alegorias

Swarup observa que os cristãos ao se direcionarem aos hindus, gostam de enfatizar trechos bíblicos que são excepcionais em sua práxis, como o famoso 'O reino dos céus está dentro de vós'. Os hindus, por gerações, acreditaram de boa vontade que, no fim das contas o Cristianismo tinha a mesma mensagem dos Upanishades, graças a essas citações seletivas.  Esses trechos contudo, devem ser entendidos dentro da tradição maior, e segundo sua importância dentro do panorama geral e da economia missionária cristã concreta. O mesmo se dá com frases como 'Eu e o Pai somos um', que os hindus entendem como uma mensagem de jñâna, mas que na verdade é uma declaração teológica que não se aplica propriamente às pessoas.

A espiritualidade hindu

O Veda entende o homem como tendo diversas camadas, indo das mais grosseiras às mais sutis, numa hierarquia de importância. Nas partes mais íntimas e profundas há um encontro com as leis universais, o ritmo, a yoga. A consciência mais externa do  homem é confusa e não pode oferecer respostas espirituais. Contudo, o Deus semítico não vem com o objetivo de revelar esses estados (que são descobertos só depois pela exegese filosófica e simbólica e através de procedimentos estranhos às próprias escrituras). As escrituras proféticas surgem para responder a questão 'O que é Deus?', contudo elas não entendem que o próprio conceito varia de acordo com o nível de consciência.

O Deus articulado com a consciência de vigília não é o mesmo Deus que se articula com o samâdhi ou com estados sutilíssimos de compreensão meditativa. O Deus profético nos oferece um código de conduta. O Dharma difere bastante de um código de conduta. Os seres humanos diferem em seus talentos e oportunidades, e o homem cresce no dharma à medida que cresce seu conhecimento. Bhisma no Mahabharata saúda "Aquele cujo próprio Si Mesmo é o Dharma, mas cujos seguidores tem muitos caminhos".

Samadhis não-yóguicos

Swarup observa, trazendo exemplos da tradição yóguica budista ou hindu, que há samadhis que são produtos de mentes impuras. E é aí, na categoria dos samadhis, ou estados de concentração com retenção do ego, que ele inclui a origem das religiões proféticas. O campo de 'pouso' ou estabilização do samadhi é um 'bhumi', um território ou plano onde a intuição espiritual se assenta. O Yoga-Bhûmi de Patañjali realiza um Deus livre de todas as qualidades limitativas e antropomórficas como desejo, aversão, ego, uma divindade intocada por quaisquer oscilações.

O Deus das religiões proféticas se assenta no Kâma-Bhûmi, um mundo de desejo, aversão e ignorância. Ele tem preferências, aversões, povos escolhidos, igrejas, Ummah e também inimigos. Ele é um Deus ciumento que procura a destruição ou invalidação de todas as outras formas de adoração. Os devotos desse Deus têm de apelar para constante uso de sentidos secundários, analogias e alegorização para explicar essas características.

Esse Deus, na verdade, é mera formação psíquica. Produto também do chitta-bhûmi, memórias de nomes e formas que persistem na mente dos devotos. Esse Deus retorna em diversos lugares, em diversas culturas, mas ele não é o Absoluto. E os planos psíquicos do kâma raramente vêm dissociados dos planos de krodha ou raiva. A purificação da mente para visualizar as verdades divinas é um processo rigoroso e inevitável para a contemplação correta das energias superiores e é por isso que os praticantes da yoga tem de se submeter aos chamados yamas e niyamas, e estabelecerem-se na não-violência. Até mesmo os samadhis yóguicos estão sujeitos à queda e oscilação se a mente não for sutil o suficiente.

A espiritualidade yóguica, segundo Swarup, começa com o quarto nível de purificação, que implica na equanimidade mental para com todos os seres. Raramente vemos nas escrituras das religiões semíticas ensinamentos que emanam dessa região. A maioria dos ensinamentos vem de regiões inferiores da consciência, do segundo ou terceiro plano, enfatizando a importância da fé, piedade, confiança e fervor.

A reação hindu às religiões proféticas

Os hindus, no contato com essas religiões, inicialmente tentaram se reformar e adotar o costume do colonizador. Temos o caso de organizações que perseguem ideais proféticos e monoteísticos como o Arya Samaj, ou o caso de alguns monges da Missão Ramakrishna que preferem inserir seu guru dentro do escopo profético, comparando com um Maomé, Moisés ou Jesus do que entendê-lo propriamente dentro da tradição dos rishis védicos.

Uma segunda reação foi a síntese. Por meio de citações altamente seletivas, muitos hindus começaram a falar que a mesma verdade era pregada por todas as religiões e livros religiosos.  Outros recorriam à dupla interpretação, recorrendo à analogias para justificar as religiões semíticas e igualá-las ao que é dito claramente e sem analogias nos Upanishades.

O autor diz, por fim, que esses modelos estão esgotados. As religiões ocidentais também se esgotaram e não conseguem mais oferecer qualquer perspectiva para as pessoas, e a sociedade ocidental está em crise intelectual e espiritual:
"A maioria dos países perdeu suas tradições espirituais, mas o Hinduísmo ainda as retem e segue sendo um repositório do conhecimento espiritual que o resto da humanidade perdeu. Através de um despertar do Hinduísmo, todo o passado religioso da humanidade recebe uma voz. Através dele, ainda se podem ouvir muitas vozes ancestrais que foram silenciadas. Através dele é possível entender novamente Platão, Hermes Trimegisto, Apolônio, Plotino. É só através do Vedânta que Eckhart tem sentido, permanecendo incompreensível se depender da tradição Cristã." 

Basicamente esses são os pontos levantados por Ram Swarup. Como não gosto de fazer textos muito grandes, vou deixar os meus comentários e avaliação sobre o livro para outra postagem.

Friday, April 27, 2018

Ram Swarup e a visão hindu do Ocidente (parte 3)

Cristianismo, Islam e a intolerância

Os missionários cristãos estudavam o Islam para melhor converter. E dentro desse desconhecimento surgiu também algum reconhecimento. O profeta do Islam honrava Jesus, e declarava que o Deus de sua religião era o mesmo Deus de Moisés e Abraão. O Islam, assim, causava certa perplexidade nos missionários cristãos, pois, uma vez que o campo da 'Boa Nova' já estava definido, como explicar o surgimento de uma renovação disso? 

Os cristãos entenderam, por fim, que o Islam só poderia ser uma corrupção da mensagem cristã. Maomé provavelmente teria entrado em contato com um versão idolátrica e supersticiosa do Cristianismo que existia na Arábia, e a partir dessa versão, formou sua religião.  Ram Swarup cita o famoso sanscritista e agente missionário Max Muller para ilustrar essa compreensão:
"Se ao menos Maomé, iludido e de espírito efervescente, cuja alma agitou-se ao ver seus compatriotas absorvidos na idolatria, tivesse sido levado a associar-se com uma forma mais pura da Cristandade [...] ele poderia ter morrido como mártir pela verdade, a Ásia poderia contar com milhões de cristãos, e o nome de Santo Maomé poderia estar no calendário de nosso livro comum de preces. Pense então, a diferença na presente condição do mundo asiático, se o fogo da eloquência de Maomé houvesse sido exercida em favor da verdadeira Cristandade" 
O Islam e a Cristandade lutaram com a espada. Durante muito tempo. Contudo, quando essa opção foi se esgotando, por diversas razões históricas, não foi só o Cristianismo que teve de se adaptar. O ataque ao Islam vinha agora por meio da apologética. E os muçulmanos com o tempo tiveram de aprender também essa tecnologia. 

Logo os cristãos tentavam provar a veracidade de Cristo segundo o Corão, e os muçulmanos respondiam buscando demonstrar a veracidade do Islam segundo a Bíblia. Para o muçulmano, o Cristianismo era um Islam sem Maomé, e para os cristãos, se Maomé já aceitava o Cristo em sua nobreza e até em seu papel escatológico, faltava pouco para que os muçulmanos também o aceitassem como Filho Único de Deus e salvador. Ambos acreditavam no mesmo Deus, e disputavam o mesmo trono, onde só um poderia permanecer.

Um dos aspectos curiosos dessa nova fase, apologética, é que ambos os lados eram estritamente racionais em relação a fé do outro, sem aplicar a mesma racionalidade para si mesmos. O muçulmanos gostavam, por exemplo, de apropriar-se das críticas do humanismo e racionalismo ao Cristianismo, sem contudo utilizá-las para si mesmo. Além da ausência de autocrítica de ambos os lados, algumas premissas sempre foram mantidas, como o fato de que ambos lutavam pela legitimidade de terem um 'medium' exclusivo entre Deus e a humanidade, compartilhando o mesmo desprezo aos chamados pagãos ou infiéis, e eram ambos contra a chamada 'idolatria' que caracterizava as religiões não-semíticas.

Swarup nota que os judeus, pais espirituais das duas tradições, inicialmente não eram monoteístas. Eles tinham seus deuses tribais, que brigavam entre si, mas que não pretendiam inicialmente um exclusivismo ou universalismo tão marcado.  

O exclusivismo começa com Moisés. O autor especula que Moisés teria sido influenciado pelas reformas religiosas de Aquenaton no Egito, contudo "esse Deus era muito brando e pacífico, e não seria útil para a nova vida dos Judeus. Portanto, durante suas jornadas, eles adotaram um outro Deus, o Deus dos Midianitas, um Deus Vulcão." Essa tendência exclusivista, que nos Judeus era responsável pela sua preservação, sem implicar imposição, foi repassada aos muçulmanos e cristãos dando origem a um Deus ainda mais exclusivista e ciumento, e também mais ambicioso e belicoso. 

O advento do Cristianismo trouxe à terra um Deus que queria se impor à humanidade. Surgia pela primeira vez uma divindade que solicitava que seus seguidores fossem em todas as direções e pregassem seu nome, buscando conversões. Outra diferença notável entre o Deus judeu e o cristão, é que entre os judeus, Deus falava por meio de vários intermediários proféticos, ao passo que com o Cristianismo temos o surgimento do intermediário exclusivo e legítimo.

Diz o autor que os árabes pré-islâmicos conheceram e conviveram com o Judaísmo e o Cristianismo, e não se impressionaram. Mantiveram o culto aos seus diversos deuses em certo nível externo, e quando buscavam algo mais profundo se isolavam em montanhas ou cavernas para meditar, costume seguido pelo próprio Maomé, que, ao contrário de seus contemporâneos, de fato sentiu atração pelas notícias do Cristianismo e do Judaísmo, e por fim declarou, por meio das supostas revelações, que ele mesmo, Maomé, representava a continuidade daquelas tradições proféticas, e começou a pregar a conversão e o abandono dos deuses de sua nação.

Swarup lembra que ao longo do grande conflito entre Maomé os árabes de seu tempo, ele chegou a oferecer reconhecimento aos deuses locais, buscando uma conciliação, no episódio que foi celebrizado recentemente como os 'Versos Satânicos', pelo escritor Salman Rushdie. Maomé entendeu depois que os versos conciliatórios teriam na verdade sido inspirados por satanás e voltou atrás da sua posição, buscando novamente a conversão e a adoção do Deus único.

Maomé foi ridicularizado pelos seus contemporâneos, que diziam que sua mensagem era de baixo valor, e que ele era um poeta e adivinho, um tipo desacreditado. Ele resistiu, e os ameaçava, de início verbalmente e, à medida em que sua mensagem foi ganhando força, a retribuição e as ameaças foram ganhando o campo da ação concreta e violenta. Com o tempo, caravanas eram saqueadas, os ídolos derrubados, os templos foram convertido nas casas do novo Deus, e, por fim, os árabes receberam o ultimato de se converterem ou morrerem. 

A virada, por assim dizer, também tornou o Islam atrativo por motivos econômicos e políticos -- os novos convertidos tomavam parte na distribuição da riqueza segundo a nova ordem. E essas propriedades e riquezas posteriormente ganhariam um caráter hereditário, criando um novo sistema de distribuição e hierarquia social.

Os árabes pagãos eram tolerantes para com cristãos e judeus, diz Swarup. Muitos deles viviam na região, e que inclusive grande parte deles eram hereges que fugiam da perseguição que sofriam entre os próprios cristãos e judeus. Essa tolerância foi consideravelmente diminuída com o estabelecimento do Islam. 

Os pagãos aceitavam os cristãos e judeus, rejeitando os seu Deus, e os muçulmanos aceitavam o Deus, mas rejeitavam cristãos e muçulmanos. O autor observa que essa é uma diferença fundamental: o paganismo, por assim dizer, tem vários deuses, e acredita em uma só humanidade, ao passo que o semitismo tem apenas um Deus, mas acreditam em pelo menos duas humanidades dividas pela aceitação de uma revelação. A divisão não é mais cultural, econômica ou política, mas metafísica.

A teoria do Deus único, implica a do profeta, salvador ou intérprete exclusivo. À medida que o Deus semítico se tornava um, ele também se tornava exclusivo em suas comunicações. Mesmo quando ele tinha um povo escolhido, esse povo não tinha um contato direto com Ele. Ele dizia que enviar-lhes-ia um profeta  para instrui-los, e o povo deveria obedecer a esse profeta. Esse indivíduo falaria em nome de Deus, e quem o desobedecesse seria punido. Isso tomou forma do salvador por meio da Cristandade, e se tornou o intercessor e último profeta no Islam. 

A intolerância, portanto, está na raiz das religiões semíticas. É a tolerância aparece como fato excepcional. O autor observa, que certa intolerância sempre existiu nas culturas, contudo nunca foi legitimada por uma teologia: "foi com a vinda da Cristandade e do Islam que o fanatismo religioso e a arrogância desceram à terra em larga escala em com poder renovado". Onde quer que essas tradições espirituais tenham chegado, diz Swarup, elas carregaram a espada, elas carregaram fogo e espada, demoliram e ocuparam os templos dos outros. 

A doutrina de um único Deus, uma única igreja, uma única ummah, uma única vida, um único julgamento, era desconhecida na maior parte da história da humanidade:
"Falando historicamente, [essa doutrina] é mais uma aberração, uma moda local que se consolidou através da conquista e da propaganda, e que não poderia ter sido imposta de nenhuma outra forma.  [essa doutrina] difere não só do politeísmo, uma expressão religiosa popular, mas difere das religiões místicas que expressam a busca mais intensiva do homem por uma vida espiritual. É certamente diferente da espiritualidade conhecida no Oriente pelos herméticos, estoicos, pitagóricos, taoístas e vedantistas; é diferente delas na maioria das coisas, particularmente em seu conceito de divindade, homem e natureza, é diferente em suas definições, modos, teoria e práxis." 
Expansão externa e conhecimento interno 

Swarup diz que a religião e a devoção surgem como uma necessidade em todas as culturas, contudo ela não significa necessariamente a mesma coisa em todo canto. Em muitos casos a religião se mistura com as necessidades mais baixas da humanidade, e algumas vezes, o que se quer dizer ao usar o termo Deus, é nada mais que um faraó ou um Calígula.
"Mas tal Deus não pode durar muito ao menos que seu significado seja congelado e sustentado com uma teologia. Mais frequentemente um Deus tem de ter outras qualidades, mais humanas, e servir de auxiliador e guia, e oferecer consolo e socorre ao homem em suas dificuldades - e algumas vezes até mesmo nos desígnios humanos mais questionáveis, como os desígnios contra seus inimigos"
Essa noção de divindade, se serve a muitos em geral, não pode satisfazer àqueles que buscam um significado mais profundo na vida, uma lei superior de conduta. Pessoas que buscam respostas para questões superiores sobre sua origem, sua identidade, ou como diz o Veda, pessoas que querem migrar do irreal para o real, da escuridão para a luz,  e da morte para a imortalidade. E nesse ponto a espiritualidade hindu diz que as questões mais profundas sobre Deus se encontram com as questões sobre o Si Mesmo. 

Os homens vivem a maior parte do tempo em seus desejos, ódios, em seus egos e ignorância e são esses aspectos humanos que lançam um véu na verdadeira vida interior. Para descobrir essa vida, é preciso purificar os instrumentos de conhecimento da realidade, desenvolver novos poderes na alma, controle dos sentidos, não-violência, firmeza mental, compaixão. O homem tem de desenvolver devoção, discriminação espiritual, e poder de concentração, desapego e universalidade de ponto de vista. 
"À medida em que ele vai para dentro si, ele entra em novos planos e realidades até então desconhecidas. Ele se encontra com muitas formações psíquicas e seres espirituais de vários graus de pureza e poder correspondente à sua própria pureza, necessidade e qualificação. Ele também encontra deuses de desejo, e deuses de ego e se a pureza suficiente não tiver sido estabelecida na alma ele pode se identificar com um deles; ele pode até mesmo declarar que seu deus é o Deus, ele pode profeticamente exigir que seu Deus seja adorado por todos."
Swarup mostra que a natureza da intuição espiritual, conhecida através das ciências yóguicas, nos oferece uma visão muito diferente de Deus. As qualidades superiores que nutrem a alma são aquelas em que a divindade é compreendida singular e multipla. E nessa compreensão o homem chega a perceber que ele mesmo é uno com essa realidade, e não só isso, mas que todos os outros seres humanos também o são. Diferente da visão cristã que advoga que somente Jesus é uno com essa realidade, ao passo que todos os outros homens são unidos com Adão. Nessa compreensão espiritual não há persuasão, mas a visão verdadeira da unidade entre todos os homens e todo o universo com o princípio supremo.

A espiritualidade hindu busca o Âtmâ-jñâna, o conhecimento do Si Mesmo, e o conhecimento da divindade não pode ser separado disso. Sem uma doutrina correta do Atma, não há doutrina correta do Deva. Essa divindade é conhecida na parte mais luminosa da mente, na chamada 'caverna do coração', é compreendida pelo ajña-chakra, pelo terceiro olho, ou pela coroa dos mil lótus no topo da cabeça. E Allah e Jeovah não são deuses obtidos por yoga, pelo conhecimento de si mesmo, são na verdade mais parecidos com ideologias do que espiritualidades, segundo Swarup.

O papel do Hinduísmo no mundo

Segundo o autor, há um despertar nos povos colonizados, no sentido de entender que as religiões que praticam lhes foram impostas. As culturas estão tentando entender suas raízes mais antigas, ancestrais, e hoje em dia não se satisfazem mais com a Cristandade ou o Islam. A visão de que o paganismo era uma rede integrada de compreensão que vigorava em outro período da história está lentamente ressurgindo. 

Assim, o velho mundo, a Índia, tem uma mensagem aos povos do novo mundo, que começa a se desvincular da grande narrativa que lhe foi imposta. A desmoralização das tradições ancestrais tem como encontrar no Sanatana Dharma uma referência espiritual para entenderem o que era o mundo pré-cristão. A questão é diferente nos países islâmicos que ainda tem de lutar pela independência intelectual básica.
"O Hinduísmo pode ajudar todos os povos que estão em busca de uma renovação religiosa, porque ele preserva de alguma forma os seus velhos Deuses e religiões; ele preserva, em seus váriso níveis, tradições religiosas e intuições que foram perdidas. Muitas países hoje sob influência do Cristianismo e do Islam, tiveram em algum momento grandes religiões; tiveram também grandes Deuses que preenchiam adequadamente suas necessidades éticas e espirituais e inspiravam grandes atos de nobreza, amor e sacrifício. Mas por muitos séculos, essas tradições têm estados sob ataque e muito tem sido dito contra elas, enquanto elas permitiram a nova divindade totalitária oferece tudo o que quisesse. Os resultados foram desastrosos. O fanatismo religioso desceu sobre a terra, e o conceito do Deus único trouxe o conceito das duas humanidades, e a agressão religiosa se tornou a mais alta tarefa e moralidade. A religião mesma se tornou dogmática e perdeu sua interioridade e visão.  Os indivíduos e as coletividades se sentiram vazios por dentro."
Na próxima postagem vou concluir a resenha com as considerações de Swarup contrastando a espiritualidade semítica e a espiritualidade yóguica, além de fazer fazer alguns comentários críticos ao livro, colocando-o em perspectiva histórica e entendendo-o diante de outros pontos de vista que abordam a comparação de tradições espirituais.

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Saturday, April 21, 2018

Ram Swarup e a visão hindu do Ocidente (parte 2)

Sita Ram Goel e Ram Swarup
Desde o ponto de vista ocidental, que se vê como o ponto de vista da raça humana mesma, o Islam aparece como um apêndice, irmão bastardo do cristianismo. Desde o ponto de vista das civilizações orientais, considerado por muitos como inexistente ou ilegítimo, ambas as tradições surgem como fato atípico e excepcional, motivo de perplexidade.

Ram Swarup observa que a primeira fase nítida desse encontro entre esses dois titãs, que deu origem indireta aos estudos orientais no Ocidente, foi através da luta armada:
"Desde seu próprio nascimento o Islam achou-se em conflito com a Cristandade próxima. Movido pela mesma paixão e com as mesmas pretensões, as duas religiões se engajaram em amargo conflito por um milênio. O Islam bateu à porta da Cristandade, perturbando boa parte da Europa por séculos. Com o tempo a Cristandade respondeu com a espada das Cruzadas. A onda do Islam foi detida; a Cristandade ocidental foi unida; o poder do papa cresceu de forma tremenda e a Cristandade voltou sua visão para Oriente. E o Oriente tornou-se objeto de uma busca contínua e agressiva. As cruzadas armadas terminaram em ignomínia por volta do século XIII, e a Cristandade agora pensava em novos meios de penetração" 
A segunda etapa de aproximação se deu a partir do Concílio Ecumênico de Viena (1311-1312), em que houve a criação de uma cadeira especial de estudos das línguas hebraica, árabe, caldaica. Nos anos seguintes as autoridades eclesiásticas declarariam que "a Santa Igreja deve ter abundante número de católicos bem versados em linguagens, especialmente as dos infieis, de maneira a poderem instrui-los na Sagrada Doutrina". Essa tendência cresceu nos concílios seguintes, e a Igreja passou por profundas transformações, desenvolvendo ferramentas intelectuais para apaziguar os conflitos internos decorrentes do surgimento do protestantismo e o questionamento da autoridade eclesiástica. Contudo, Swarup observa que, desde um ponto um ponto de vista mais profundo:
"[...] ainda que diferentes grupos de cristãos tivessem agudas disputas internas, todos eles encaravam o mundo não-cristão de maneira unitária. Após um aplacamento, as nações protestantes também se juntaram ao jogo missionário com grande fervor. De fato, considerando a si mesmos como legítimos herdeiros da verdadeira Cristandade, eles estavam certos de que teriam êxito onde a Igreja Católica havia fracassado" 
George Sale, primeiro ocidental a traduzir o Corão, chegou a dizer que "é somente os Protestantes que podem atacar o Corão com sucesso" e que, na verdade, "a Providência lhes havia reservado a glória dessa demolição". 

William Muir, representante do Império Britânico, quase cem anos depois, se questionaria o porquê de o Islam ainda não ter caído e se convertido, e a razão talvez fosse "o fanatismo dos muçulmanos, a permissividade de concubinato e escravidão, e seus padrões baixos de moralidade". 

Em linhas gerais foi assim os cristãos desenvolveram seus estudos sobre o Islam, segundo Ram Swarup: o Islam foi, desde o começo uma 'fé espúria', seu autor um 'falso profeta'.

Com o aprofundamento dos estudos, essa posição inicial de hostilidade pura cedeu um pouco. Os cristãos começaram a ver vantagens civilizacionais no Islam. O autor cita o exemplo do reverendo Charles Foster da Igreja Anglicana, que, no século XIX, ainda que com o panorama dos estudos islâmicos bem mais avançado, considerava o Islam como 'superstição maligna', e seu fundador como um 'impostor, mundano, sensualista, demoníaco, indo além até mesmo da permissividade do seu credo permissivo'; contudo, conseguia ver assim mesmo a ação civilizatória dos muçulmanos, pois  'a limpeza do mundo da poluição brutal da idolatria e a preparação do caminho para a recepção da fé mais pura, [o Cristianismo], pode bem ser considerada como uma bênção'.

Ou seja, os cristãos viam o Islam de forma semelhante a como Marx via o Capitalismo, como estágio necessário desde a idolatria pura até a Cristandade. 

Em meio a essa visão hostil, visões muito mais liberais sobre o Islam também ganhavam vigor, admitindo suas positividades em diferentes graus, e até louvando suas virtudes, sempre tendo em vista os benefícios que o Islam trouxe à sua sociedade em relação à condição pagã anterior. Por fim, com a popularização dos escritos muçulmanos, os cristãos começaram a perceber que as virtudes de Maomé tinham até mesmo uma raiz legítima dentro da própria ancestralidade profética da religião cristã. Ou seja, as críticas que poderiam ser oferecidas ao profeta caberiam perfeitamente também a Moisés ou aos profetas do Antigo Testamento. Um ataque ao Islam implicava, portanto, um ataque às raízes da psique e do ethos profético antigo. 

A partir dessas percepções mais avançadas, a religião muçulmana começou a ser entendida como 'formidável antagonista', que oferecia questões e problemas muito mais profundos do que pareceu à primeira vista. Ram Swarup cita de novo William Muir para ilustrar essa tese:
"De todas as variedades de religião pagã, a Cristandade não tem nada a temer, pois eles nada mais são que exibições passivas de escuridão brutal, que desaparecerá diante da luz do Evangelho. Mas no Islam encontramos um poderoso inimigo, um usurpador sutil, que subiu ao trono sob o disfarce de sucessão legítima; e atacou as forças da coroa para suplantar sua autoridade. É pelo fato mesmo de o Maometanismo reconhecer as origens divinas, e ter tomado emprestado tantas armas da Cristandade, que ele é um adversário tão perigoso"
O autor diz que, no fim das contas, desde o ponto de vista hindu, que será desenvolvido em seu livro, o conflito entre as duas tradições se dá por uma noção errada da Divindade:
"A verdadeira causa do conflito é, claro, diferente da imaginada aqui por Muir. Ela consiste em uma compreensão inadequada da Divindade da parte tanto da Cristandade como do Islam. O Deus de ambos ensina a perseguir religiões que não sejam a sua própria. Ambos são dogmáticos, fundamentalistas e teológicos. Ambos carecem do Yoga, ou seja, a ciência própria e a disciplina para a exploração interna; ambos buscam expansão externa; ambos agressivamente pretendem ser superiores, e ambos, por  natureza, desconhecem a teoria de co-existência pacífica." 
Se o fervor missionário ofereceu o impulso inicial para a exploração e o estudo do Islam por parte dos cristãos, deve-se considerar que com o tempo o fator religioso foi ficando em segundo plano, cedendo lugar aos motivos imperiais, que tomavam a dianteira historicamente.  O crescimento do racionalismo tornou o Cristianismo menos e menos confiante em si mesmo, e os estudos orientais, que haviam começado e se estabelecido dentro de seus limites adquiriram uma outra dimensão. Swarup diz que o estudo sobre a vida de Maomé do anglicano Margoliouth foi um marco nesse sentido, por sua pretensão mais científica e a riqueza de detalhes, buscados nas fontes originais.

Uma peculiariade nos estudos de Margoliouth, talvez devida aos próprios preconceitos científicos de seu tempo conjugados com as pretensões positivistas dos espiritualistas e a decadência da religião, é o entendimento da revelação do Corão como um fenômeno de mediunidade, comparando-a inclusive com a então recente 'revelação' de Joseph Smith, fundador do mormonismo. O autor anglicano também aplica a teoria da mediunidade (entendida de forma mais ampla) à Bíblia e ao Deus judaico. O profeta é sempre um medium, ou seja, o fator de comunicação entre o transcendente e o imanente. E a figura mesma de Jesus é uma figura mediúnica, um intermediário entre Deus e a humanidade. 

Swarup observa que, assim como a Cristandade, o Hinduísmo também entrou em conflito com o Islam. Ainda que não por sua escolha. Ao contrário dos cristãos, os  hindus nunca se mobilizaram para estudar a religião do profeta. Os reinos dhármicos lutavam militarmente e politicamente, como o fizeram os cruzados cristãos, mas suas elites intelectuais e espirituais nunca quiseram investigar as motivações teológicas e ideológicas da nova religião. No auge das invasões muçulmanas no sul da Ìndia, os textos contemplativos e os debates vedânticos, que estavam sendo produzidos copiosamente, jamais os mencionam em nada, era como se a coisa toda não existisse.

Os hindus, engajados em sofisticados debates sobre a natureza última do Brahman, mantinham suas tecnologias de yoga e ciência interna, mas jamais entenderam o Deus muçulmano, que tinha, literalmente, traços de ciúmes, buscava soberania, apontava escolhidos para missões especiais, proclamava guerras, destruía templos, e os convertia em zimmîs. Swarup diz que muitas questões, que nunca foram nem mesmo perguntadas, ainda hoje são importantes, e devem ser feitas:
"O Allah do Corão é um ser espiritual? Ou é um tipo de formação vital e mental, um ideia hegemônica? Ele é a verdade mais profunda do homem, que reside em seu ser interior? Ou é uma projeção de uma fonte menos edificante da psique humana? Ele é descoberto quando o coração do homem está tranquilo, sem desejos e puro? Ou ele se origina em um estado mental febril? Sua fonte é o samâdhi e o yoga-bhûmi, ou algum transe não-yóguico? Qual é a verdade do profetismo que afirma que Deus pode ser conhecido somente indiretamente através de um intermediário favorito, um 'Filho Único' ou um 'Último Profeta'?
Essas e outras questões, diz o autor, pedem uma elucidação dentro da espiritualidade Hindu, contudo os sábios hindus permanecem silenciosos.
"Será que os sábios hindus foram tomados de tamas e portanto dominados pela preguiça? Ou será que eles habitam uma região além dos temporais dos credos passageiros e das modas ideológicas? Será que estão em um estado que espera as legiões tonitruantes passarem e mergulha em contemplação profunda das verdades eternas novamente?  Ou será que o silêncio é apenas aparente e contém já uma verdade profunda para os olhos que podem ver e os ouvidos que podem ouvir?  A espiritualidade indiana não discutiu, debateu ou se opôs. Mas será que ela não ofereceu uma resposta completa?"
A espiritualidade hindu proclamou que o Supremo está além dos números e da contagem.  Que ela teve inúmeras manifestações que não se repeliam mutuamente no campo espiritual, mas buscavam incluir e reconhecer-se dentro de uma perspectiva abrangente.  Uma espiritualidade que está no coração do devoto e não em povos escolhidos, profecias exclusivas, igrejas privilegiadas, fraternidades ou ummahs. 

Swarup observa que, na verdade, credos como o Cristianismo e o Islam eram inclusive aguardados pelos sábios hindus. Religiões exteriores tinham de surgir na chamada Kali-Yuga. E talvez muito da falta de reação se deva a essa aceitação da realidade (e talvez a expectativa de que essas religiões passem naturalmente). Seu livro, como falei na primeira postagem, busca um caminho diferente do mero silêncio tradicional dos espiritualistas hindus verdadeiros. Propõe, de certa forma, um novo universalismo (o que seria seguido por outros pensadores hindus e tem outros proponentes na atualidade) e observa que,
"Algo inevitável está ocorrendo. O Oriente está acordando de seu sono. A sabedoria do Hinduísmo, Budismo, Taoismo e Confucionismo estão se tornando conhecidas no mundo. [...] reivindicações de  'última profecia' ou 'filho único', até agora impostas por grande condicionamento intelectual, amedrontamento, porrete, estão se tornando inaceitáveis. Mais e mais homens estão buscando experiência autêntica. Uma crença emprestada não serve mais. As pessoas estão deixando de ser crentes obedientes e estão se tornando buscadores. Eles não querem mais serem ovelhas de um terceiro, agora que eles sabem que podem ser seus próprios pastores. Uma autoridade externa, ainda quando é chamada de Deus em algumas escrituras, alternando entre ameaça e promessa, está cada vez menos causando impressão; as pessoas agora percebem que a Divindade é sua condição verdadeira, secreta e que eles buscam dentro de seu próprio ser. Tudo isso é consoante com a sabedoria Oriental."
Nas próximas postagens vamos ver como o autor compara as tradições orientais e ocidentais, como é possível um universalismo sem a narrativa universalista ocidental.

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Friday, April 20, 2018

Ram Swarup e a visão hindu do Ocidente (parte 1)

Parece que  não há nada em português sobre ele e sobre vários pensadores indianos, então vale a pena fazer algumas apresentações aqui no blog.

Ram Swarup Agarwal nasceu em 1920 no estado de Haryana na Índia e faleceu em 1998.  Tomou parte no Movimento Indiano de Independência e teve uma biografia pouco sobressaliente do ponto de vista mundano, nunca se casou e nunca se envolveu com negócios, sendo um praticante regular de Yoga e escritor. Foi um crítico pioneiro do missionarismo cristão, do islamismo, bem como do capitalismo e do comunismo. Suas críticas ao comunismo em especial mereceram reconhecimento de pensadores ocidentais. Um pouco mais de sua biografia pode ser conferida no link abaixo, em inglês,  pelo orientalista belga Koenraad Elst:

Ram Swarup (1920-98): outline of a biography

Ram Swarup é original, pois é o primeiro pensador vigoroso, com intuição yóguica, de origem indiana, que se dedica a olhar para Ocidente e para o fenômeno moderno criticando-o e usando uma linguagem aceitável e acessível para os ocidentais.

Mas façamos uma breve digressão para ilustrar com dois exemplos a questão da visão ocidental dos hindus, e a reação hindu ao Ocidente.

Alberuni, historiador iraniano muçulmano do século X, em seu clássico sobre a Índia, relata que os hindus acreditavam que:
"Não há outra nação além da sua própria, não há outra raça humana que não a sua, e os outros seres criados carecem de qualquer ciência. Sua soberta é tal que, se alguém contar-lhes que há ciência também no Corasão ou na Pérsia, eles o chamarão de ignorante e mentiroso". 
O persa cita um brâmane, chamado Varahamira, que abre uma exceção ao afirmar que
Os gregos, ainda que impuros, merecem ser honrados, pois eles são treinados nas ciências, e portanto são superiores aos outros"
Outro testemunho de um relato ainda mais antigo: a biografia do místico Apolônio de Tiana, contemporâneo de Jesus, e em muitos pontos semelhante ao galileu, foi escrita pelo grego Filostrato no século III, e nela, temos a narrativa da viagem do notável místico por todo o Oriente Médio para se encontrar com os brâmanes na Índia; diz Filostrato:
"O próprio Apolônio descreve o caráter desses sábios e de sua habitação nas montanhas; em um de seus discursos aos Egípcios ele diz, 'Eu vi os brâmanes da Índia vivendo no mundo, sem pertencer a ele, fortificados sem fortificação, sem nada possuir, contudo possuindo a riqueza de todos os homens.'"
E ainda:
"Ele (Apolônio) fez outra pergunta, questionando quem eles consideravam ser; ao que ele (o brâmane) respondeu 'Nós consideramos que somos Deuses.'"
Mas voltemos ao Ram Swarup e à modernidade.

Tudo me leva a crer, conhecendo algo dos modos de pensamento dos antigos, que a atitude que parecia arrogância aos olhos de Alberuni (que, convenhamos, representava o invasor, então não é de espantar que não o abraçassem e acolhessem) -- ou seja, a atitude de dizer que muçulmanos (e depois cristãos, capitalistas e comunistas) não possuíam ciência, se dá principalmente porque entre os referidos brâmanes a ciência suprema era a jñâna, como talvez tenha percebido Apolônio de Tyana. E, de fato, não há muitas indicações de que os invasores tivessem tal ciência, como observava também no início do século XX o francês René Guénon ao comparar as civilizações.

Contudo, a omissão por parte dos orientais custou e custa muito caro. Os hindus, que possuíam uma das maiores culturas dialéticas do pensamento humano, onde diversos pontos de vista eram discutidos segundo as regras do chamado tarka-shastra, se recusaram, talvez subestimando muçulmanos e cristãos, a olhá-los de frente intelectualmente ou levá-los a sério. 

O seu livro "Hindu View of Christianity and Islam", que será resenhado criticamente na sequência de postagens futuras, surge como talvez uma incipiente reparação desse erro.

O livro foi escrito na fase madura do autor, após afastamento das questões políticas e emergenciais da cultura e independência indiana. O livro não consegue, e não pode, esconder a ferida civilizacional causada pela colonização de quase um milênio, por meio de armas, da Companhia das Índias Orientais, e por últimos da ideologias e da colonização intelectual vinda da academia ocidental. Contudo, a essência do livro está longe de ser mera reação: é um livro firme, de autodefesa, com pontos relevantes para entender o Ocidente e o Oriente para além dos véus do orientalismo.

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Postagens na sequência

Tuesday, March 27, 2018

A visão da essência da Mâyâ inefável

Disse o Brahmâ:

-- Muito surpresos estávamos por achar água onde nossa excelente aeronave pousara. Vimos que a terra ressoava com o arrulho doce dos pássaros, e estava cheia de árvores com seus frutos, e muitas florestas e jardins. Rios, poços, tanques, lagos e fontes de água – havia ali também mulheres e homens. Então vimos diante de nós uma perfeita fortaleza cercada por um muro divino, havia nessa cidade salões amplos para yajña, e vários edifícios magnificentes:

--"Quem terá construído esse paraíso maravilhoso?"

Então apareceu ao longe um rei, semelhante a um Deva, que naquele momento partia para uma jornada de caça na floresta. […] Contudo, numa velocidade inesperada nossa aeronave, propulsionada pelo ar, subiu aos céus e num piscar de olhos transferiu-se a outro lugar, não menos adorável.

Vimos diante de nós o jardim divino chamado Nandana. Ali, descansando debaixo da árvore Parijâta estava Surabhi, a vaca que realiza todos os desejos . Perto dela havia um elefante de quatro presas; e ali também vimos Menaká e inúmeras Apsarâs dançando e cantando, alternando entre mudrás divinos. Centenas de Yakshas, Gardharvas, Vidyâdharas estavam dentro do jardim Mandarâ e também cantavam e dançavam. No meio do jardim estava o Senhor Satkrati com Sachi, a filha de Pulomâ. Vimos então, maravilhados, Varuna, o senhor dos animais aquáticos, e também Kubera, Yama, Sûrya, Agni e outros Devas; Vimos que em nossa frente, Indra, o Senhor dos Devas, que acabava de sair de uma cidade toda decorada -- sentava-se imponente em seu palanquim, calmo e composto, carregado por servos. 

O nosso veículo começou a se elevar novamente, alto no céu, e em outro piscar de olhos, entramos no Brahmâ Loka, que é saudado por todos os Devas. Vishnu e Maheshwara ficaram muito perplexos ao verem que havia um outro Brahmâ naquela localidade. No salão central do Brahmâ, vimos os Vedas com seus membros, vimos serpentes, cordilheiras, oceanos e rios. Ao ver tudo isso os dois me perguntaram: 

--“Ó Deus de quatro faces! Quem é esse outro Brahmâ?” 

Respondi: 

--“Eu não sei quem é esse (outro Brahmâ)? Quem sou eu? E quem é ele? Como é que essa confusão está acontecendo em minha mente? Mas vocês são Deuses, me ajudem a entender...” 

Daí, nosso veículo, viajando com a velocidade da mente se transportou para o Monte Kailasha que estava rodeado de Yakshas, que concedem o êxtase. A montanha estava embelezada pelo jardim Mandâra, e ouvíamos doces sons de Sukas e cucos, e alaúdes, e tambores. Ao chegar ali, nós vimos o Deus de cinco faces, o que tem três olhos, o Bhagavân Shashi Shekhara, que tem dez mãos: ele se vestia composto com pele de tigre e de elefante. Ele estava naquele momento saindo de sua casa, e cavalgava em um touro. Os seus dois filhos, Ganesha e Kârtikeya, vestidos de forma gloriosa, o seguiam como guarda-costas. O touro Nandi e suas hordas também o seguiam, cantando hinos retumbantes de vitória. Ó Muni Narâda! Ficamos ainda mais surpresos quando vimos outro Shiva, rodeado de Matrikâs. Ficamos tão perplexos e cheio de dúvidas que apenas permanecemos ali sentados silenciosos observando.

Mas a nossa aeronave pegou voo novamente com a força do vento. E de imediato chegamos ao Vaikuntha, na corte rejubilante de Lakshmî. Ó Sûta! Lá, em Vaikuntha, vimos uma manifestação esplendorosa de poder. Nosso companheiro Vishnu ficou surpreso ao ver aquela cidade excelente. E vimos ali outro Vishnu de quatro braços, da cor da flor âtasi, usando roupas amarelas resplandecentes, adornado com joias divinas, montado no pássaro Garuda enquanto Laksmî Devî o abanava.

Diante da visão do outro Vishnu eterno, nos sentamos no veículo e olhamo-nos mutuamente surpresos, porém, não houve tempo -- uma vez mais, num piscar de olhos, o veículo se transportou para outro lugar. 

Nesse novo lugar vimos o oceano do néctar e suas ondas infinitas que se moviam causando insuportável doçura. O oceano estava cheio de animais aquáticos e as ondas sucediam-se infinitamente até que emergiu diante de nosso olhos, do meio do oceano infinito, um lugar maravilhoso chamado Mani Dvîpa (Ilha das pedras preciosas). Nessa ilha havia árvores celestiais floridas, cheias de pérolas e pedras raras, formando tapetes imensos com variedade incontável. Ouvíamos pássaros e o zumbido forte de abelhas, contra um fundo de música harmoniosa. 

De dentro da aeronave, vimos na ilha um catre lindíssimo que é chamado de Shivâkâra, cujas pernas representam Brahmâ, Vishnu e Rudra, e cuja parte superior representa Sadâ-Shiva. O catre era semelhante a um arco-íris, com um tapete delicadíssimo estendido, ornado com minúsculas e delicadas pedras preciosas.

Vimos então uma Deusa.

Ela estava sentada nesse catre, sua roupa era intensamente vermelha, e ela tinha uma guirlanda rubra de flores frescas ao redor do pescoço, umedecidas por pasta de sândalo. Seus olhos eram vermelho-escuros; essa Deusa, de linda face, e lábios vermelhos nos pareceu mais linda que dez milhões de trovões, mais linda que dez milhões de Lakshmîs, e ofuscante como o Sol vermelho. Estava sentada, com doce sorriso nos lábios, em suas quatro mãos levava uma corda com um laço, um aguilhão, e mudrás indicando que ela dava bênçãos aos seus devotos, e destruía todo o medo. Jamais tínhamos visto ou imaginado tal forma divina. Até mesmo os pássaros daquele lugar repetiam e melodia o divino mantra da Deusa que tem a cor do sol nascente, da Deusa compassiva, da Deusa que é o próprio enrubescimento da juventude. 

Ela sorria.

Estava adornava com todas as belezas da Natureza e várias joias, braceletes, diademas e ornamentos lustrosos. Seus seios imponentes desafiavam o botão do lótus.  Sua face resplandecia sob a iluminação do brilho de seus brincos, que tinham o formado do Yantra sagrado. Várias Devis jovens lhe serviam: havia Sakhis nas quatro direções – sempre cantando hinos para Maheshwarî, a Senhora do Mundo. Ela estava sentada no meio do Yantra de seis pontas.

Indagávamos entre nós:

--“Quem é essa Deusa? Qual é o seu nome? Não sabemos nada sobre ela, e estamos muito longe.” 

À medida que olhávamos, fazendo esforço para discerni-la na distância, a Deusa de quatro braços mudava de forma e aparecia com mil olhos, mil mãos, mil pés... Assim nos pareceu.

Ó Nârada, ficamos muito envergonhados, cheios de dúvidas e sem entender:

-- “Apsarâ, ou filha de gandhârva? Ou será outro tipo de Devî? Quem é ela?” 

Nesse momento, Bhagavân Vishnu, concentrando-se, conseguiu discernir o sorriso da Devî e pela sua infinita inteligência compreendeu o mistério: 

-- “Essa é a Devî Bhagavatî, Mahâ Vidyâ, Mahâ Mâyâ, indestrutível e eterna; Ela é a completude, a raiz, a causa de todos nós. Essa Devî é inapreensível para os que tem intelectos não qualificados. Somente os yogues podem vê-la, por meio de seu ascetismo. Ela é eterna e também não-eterna: Brahman e Mâyâ. Ela é a Força da Vontade Absoluta do Âtman Supremo. Ela é a matriz do mundo. Essa Devî de olhos imensos, a Senhora do Universo, foi ela quem produziu o Veda.

Aqueles que não tem mérito, não podem adorá-la. Durante o período da dissolução universal ela destrói todo o universo, e todos os corpos são absorvidos em seu corpo. Ó Devas, agora ela reside na forma de semente! Contemplem as manifestações de seus poderes emanando como ornamentos divinos e perfumados, servindo-a, com braços. 

Ó Devas, hoje fomos abençoados, imensamente abençoados por termos tido essa visão. Nossas práticas espirituais do passado por fim renderam frutos. Se não fosse assim, como Ela poderia ter se mostrado diante de nós em sua forma? Somente aos que têm imenso mérito, adquirido por meio de práticas espirituais, somente as grandes almas podem ver a forma da Bhagavatî. Os que vivem apegados aos objetos dos sentidos não podem jamais vê-la. Ela é a que todos chamam de Raiz da Produção, a unidade entre a Consciência Infinita e a Felicidade Infinita. 

É ela que cria esse Brahmânda e depois o exibe ao Si Mesmo Supremo.

Ó Shiva, Ó Brahmá, todo esse universo e todos os rshis, tudo o que está contido no mundo manifestado e imanifestado -- ela é a causa de tudo. Ela é a Mâyâ que assume todas as formas. A Deusa de tudo.

Onde estou eu? Onde estão os Devas? Onde está Lakshmî, e todas as Devîs? Nós não podemos compararmo-nos a um milésimo dela, a Deusa.

Foi ela, de excelência absoluta, foi ela a quem eu vi no infinito oceano, ela entendeu que eu, Vishnu, era só um bebê. No princípio de tudo, quando eu dormia no catre feito de folhas da figueira de bengala, chupando o meu dedo, como um bebê qualquer, foi ela que me ninou entre as folhas da figueira de bengala como uma verdadeira Mãe. Agora eu me lembro de tudo o que senti ao vê-la, e eu reconheço que ela é a Bhagavatî. E tendo visto, eu os instruo: ouçam atentamente, ela é a Deusa, e ela é nossa Mãe.”

(Devî Bhâgavata Purâna)