Friday, March 9, 2018

A árvore e os frutos

Dvâ suparnâ sayujâ sakhâyâ, samânam vrksham parishasvajâte tayor anyah pippalam svâdv atty anashnann anyo'bhicâkashîti. 
"Dois pássaros, sempre unidos, repousam na mesma árvore. Dos dois, apenas um come o fruto, e o outro observa sem comer."
Shvetâshvataropanishad IV.6

Para entender o Dharma é preciso se livrar de muitas concepções próprias a religiões ocidentais, com  propostas e ângulos completamente diferentes na compreensão da função ou origem do homem, e que servem para oferecer soluções para problemas que eles consideram como relevantes, segundo suas tradições e escrituras, mas que não têm nada a ver com as soluções ou tecnologias espirituais védicas.

Uma dessas compreensões inconciliáveis, e isso deveria ficar claro, é a de que o homem é essencialmente caído, no sentido ontológico. Na imagem semítica, interpretada pelas religiões que a seguem, parece que ninguém permaneceu no paraíso, pois tanto Adão e Eva comeram do fruto proibido e foram expulsos, de forma que o paraíso está vazio.

O simbolismo védico equivalente, para a construção de uma antropologia, é o trecho citado acima, que aparece repetido em diferentes partes da shruti (revelação) e é um ensinamento forte e central do Veda. O fato notável é que um dos pássaros nunca come o fruto, e entende-se que esse que não come o fruto é o Âtman mesmo. As implicações são óbvias: o homem mantém a sua natureza divina em essência, e apenas parte dele se embrenha nas ações e reações, que é o ciclo infinito de morte e vida.

O Âtman, em seu 'svarûpa' (forma própria), nunca 'caiu'; permanece como jñatâ (conhecedor) e como substrato de consciência e luminosidade (que permite a manifestação de qualidades como cor, sabor, dor, prazer). O jivâtman (que entre filósofos ocidentais como Plotino corresponderia talvez ao 'zôion' ou 'composto') é Âtman entendido como desfrutador permanente, quando em associação com a mente ou 'manas', que, por sua vez, se move e recebe em sua substância, de forma inconsciente, os efeitos da dor e prazer.

Em seu comentário ao verso 19 dos Nyâya Sûtras, Vatsyâyânâchârya observa, desde seu próprio ponto de vista, que:
"Se por samsâra se entende a ação  (kriya), então o samsâra pertence à mente (manas). Uma vez que é a mente que, de fato, se move. Se por outro lado, o samsâra é a experiência da dor e do prazer, ela pertence ao jivâtman, uma vez que é ele que experimenta a dor e o prazer."
Ou seja, o fator de 'queda', para prosseguir com a analogia, está na qualidade de avidyâ (ignorância) associada à mente (que gera vida e morte, desejo, etc.) e não à essência mesma do homem, eterna, que permanece como sujeito ou experimentador; e isso é entendido assim até mesmo desde os pontos de vistas mais externos e 'exotéricos' (laukika) como os nyâyas, em que o Paramâtman é distinto, em vários atributos, de o jivâtman.

É verdade que desde certo ponto de vista, secundário desde a perspectiva espiritual, poderíamos entender que 'o homem é a mente', mas aí entraríamos em definições circulares movendo a definição 'homem' para baixo e para cima, dispendendo esforço racional e conceitual desnecessário só para justificar a tese de que o homem é essencialmente caído, posição que legitima a tal da doutrina da queda, e que demanda 'remédios' estranhos à concepção védica.

O ponto de vista superior e mais legítimo para a contemplação e compreensão verdadeira, segundo nos instrui a autoridade ancestral, é a de que o homem é essencialmente o Âtman, e é pela compreensão do Âtman que se atinge o fim último do homem.