Saturday, October 12, 2019

Reflexões sobre o Samudra Manthana (Parte 2 - Devas e Assuras)

Devas e assuras 

Durvâsas se foi e sua maldição desceu como a chuva torrencial. O "poder" e a "vitalidade" lentamente foi se retirando do reino de Indra. Os três mundos foram afetados, inclusive o dos homens. Os ritos pararam de ser executados e a mente humana se degenerou de forma assombrosa. 

Foram inúmeros os efeitos: a prosperidade material acabou, as plantas secaram. Os homens não mais praticavam o dâna (caridade), seus sentidos eram facilmente instigados por todo tipo de frivolidade e não por assuntos importantes, sua atenção oscilava entre objetos de forma descontrolada como em um sonho. Acabou-se a coragem, a força e o heroísmo, todo o universo parecia triste e enfraquecido. Quase todos se tornaram obscuros e embotados em suas faculdades intelectuais, e por fim materialistas, perdendo contato com os mundos espirituais. O existir se tornara um peso para os mundos.

Havia, contudo, os filhos de Diti, chamados dânavas, que eram ambiciosos e agitados por muitas paixões, o que os conferia energia. Eles notaram a fraqueza dos devas e entenderam que era um bom momento para investir contra eles e tomar o reino de Indra impondo jugo assúrico ao universo. Os devas estavam tão apáticos que não resistiram em absoluto: foram facilmente afugentados pelos titânicos dânavas: covardemente deixaram para trás suas mulheres, seu reino e o seu dharma. 

Após vagarem miseráveis por muitos anos, escondendo-se em cavernas e florestas, vivendo com medo, apavorados, os devas se lembraram, com suas mentes ainda confusas, que era possível buscar ajuda superior. Recorreram a Brahma, que disse que não tinha como resolver a situação e nem dar-lhes energia; depois foram a Vishnu. Prostraram  humildemente diante do Narayana e expuseram em lágrimas o que havia ocorrido. Vishnu ficou comovido ao ver os seres mais nobres do universo passarem por tais sofrimentos e humilhações e resolveu ajudá-los:

"Ó, devas, eu vou renovar suas forças! Contudo, vocês têm de seguir com rigor minhas instruções para que tudo funcione: todos os devas, aliados com todos os assuras precisam ir ao oceano infinito de leite, e ali lançar todos os tipos de ervas medicinais conhecidas; daí, tomando a montanha Mandara como eixo, e enrolando a serpente Vasuki como corda ao redor da montanha, é preciso fazê-la girar no meio do oceano. Desse batimento muitas coisas serão geradas. Entre elas o néctar da imortalidade que vai salvá-los da maldição de Durvâsas."

Os devas se animaram, pois lembraram que Durvâsas tinha de fato mencionado tal coisa. Mas eles  ainda não sabiam como seria possível conseguir ajuda de assuras, inimigos imemoriais dos devas, e, parte deles, agora regentes do universo. 

Vishnu se antecipou, lendo suas mentes:

"Para conseguir ajuda de assuras, é preciso entender a natureza deles: vocês devem se aproximar em paz e prometer oferecê-los parte generosa do fruto do trabalho, instigando sua imaginação. Expliquem para eles que, bebendo do  néctar da imortalidade produzido pelo batimento do oceano de leite eles se tornarão ainda mais poderosos e, agora, absolutamente indestrutíveis. A ambição deles vai tomar as rédeas. Eu, Vishnu, vou ajudá-los no processo, para ter certeza de que ao fim de tudo os assuras não cheguem a beber o líquido e causem ainda mais problemas."

E assim ocorreu. A natureza dos assuras era previsível. Houve uma inusitada aliança entre devas e assuras para a obtenção da bebida da imortalidade. Saíram todos coletando as ervas medicinais prescritas no Atharva-Veda, lançando-as incansavelmente no oceano de leite durante muitos dias e noites. Quando todos os ingredientes foram oferecidos ao oceano, devas e assuras tomaram como centro a pontiaguda montanha Madara, e enrolaram ao seu redor a serpente Vasuki.

Deram inicio ao processo de agitamento do oceano, começando devagar, girando de um lado para outro, por fim atingindo grande velocidade, movendo grande volume de líquido no meio do oceano. Instruídos por Vishnu, os devas seguravam a cauda da serpente, e os daityas e dânavas seguraram a cabeça e o pescoço. A serpente ficou irritada ao ser enrolada e puxada, e começou a lançar chamas nos assuravas, que seguravam a cabeça, causando-lhes considerável dano. O calor que era emitido em um dos lados da montanha empurrava as nuvens para o outro, e os devas recebiam vesto refrescante e uma leve chuva.

Quem sustentava a base da montanha, o eixo do mundo, dentro do oceano de leite era avatar de Vishnu em forma de tartaruga, Kurma. Vishnu também se fazia presente de inúmeras outras formas, como prometido, supervisionando o processo para que nada saísse errado.