Wednesday, October 9, 2019

Reflexões sobre o Samudra Manthana (Parte 1 - Durvâsas)

O Samudra Manthana, traduzido por alguns como Batimento do Oceano de Leite, é dos episódios mais conhecidos e menos compreendidos da literatura purânica. O episódio apresenta toda a cosmologia védica, toda a microcosmologia, e quase todas as principais divindades estão envolvidas no processo. É pouco compreendido, até pela abundância de referências esotéricas, tântricas, pelo número de forças divinas e assúricas envolvidas, pela quantidade de acontecimentos intercalados, e por ser, no fim das contas, o tema central e mais superior do Veda mesmo, que é o néctar da imortalidade, amṛta

Alguns aspectos da história são ligados à prática tântrica e shakta, e isso é muito pouco notado. Basicamente, os acontecimentos se desencadeiam quando o rishi Durvâsas fica irado com Indradeva e o amaldiçoa juntamente com toda a corte de devas. Para entender isso, e entender o fato de uma maldição do rishi Durvâsas descadear uma série de eventos, é bom remontarmos (e ficarmos atentos aos sinais) até à sua própria vida, ou antes mesmo disso, à vida de seus pais.

Durvâsas e o caminho tântrico

O rishi Durvâsas é o "fundador" sempre associado direta ou indiretamente a várias paramparas e ensinamento tântricos e/ou shaktas; é dele, por exemplo, a "regência" ou "visão" (para não usar o termo "composição") dos 61 shlokas do Shakti Mahimna Stotram em louvor à Tripura Sundarî. Ele também é o regente do mantra secreto de uma das 15 categorias de upâsaka-s cifradas em obras como o Saundarya Laharî de Shankarâchârya, os Shaktopanishads ou no Kularnava Tantra. É ele o preceptor do Shri Vidyâ, e o shivaísmo da Caxemira também remonta a Durvâsa, por meio de Somânanda, vidente inicial dessa escola.

Munis, Devas e Esposas fieis

Shilavati é conhecida como a esposa mais casta e mais fiel, o que tem um ressonância tântrica clara. Em obras como o Devî Bhagavatam ou no Lalitâ Sahasranâma a Devî se manifesta sempre como  e esposa casta de Sadâ Shiva e protetora das esposas castas (que têm poder de invocação e maldição equivalente ao dos rishis); assim, a Devî sempre atende preferencialmente aos apelos de tais esposas. O marido de Shilavati, Ugrashravas, por outro lado, era o pior dos esposos: sem entrar em detalhes, basta contar a história que nos interessa mais diretamente, em que ele, leproso e tomado de luxúria, obriga sua mulher a carregá-lo nas costas, de madrugada, até um prostíbulo. 

Quando Shilavati estava à caminho do prostíbulo, com o marido doente e cheio de luxúria em suas costas, o Muni Mandavya, um sábio, avista a cena e, enraivecido pela feiura e pela incongruência da situação, lança uma maldição contra Ugrashravas: que ele morreria antes de o sol nascer. Shilavati, não podendo cancelar a maldição do Muni, e tomada de angústia e dor pela iminente morte do marido, lança uma outra maldição dizendo que o sol não nasceria naquele dia. Dado o poder de sua castidade, o sol de fato não nasce, o que causa uma convulsão em todo o cosmos.

Os devas que cuidam do ritmo do universo tiveram que ir até Brahma, que por sua vez recorreu a Shiva e este a Vishnu. Quando nenhuma das três divindades (a trimûrti) acharam solução, eles convocaram o rishi Atri e sua esposa Anusûyâ, e foram todos juntos até Shilavati para tentar convencê-la a retirar a maldição, garantindo-lhe que, sob os auspícios divinos, seu marido não morreria se o sol nascesse; Shilavati retirou enfim a sua maldição; a outra, lançada pelo Muni foi cancelada pelos três devas, e o universo prosseguiu com seu ritmo.

A trimûrti, contente com o poder persuasivo de Anusûyâ, que tinha sido fundamental para convencer Shilavati, concedem-lhe um pedido. Anusûyâ desejou então que a Trimûrti nascesse em seu ventre como avatares, e isso lhe foi concedido. O avatar de Vishnu foi Dattatreyâ, o de Brahma foi Chandra e o de Shiva, o rishi Durvâsas. 

Essa é uma das narrativas do nascimento de Durvâsas, e é suficiente para o nosso texto. 

O sábio irado

Durvâsas era temido por deuses e mortais por ter temperamento muito raivoso, e, sendo um siddhâ, quando lançava maldições elas aconteciam inevitavelmente. 

Em certa ocasião, as dançarinas do deva-loka presenteram o sábio Durvâsas com uma guirlanda de flores, como é costume presentar sábios. Durvâsas, que então visitava a corte de Indra resolveu lhe oferecer a guirlanda, como símbolo de apreciação e gentileza. Indra pegou a guirlanda e colocou displicentemente na cabeça de seu elefante, Airavâta. O elefante por sua vez, sentindo o cheiro agradável da guirlanda pegou-a com sua tromba, brincou com ela um pouco e depois jogou-a no chão pisoteando-a.

Durvâsa viu o episódio como desrespeitoso e imediatamente lhe ferveu o sangue. Foi quando ele amaldiçou toda a corte dos devas: "a guirlanda que eu lhe dei, você a tratou dessa forma desatenta e desrespeitosa! Que vocês devas sejam amaldiçoados e pereçam!"

Indra, conhecendo a ira de Durvâsas, pediu perdão, implorou, tentou fazê-lo mudar de ideia, mas Durvâsas foi peremptório: "Meu coração não é mole, e você bem sabe que o rishi Durvâsa não perdoa! Basta de rishis como Gautama e Vasishta mimando vocês, devas! Vocês realmente pagarão pelos seus erros!"

Contudo, dizem que o rishi, antes de sair de lá, olhou para trás e declarou: "a única forma de vocês escaparem da desgraça que se abaterá é bebendo o amṛta, o elixir da imortalidade".

E é assim que começa o episódio que levaria ao Batimento do Oceano de Leite, do qual vamos falar na outra postagem.