Wednesday, October 16, 2019

Reflexões sobre o Samudra Manthana (Parte 4 - O veneno)

"Os devas foram ao Brahma, sentado seu trono celestial, e disseram 'Senhor, estamos exaustos, não temos mais força para para bater o oceano'. O néctar ainda não apareceu(...)" (Astika Parva, 18)
O batimento do oceano durou muito tempo, contando-se em eras divinas e espirituais. Houve momentos de exaustão. Os devas não tinham energia. Nârâyana tinha de ajudá-los todo o tempo. Restituídas suas forças, retomavam a atividade, a montanha era colocada no meio do oceano, a serpente era enrolada de novo e a tarefa recomeçava.

Depois, quase num estado de torpor, fatigados, devas e assuras observaram que começava a emergir do oceano coisas maravilhosas, num processo mágico. E a cada coisa que aparecia todo o universo era modificado.

A primeira coisa a surgir, como num lampejo violento, foi Surabhi, a vaca sagrada que viveria depois com rishi Vasishta, o brâmane, e que seria cobiçada por Vishvamitra, o kshatriya, causando um conflito sem dimensões entre os dois (mas essa é uma outra história). O fato é que o batimento gerou tal vaca, adorada daí em diante por todos os deuses, e foi realmente um fato assombroso.

A segunda coisa que surgiu tomando o espaço, foi Varunî, esposa de Varuna e Deusa do vinho. Ela surgiu em êxtase transcendental, seus olhos estavam focados na sua testa manifestando o chamado "shambavî mudra" de significados esotéricos. Muitos nomes da divindade suprema estão associados ao vinho e a esse mudra.

Depois disso veio a árvore de Parijata, que também concede todos os desejos. A árvore surgiu perfumando a atmosfera, e era como se fosse a primavera cósmica. Em seguida, dançando, apareceram a horda inabarcável de apsarâs, dançarinas divinas. E por fim, emergiu do oceano a lua de raios refrescantes, que foi capturada por Shiva.

Após algum tempo de silêncio, levantou-se uma fumaça fétida, preta, asfixiando devas e assuras, e entenderam que se tratava do veneno chamado Kâlakuta, que é a "ilusão do tempo". O veneno foi envolvendo o universo como um fogo esverdeado de fumaça negra, e numa velocidade incrível a manifestação parecia chegar ao fim. Nem Brahma, nem Vishnu sabiam o que fazer diante de tal aparição inesperada, então eles se prostaram diante de Shiva, que atendeu aos pedidos e surgiu, bebendo o veneno. 

Parvati, esposa querida de Shiva, ficou aterrorizada com tal ato e o enforcou, segurando por um tempo o veneno em sua garganta. O veneno de fato parou ali, e sua garganta ficou azul. Desde então, um dos nomes de Shiva é Nilakantha (garganta azul), ou então Vishakantha (que tem o veneno na garganta), pois durante o batimento do oceano de leite, na busca de devas e assuras pelo néctar da imortalidade, Shiva salvou o universo digerindo os produtos negativos dos trabalhos divinos.