Saturday, October 19, 2019

Ainda sobre a reencarnação


Quando o Âtman, subsistente em um determinado corpo, abandona esse corpo que ocupava, então há a morte (praitî); quando ele obtêm um novo corpo, com outros órgãos dos sentidos, há o nascimento (bhâva) após a morte (pretya). A repetição desse processo de nascimento e morte não tem começo, mas tem fim com a libertação (apavarga).
Vatsyayânâcharya, comentário aos Nyâya-Sutras: 1,1.
Esse ciclo do samsâra pertence ao Âtman ou à mente? Se por samsâra você quer dizer a ação de receber ou deixar vários corpos, então pertence à mente, pois é a mente que de fato se move (samsarati); se por samsâra você quer dizer a experiência do prazer ou da dor, então pertence ao Âtman, pois o Âtman é o experimentador.

Udayanâcharya, Nyâya-Vartika, comentário ao verso 19.

Há quase dois anos conclui uma sequência de postagens, até agora a mais repercutida desse blog, que foi um breve estudo sobre o tema renascimento/reencarnação entre perenialistas.  Na ocasião o estudo teve uma função depurativa; eu me desvencilhei da ideia desses pensadores ocidentais sobre o assunto, buscando fontes tradicionais. Contudo, relendo a sequência, vejo hoje que o fiz de forma ainda um pouco hesitante, evitando, por exemplo, o termo “reencarnação”, pois ainda reconhecia o mérito da crítica perenialista às religiões de cunho espiritualista que adotam esse conceito (ainda reconheço alguns aspectos, mas acho a coisa menos importante do que eles fizeram parecer). 

Como eu sigo os rishis e não outros pensadores, seja das tradições acadêmicas ou esotéricas ocidentais, acho que cabe fazer algumas marcações bem definitivas e que vão deixar a questão clara e sem meias palavras. O que eu não fiz antes.

1. Usando também o termo "renascimento", que é bom, não descarto o termo reencarnação para traduzir punarjanman/pretyabhâva, pois o termo só é inconveniente dentro das precauções próprias da “militância antimoderna” dos perenialistas. Ele pode ser usado, e vou usá-lo aqui, pois de fato trata-se de uma “encarnação” repetitiva de um jivâtman (daria inclusive até para fazer a mesma defesa usando terminologia budista, mas como não sou seguidor dessa tradição, vou me abster). 

2. Além do mais, ao evitar o termo reencarnação, eu estaria dando a entender que me acomodo sob os marcadores ideológicos binários do tipo “Tradição x Modernidade” ou “Iniciação x Contra-Iniciação” e às suas implicações políticas diretas ou indiretas, o que não é o meu caso. Na minha opinião, dá para dizer que o cristianismo inteiro já é de certa forma uma “modernidade”, pois já surgiu dentro da Kali-Yuga, segundo a datação do shastra (e não de acadêmicos); ou ainda, o cristianismo (ao menos o que se tornou influente e organizado) tem um vínculo, se não causal, ao menos de continuidade inevitável com a tal modernidade e seus valores.

3. Não só o tema da reencarnação existe, mas é central, pois está vinculado ao “diagnóstico” dos rishis sobre a condição humana, e é diretamente ligado ao “remédio” oferecido. A compreensão incorreta (mithyajñana) ou a dúvida sobre o tema pode colocar a perder os métodos oferecidos pelos rishis e levar as pessoas a ações ou esforços incorretos ou inefetivos para eliminar as causas do sofrimento.

4. Portanto, e isso deveria ficar claro, a reencarnação é de um jivâtman segundo seu princípio causal último(karana-sharîra), não do Paramâtman (Espírito Supremo), pois este é independente (svatantra) de qualquer princípio causal. Quaisquer que sejam, portanto, as divergências entre os pontos de vista doutrinais (vâda) sobre a relação metafísica entre Paramâtman e jivâtman (não-dualidade, dualidade) isso é irrelevante para o tema da reencarnação. A alegação de que não há reencarnação pois não há um “eu” é assim sofística, e propositalmente confunde os planos superiores e inferiores.

5. A crítica de que a reencarnação seria de fundo “moralista” e que isso seria ausente em tradições orientais, tem razão em parte. Contudo, se por um lado não há “moralismo”, de fato há uma efetividade causal na “ética” ou no dharma. O “papa” (demérito) e “punya” (mérito), bem como os as ações concretas da mente, fala ou corpo são causas eficientes da reencarnação, e às vezes o mérito e demérito pode se cruzar com elementos morais.

6. A reencarnação não é de uma entidade coletiva, nem genética, nem de DNA, nem associada a totens tribais, nem associada a “daimons” da espécie como quer Évola. É realmente declarada como o desfrute de méritos e deméritos de um jivâtman individual.

7. As doutrinas espíritas e teosóficas têm impropriedade desde o ponto de vista dhármico, pois suas descrições se inserem em outro “framework” e têm lastros próprios da mentalidade ocidental como o denunciado “moralismo” ou  o “evolucionismo”; em alguns casos até são francamente positivistas como no caso dos espíritas, além de não enfatizarem a libertação como fim último do homem e não admitirem que homens e devas possam involuir. Contudo, é preciso dizer que as doutrinas espíritas e teosóficas, se têm essas impropriedades, estão, (ao menos) formalmente, mais próximas das doutrinas dhármicas do que, por exemplo, as doutrinas do pecado original, queda ou salvação, que são conciliáveis só por meios de ocultismo, simbolismos e intérpretes não validados.

8. As tradições espirituais que não ensinam a reencarnação não têm condições de ensinar o samsâra, nem as causas do samsâra, nem os meios de eliminar essas causas, nem a libertação. Portanto, sua doutrina não é dhármica. São doutrinas incorretas e seus benefícios, se ocorrem, se dão indiretamente, não pelo ensinamento mesmo.

9. Somente com apelo à insanidade é possível negar o extenso tratamento do tema nos shastras. O único ponto em que alguns mestres e rishis negam a coisa é quando usam, desde o ponto de vista do advaita-vedânta, o chamado modo discursivo “paramarthika” (de objetividade suprema). Isso diz respeito à unidade entre Paramâtman e jivâtman, que, uma vez aceita, invalida a independência do jivâtman, e, por conseguinte, sua autonomia metafísica.

Assim, continuar dizendo que o tema não existe, não é tratado, é tratado de forma periférica, ou é tratado de forma meramente “exotérica” é desonestidade para com os rishis e sábios védicos. Eu não defendo qualquer modalidade de opinião conciliadora desse tipo.

Acho que agora sim o tema está concluído com clareza e de forma definitiva.