Saturday, March 23, 2019

Doutrina do Saṃsāra e Doutrina da Queda


Após escrever a postagem A Árvore e os Frutos ano passado, recebi algumas mensagens dizendo que a distinção ali feita não é suficiente para separar as duas doutrinas a que me referi. Daí resolvi voltar ao assunto. Essa postagem visa descartar a opinião perenialista de que a Doutrina da Queda e a Doutrina do Saṃsāra são ambas “símbolos” ou “mitos” que se referem ao mesmo fato transcendental — a origem do homem — e que ambas são equivalentes.

A Doutrina da Queda é uma doutrina que serve para explicar a condição humana, e nesse ponto é similar em funcionalidade a outras doutrinas sobre a origem do homem, como, por exemplo, a Doutrina do Saṃsāra; contudo, o fato de exercerem a mesma função geral não implica que ambas sejam igualmente válidas, assim como dois diagnósticos de uma doença, vindos de diferentes médicos podem sim se contradizer e terem frutos diferentes.

Segundo a Doutrina da Queda, um determinado homem, singular, individual, concreto (ainda que existente em outra esfera de realidade, não era um homem abstrato) por atos de sua vontade, foi responsável ou causa eficiente da condição atual da humanidade e sua constituição ontológica atual.

Há discussão teológica (interna às religiões da Doutrina da Queda) sobre se os homens atuais recebem só o efeito, ou se recebem também a culpa dos atos desse primeiro homem. Para os fins do nosso argumento pouco importa: o importante é que o mecanismo é a transmissão genética eficiente, que entra em operação em determinado ponto do tempo (e não antes), e esses efeitos persistem até que surja a possibilidade de sua reversão pelos meios eficientes da vinda de um “salvador” (em outro ponto temporal).

A ação (pravṛtti) ou esforço intencional (prayojana) fruitivos só decorrem da compreensão intelectual de uma doutrina, ou pelo menos de sua aceitação de forma inequívoca. Se não fosse assim, todos os esforços dos sábios para esclarecer doutrinas e distingui-las seria em vão, e seria melhor mantê-las confusas, ou então bastaria indicar um esquema geral para que a ação e o esforço ocorressem.

Se um sujeito compreende a Doutrina da Queda como verdadeira, ele vai utilizar sua vontade para receber, por exemplo, a Redenção, que é vendida como (único) meio eficiente para reverter os efeitos da Queda, e não os meios que o Dharma oferece para a obtenção da Libertação (Mokṣa) e a eliminação do triplo-sofrimento (tri-duḥkha), próprio da aceitação do Saṃsāra. Portanto, compreender que ambas as doutrinas são equivalentes gera ambiguidade intelectual, dúvida, e paralisação do movimento da vontade, impedindo a obtenção do fim.

Não se vê ação firme baseada na aceitação de duas doutrinas contraditórias entre si, ou de uma doutrina ambígua. As ações ou esforços decorrentes da aceitação Doutrina da Queda não correspondem as ações e esforços decorrentes da compreensão da Doutrina do Saṃsāra, e portanto os frutos decorrentes das ações motivadas por ambas podem ser diferentes, e essa possibilidade é relevante para os que têm interesse nos frutos.

As doutrinas são diferentes e incompatíveis pelos seguintes motivos:
  1. O loco do karma e dos saṃskāra-s é manas ou antaḥkaraṇa individual, de maneira que cada jīvātman carrega em si individualmente os resultados de seus próprios atos desde tempos imemoriais. 
  2. Na Doutrina da Queda o primeiro homem tem anterior não-existência, e os homens posteriores ao primeiro são mais jovens, ou seja, a sua vinda à existência é sempre posterior, de maneira que nenhum dos homens atuais esteve individualmente no paraíso ou conheceu essa dimensão a não ser por relação indireta.
  3. No Sanātana Dharma a criação do homem acontece novamente após cada pralaya, e não é uma criação ex-nihilo, mas se dá a partir do chamado adṛṣṭa do ciclo anterior. O karma é sem princípio, ainda que possa ter um fim.
  4. Os jīvātman-s não são humanos (mānuṣya) por essência, ainda que sejam puruṣa-s e possuam intelecto, mente, ego, prana-s, sentidos e tanmātra-s que viajam (punarjanman) por meio do liṅgaśarīra, que é sua conjunção com prakṛti. Os jīvātman-s podem se manifestar como humanos ou podem se tornar seres inferiores ou superiores, com obstrução ou desobstrução parcial das capacidades carregadas no liṅgaśarīra.
  5. As condições (sociais, genéticas) em que se nasce são, para um jīvātman, as condições próprias para manifestação dos frutos do karma anterior, não sua causa eficiente. Ou seja, é como se as condições de nascimento (que carregam entre si sua própria causalidade interna) criassem ambientes operacionais para que o karma frutifique. Se há um karma coletivo isso se diz metaforicamente, pela continuidade empírica dos veículos, vista desde um ponto de vista externo, mas não como causa da manifestação do fruto. 
  6. Se cada homem fosse criado ex-nihilo, ele teria de ser criado pela ação direta de Deus em ponto temporal específico, e a ação seria parcialmente obstruída pela eficácia da ação do primeiro homem na genética humana ou no universal da "humanidade". Ou seja, é como se o nome “humanidade”, estivesse obstruído já na conjunção entre universais e particulares no ato de criação. Essa doutrina não pertence ao Sanātana Dharma.
  7. Há também a hipótese de que os homens já estejam na mente de Deus pela eternidade. Se essa presença na mente de Deus não for em essência, o ato do primeiro homem teria de dar conta da essência dos posteriores, e ele seria portanto criador, e não somente causa instrumental da restrição da essência. Se estão de fato na mente de Deus desde a eternidade, então não são criados ex-nihilo em determinado ponto temporal e Deus seria ou responsável pela condição ou incapaz de superar a obstrução ontológica imposta pelo ato do primeiro homem.
  8. Se usarmos a hipótese de que Deus teria criado “razões seminais” e que elas gerariam efeitos no tempo apropriado. Isso pode, no máximo, se referir a espécies diferentes, e ao seu surgimento em determinado ponto no tempo, e não ao surgimento de indivíduos humanos, cuja causa já estaria “inseminada” no universal "humanidade" ou na genética corporal que já sofreria dos supostos invariáveis efeitos da Queda.
  9. Se a Doutrina do Saṃsāra e a Doutrina da Queda fossem ambas símbolos para um fato que é em si mesmo inefável, de maneira que não deviam ser tomadas literalmente, então deveríamos aceitar qualquer ideia narrada em livros antigos para a mesma coisa, bastando a condição de serem símbolos similares da origem do homem e terem coincidências estruturais.
Dito isso, desde o ponto de vista hindu, a queda do primeiro homem e a transmissão dos efeitos de tal acontecimento não é possível, e a crença nisso não gera frutos: 

a) Pois não há um primeiro homem em sentido temporal.
b) Ainda que houvesse um primeiro homem em sentido temporal (o que não é o caso) a sua ação afetaria somente seu antaḥkaraṇa individual.
c) Ainda que a sua ação afetasse os homens posteriores (o que não é o caso), afetaria em seu aspecto genético, corporal, e não essencial.

O aspecto essencial do homem, sendo incriado segundo o Dharma, não tem conexão limitada com o tempo, não pode ter anterior ou posterior não-existência, não pode ser mais jovem ou mais velho. E portanto, são duas doutrinas incompatíveis no campo lógico, metafísico e geram esforços diferenciados, e provavelmente frutos diferenciados.