Friday, May 17, 2019

Analogia de salvação: miséria da analogia

À minha postagem anterior recebi um comentário, dizendo que eu não compreendia analogia nem simbolismo, e que minha comparação entre a Doutrina da Queda e a Doutrina do Saṃsāra tinha sido "exotérica". Disseram-me que a comparação teria de ser feita desde um ponto de vista "superior", analógico, para poder perceber a unidade das tradições.

Conheço esses argumentos. 

Anos atrás eu mesmo cheguei a adotá-los provisoriamente, até perceber que eles são fracos, quando não francamente arrogantes e errôneos (inclusive há lastros disso em postagens antigas desse próprio blog).

Vale a pena comentar isso, porque é um erro de muitos.

Ora, em primeiro lugar, se o sujeito está acima dos distintos instrumentos últimos de conhecimento ao ponto de poder sintetizá-los "desde cima", ele não precisa obter conhecimento a partir deles uma vez que os julga. Se ele está nessa posição, que valor tem para ele os tais instrumentos? Deveríamos recorrer ao sujeito mesmo, como autoridade.

A analogia é uma proporção qualitativa. Aparece ao conhecimento como nota subsistente porém supra-substancial: indica indiretamente um descolamento, por exemplo, entre a qualidade e seu substrato, pelo qual as qualidades subsistem e se relacionam de forma independente, como que em grandes "temas ontológicos" subsistentes. Isso segundo algumas tradições platônicas ou platonizadas, ocidentais.

Entre os naiyāyika-s, e nas demais tradições indianas que a consideram como modo de conhecimento legítimo, a analogia (upamāna) é uma conjugação de śabda (conhecimento verbal) e pratyakṣa (conhecimento empírico) e talvez anumāna (conhecimento inferencial) para alguns.

A diferença é que alguns platônicos, e mais recentemente esoteristas e tradicionalistas ocidentais, passaram a atribuir à analogia, conjugada com a simbólica, o meio eminente da transmissão e da compreensão intelectual superior. 

Não só isso: esses esoteristas passaram a apregoar que o simbolismo e analogia são o veículo eminente do esoterismo em todas as tradições espirituais. Já cheguei a ler por aí até mesmo que o hinduísmo era uma "religião de analogia".

Mais uma daquelas falsidades que são de imediato aceitas e divulgadas sem que haja o trabalho de recorrer às fontes tradicionais. 

Os sábios védicos, se de fato chegam a usar contemplações analógicas para meditar sobre o “corpo do Virat” fazendo uso de objetos cósmicos visíveis, e se, da mesma forma, transferem o “sacrifício do cavalo” ou o “sacrifício humano” para o campo das contemplações simbólicas, não alegam que essas formulações simbólicas em si mesmas são tecnologias de conhecimento independentes: são upāsana-s, ou técnicas de contemplação, transmitidas junto com influência espiritual, como tantas outras de natureza não analógica.

O caso do uso que os naiyāyika-s fazem da analogia é exemplar: você está numa floresta e encontra ali com um ermitão, grande conhecedor da floresta e de tudo o que está ali. Esse ermitão lhe informa  (śabda) que há, aos pés da montanha um animal chamado “búfalo”, e que esse animal se parece com uma “vaca”. Andando pela região você avista um animal (pratyakṣa) que se parece com uma vaca, logo, esse animal deve ser um búfalo (upamāna). 

Esse é o escopo da analogia. Simples.

A analogia, isoladamente, não serve para adivinhar as estruturas da realidade, como que numa escalada ontológica ou dialética, de baixo para cima. Ela serve à função de reconhecimento (pratyabhijñā) a partir de proporções qualitativas. É uma conjugação de métodos de conhecimento, para fins de reconhecimento.

Peguemos analogia conhecida: Deus é como o sol. 

Ora, o que temos aí? 

Assim como o Sol está para os seres desse sistema, Deus está para todas as coisas. 

Essa proposição pode ser verdadeira ou não, a depender da verificação de que é assim de fato, verificação dada pelo conhecimento divino (anubhava).

Contudo, vejamos que, quando se dá o reconhecimento, ele se dá na forma de 

“Esse Deus que agora se apresenta é igual aquele sol”, 

ou seja, 

“isso (objeto singular) é igual aquilo (objeto na memória)”.

Alguém poderá dizer (e fatalmente dirá) que a analogia incita a "anamnese" em sentido profundo, ou seja, incita o "homem noético", que guarda em seu bojo ontológico uma identidade com tudo o mais. Nesse caso, meus caros, trata-se também de transmissão por meio de autoridade (śabda). Não se sabe se é assim por necessidade. 

O que existe, sempre, é uma predisposição baseada na afirmação de um "apta" ou "ṛṣi". Em segundo lugar, a questão está no domínio do conhecimento de Si Mesmo (ātmavidyā), para o qual as analogias são dispensáveis, sendo mais útil o samādhi silencioso e não-verbalizável.

Outro erro, vindo também de esoteristas e estudiosos de religião comparada, é dizer que ritos são analogias. 

Podem ser, e devem ser de fato. 

Mas não só; e, na verdade, pouco importa. 

Sua eficácia ou causalidade, segundo as fontes tradicionais, não é dada por sua natureza analógica ou simbólica. Segundo o ensinamento tradicional é dado pelo chamado adṛṣṭa ou apurva, que é o efeito invisível, porém real e eficaz, de um karma (que tem sempre substrato individual e não universal) em sua articulação econômica com a ordem total das coisas. 

Resumindo:

1. Não, o conhecimento analógico ou simbólico não permite uma escalada ontológica ou metafísica segura. Ele é uma articulação didática (quando vinda de sábios de um tradição), ou é uma upāsana (meditação específica).
2. Se o sujeito está cognitivamente acima dos meios de conhecimento, ele pode perfeitamente dispensá-los, e se colocar na posição de autoridade -- e aí terá que se submeter ao crivo harmônico das demais autoridades tradicionais ao longo do tempo.
3. Se há dois śabda-s conflitivos, não há como conciliá-los com analogia.

Portanto, você pode estudar e conhecer simbolismos e analogias até ficar cansado. Nada ocorrerá, por necessidade, em campo cognitivo e espiritual.