Monday, December 25, 2017

O renascimento segundo o Veda (Parte I)

Pensei bastante antes de colocar esse tema aqui, e como fazê-lo. Não sou erudito em Vedânta, e tenho apenas noções rudimentares de sânscrito, mas decidi colocá-lo no blog porque creio que pode esclarecer dúvidas de pessoas que tomam conhecimento desses assuntos através de outras fontes como, por exemplo, o René Guénon e o Kumârasvâmî, ou ainda acham que se trata da mesma noção dos espiritas, quando na verdade não é. 

Vou me limitar a colocar as referências dos âchâryas tradicionais hindus, e não vou entrar em polêmica. Caso as pessoas queiram se aprofundar, procurem um instrutor qualificado em qualquer das três principais escolas vedânticas. Se notarem algum erro nas referências, sintam-se à vontade para apontá-los.

É bom ainda enfatizar que não é doutrina banal e de fácil apreensão, e está inserida dentro da compreensão esotérica da chamada doutrina dos 5 fogos, daí ser assunto que exige um estudo e uma mentalidade sutil para ser compreendido corretamente em todas suas implicações. Ademais, no Chândogyopanishad o rei xátria declara ao brâmane que 'esse conhecimento nunca foi próprio dos brâmanes antes de você, portanto, em todos os mundos esse ensinamento pertence somente aos xátrias'.

O post-mortem segundo os Vedas tem 4 caminhos possíveis: o caminho tratado aqui é o renascimento (punarjanman) pelo caminho dos ancestrais, pitris ou 'da fumaça', ou seja, o caminho daqueles que, após a morte vão para a esfera da Lua, que é diferente do caminho daqueles que se encaminham aos mundos subterrâneos ou infernais de yama, ou pelo caminho luminoso chamado caminho dos devas, ou daqueles que se libertam do samsâra. Eu vou tratar só desse aspecto porque ele é o mais polêmico e, de certa forma, às vezes é confundido com doutrinas de outras origens. 

Os temas dessa primeira parte são.

1. Se após a morte a jîva deixa o corpo em um envoltório.
2. Qual é a natureza desse envoltório.
3. Qual é o destino desse envoltório.

(traduzo aqui 'rûpa' quando se refere ao aspecto sutil do jîvâtman como envoltório, porque o termo 'corpo' tem conotações muito próprias dos 5 elementos grosseiros e as sensações pelas quais os conhecemos)

As fontes são o Chândogyopanishad de V.3. até V.9 e o Brahma Sûtra III.1 com os comentários de Swâmi Shivânanda, Adi Shankarâchârya, Râmânujâchârya  e Madhwâchârya, apoiado também no comentário do filósofo Râdhâkrishnan e as palestras do Swâmi Paramârthânanda. Vamos seguir a ordem em que as questões são expostas pelo Brahma Sûtra de Badarayana. Não vou usar muitas citações em sânscrito, mas os interessados em conferir podem se remeter diretamente às fontes indicadas.

B.S.III.1.1. Para a obtenção de um outro corpo o jîvâtman deixa o presente corpo após a morte envolvido por elementos sutis. 

Swâmi Shivânanda observa que o Vedânta rejeita a visão dos Bauddhas de que a metempsicose se dá sem os indriyas e que eles são gerados segundo o novo corpo, a dos Vaisheshikas de que somente manas participa do processo, a metáfora dos jainas de que a alma é como um papagaio que pula de uma árvore para outra. Segundo o Vedânta, o jîvâtman carrega consigo após a morte buddhi, manas, os prânas, os indriyas e os elementos sutis (não confundir com elementos físicos). 

Há uma discussão entre os vedânticos, pois parece, segundo a escritura, que somente o elemento sutil da água acompanha o jîvâtman, contudo todos os âchâryas concordam que, dado o caráter cumulativo na formação cósmica dos elementos (doutrina do surgimento dos elementos, também explicada no Veda) são três elementos sutis que formam o envoltório sutil aquoso - água, fogo e terra.

Os âchârya discutem alguma objeções sobre como é possível que os sentidos e órgãos sejam devolvidos às divindades e ao mesmo tempo migrem com o jîvâtman, contudo todas estão de acordo em que os pranas partem com o jîvâtman e que, na verdade, os órgãos e pranas não são dissolvidos nas suas respectivas divindades, mas recebem como que a graça de cada uma delas. As divindades cooperam para a nova configuração, por assim dizer.  Madhwâchârya tem uma aproximação levemente diferente, e diz que parte dos prânas é absorvido pelas divindades correspondentes, e parte migra junto com o jîvâtman. 

Râmânujâchârya observa que, partindo com um corpo aquoso, que tem em si também os três elementos sutis, jîvâtman chega ao dyuloka e seu corpo aquoso é convertido em néctar (amrta) que é consumido pelos devas daquele plano, e o jîvâtman se torna o 'Rei do Soma' (somarajanah). Quando esse néctar se encerra, o jîvâtman é atraído pelos remanescente do karma de novo.Os âchâryas também comentam a 'simpatia' entre os elementos usados nos rituais e a natureza do envoltório que a jîvâtman carrega. 

B.S. III.1.7. Mas que as jîvas sejam alimentos para os devas no mundo celestial é usado metaforicamente, uma vez que essas jîvas não conhecem o Si Mesmo.

E ainda:

C.Up.V.10.4. Esse é o Soma, o Rei. Ele é alimento dos devas. Eles o comem.

Swâmi Shivânanda observa que se de fato as jivas servissem de alimento aos deuses os rituais védicos e as virtudes seriam inúteis ao jîvâtman mesmo. Portanto, que os devas se alimentem do jîvâtman, não significa que os devas os matiguem ou os engulam (observação dos âchâryas), mas que se regozijem e que interajam com os jîvâtman, que lhes são subordinados e fazem parte do 'banquete dos devas'. Râmânujâchârya acrescenta que o jîvâtman que ali vai parar é como um 'animal dos devas', ou seja, eles não interagem no mesmo nível, mas servem-lhes de desfrute e entretenimento. Madhwâchârya  observa que a 'imortalidade' conferida na esfera da lua é uma imortalidade temporal, por assim dizer, pois a imortalidade verdadeira é dada pelo 'conhecimento do Senhor'. Ora, se o jîvâtman é o 'soma' ou o néctar de Indra, sua imortalidade perdura somente pelo tempo em que o Indra, Manu, ou o Surya daquele ciclo viva.
III.1.8. Quando o seu karma é exaurido pela fruição dos devas, o jîvâtman retorna ao mundo do karma[...] 
E também
Ch.Up.V.10.5 "Tendo ali habitado até que o karma seja exaurido, eles retornam novamente da mesma maneira que vieram"
Madhwâchârya  observa que, quando a fruição dos deuses esgota o karma que o levou até aquela esfera, o jîvâtman se 'recorda' de onde veio e então retorna. O caminho de descida, contudo, não é o mesmo caminho da subida (vamos descrever isso melhor nas postagens seguintes). Râmânujâchârya também tem a mesma posição. Adi Shankarâchârya, em seu comentário, rebate à uma possível objeção de que o karma teria sido exaurido no Chandraloka mesmo e que não haveria mais karma para que o jîvâtman voltasse ao mundo da ação. Ele diz que o karma que leva até o aquela esfera não é o mesmo que traz de volta. Swami Shivânanda explica que o corpo sutil aquoso do jîvâtman é desfeito pelo fogo de uma tristeza que lhe acomete, e ele volta ao mundo da ação, ou seja, os diferentes tipos de karma que ele carrega consigo, fazem com que ele primeiro ascenda à esfera da lua, e depois seja atraído novamente pela esfera da terra.  

Na próxima postagem vou falar um pouco sobre os cinco fogos que catalizam as cinco etapas de ascensão e descenso do jîvâtman no caminho dos pitris ou ancestrais. E no último vamos falar sobre ciclos cósmicos e possíveis relações entre esses movimentos, usando também textos do Bhagavad Gîtâ e outros Upanishades, junto com os comentários. Os argumentos usados aqui são os de autoridade, ou seja, são baseado no Veda e nos comentários autorizados, contudo, em postagens futuras vou fazer meus próprios comentários desde o ponto de vista 'profano' da lógica ou inferência (laukikânumâna), principalmente no que diz respeito às demonstrações guenonianas.

(Leia também a segunda parte dessa postagem)