Tuesday, March 27, 2018

A visão da essência da Mâyâ inefável

Disse o Brahmâ:

-- Muito surpresos estávamos por achar água onde nossa excelente aeronave pousara. Vimos que a terra ressoava com o arrulho doce dos pássaros, e estava cheia de árvores com seus frutos, e muitas florestas e jardins. Rios, poços, tanques, lagos e fontes de água – havia ali também mulheres e homens. Então vimos diante de nós uma perfeita fortaleza cercada por um muro divino, havia nessa cidade salões amplos para yajña, e vários edifícios magnificentes:

--"Quem terá construído esse paraíso maravilhoso?"

Então apareceu ao longe um rei, semelhante a um Deva, que naquele momento partia para uma jornada de caça na floresta. […] Contudo, numa velocidade inesperada nossa aeronave, propulsionada pelo ar, subiu aos céus e num piscar de olhos transferiu-se a outro lugar, não menos adorável.

Vimos diante de nós o jardim divino chamado Nandana. Ali, descansando debaixo da árvore Parijâta estava Surabhi, a vaca que realiza todos os desejos . Perto dela havia um elefante de quatro presas; e ali também vimos Menaká e inúmeras Apsarâs dançando e cantando, alternando entre mudrás divinos. Centenas de Yakshas, Gardharvas, Vidyâdharas estavam dentro do jardim Mandarâ e também cantavam e dançavam. No meio do jardim estava o Senhor Satkrati com Sachi, a filha de Pulomâ. Vimos então, maravilhados, Varuna, o senhor dos animais aquáticos, e também Kubera, Yama, Sûrya, Agni e outros Devas; Vimos que em nossa frente, Indra, o Senhor dos Devas, que acabava de sair de uma cidade toda decorada -- sentava-se imponente em seu palanquim, calmo e composto, carregado por servos. 

O nosso veículo começou a se elevar novamente, alto no céu, e em outro piscar de olhos, entramos no Brahmâ Loka, que é saudado por todos os Devas. Vishnu e Maheshwara ficaram muito perplexos ao verem que havia um outro Brahmâ naquela localidade. No salão central do Brahmâ, vimos os Vedas com seus membros, vimos serpentes, cordilheiras, oceanos e rios. Ao ver tudo isso os dois me perguntaram: 

--“Ó Deus de quatro faces! Quem é esse outro Brahmâ?” 

Respondi: 

--“Eu não sei quem é esse (outro Brahmâ)? Quem sou eu? E quem é ele? Como é que essa confusão está acontecendo em minha mente? Mas vocês são Deuses, me ajudem a entender...” 

Daí, nosso veículo, viajando com a velocidade da mente se transportou para o Monte Kailasha que estava rodeado de Yakshas, que concedem o êxtase. A montanha estava embelezada pelo jardim Mandâra, e ouvíamos doces sons de Sukas e cucos, e alaúdes, e tambores. Ao chegar ali, nós vimos o Deus de cinco faces, o que tem três olhos, o Bhagavân Shashi Shekhara, que tem dez mãos: ele se vestia composto com pele de tigre e de elefante. Ele estava naquele momento saindo de sua casa, e cavalgava em um touro. Os seus dois filhos, Ganesha e Kârtikeya, vestidos de forma gloriosa, o seguiam como guarda-costas. O touro Nandi e suas hordas também o seguiam, cantando hinos retumbantes de vitória. Ó Muni Narâda! Ficamos ainda mais surpresos quando vimos outro Shiva, rodeado de Matrikâs. Ficamos tão perplexos e cheio de dúvidas que apenas permanecemos ali sentados silenciosos observando.

Mas a nossa aeronave pegou voo novamente com a força do vento. E de imediato chegamos ao Vaikuntha, na corte rejubilante de Lakshmî. Ó Sûta! Lá, em Vaikuntha, vimos uma manifestação esplendorosa de poder. Nosso companheiro Vishnu ficou surpreso ao ver aquela cidade excelente. E vimos ali outro Vishnu de quatro braços, da cor da flor âtasi, usando roupas amarelas resplandecentes, adornado com joias divinas, montado no pássaro Garuda enquanto Laksmî Devî o abanava.

Diante da visão do outro Vishnu eterno, nos sentamos no veículo e olhamo-nos mutuamente surpresos, porém, não houve tempo -- uma vez mais, num piscar de olhos, o veículo se transportou para outro lugar. 

Nesse novo lugar vimos o oceano do néctar e suas ondas infinitas que se moviam causando insuportável doçura. O oceano estava cheio de animais aquáticos e as ondas sucediam-se infinitamente até que emergiu diante de nosso olhos, do meio do oceano infinito, um lugar maravilhoso chamado Mani Dvîpa (Ilha das pedras preciosas). Nessa ilha havia árvores celestiais floridas, cheias de pérolas e pedras raras, formando tapetes imensos com variedade incontável. Ouvíamos pássaros e o zumbido forte de abelhas, contra um fundo de música harmoniosa. 

De dentro da aeronave, vimos na ilha um catre lindíssimo que é chamado de Shivâkâra, cujas pernas representam Brahmâ, Vishnu e Rudra, e cuja parte superior representa Sadâ-Shiva. O catre era semelhante a um arco-íris, com um tapete delicadíssimo estendido, ornado com minúsculas e delicadas pedras preciosas.

Vimos então uma Deusa.

Ela estava sentada nesse catre, sua roupa era intensamente vermelha, e ela tinha uma guirlanda rubra de flores frescas ao redor do pescoço, umedecidas por pasta de sândalo. Seus olhos eram vermelho-escuros; essa Deusa, de linda face, e lábios vermelhos nos pareceu mais linda que dez milhões de trovões, mais linda que dez milhões de Lakshmîs, e ofuscante como o Sol vermelho. Estava sentada, com doce sorriso nos lábios, em suas quatro mãos levava uma corda com um laço, um aguilhão, e mudrás indicando que ela dava bênçãos aos seus devotos, e destruía todo o medo. Jamais tínhamos visto ou imaginado tal forma divina. Até mesmo os pássaros daquele lugar repetiam e melodia o divino mantra da Deusa que tem a cor do sol nascente, da Deusa compassiva, da Deusa que é o próprio enrubescimento da juventude. 

Ela sorria.

Estava adornava com todas as belezas da Natureza e várias joias, braceletes, diademas e ornamentos lustrosos. Seus seios imponentes desafiavam o botão do lótus.  Sua face resplandecia sob a iluminação do brilho de seus brincos, que tinham o formado do Yantra sagrado. Várias Devis jovens lhe serviam: havia Sakhis nas quatro direções – sempre cantando hinos para Maheshwarî, a Senhora do Mundo. Ela estava sentada no meio do Yantra de seis pontas.

Indagávamos entre nós:

--“Quem é essa Deusa? Qual é o seu nome? Não sabemos nada sobre ela, e estamos muito longe.” 

À medida que olhávamos, fazendo esforço para discerni-la na distância, a Deusa de quatro braços mudava de forma e aparecia com mil olhos, mil mãos, mil pés... Assim nos pareceu.

Ó Nârada, ficamos muito envergonhados, cheios de dúvidas e sem entender:

-- “Apsarâ, ou filha de gandhârva? Ou será outro tipo de Devî? Quem é ela?” 

Nesse momento, Bhagavân Vishnu, concentrando-se, conseguiu discernir o sorriso da Devî e pela sua infinita inteligência compreendeu o mistério: 

-- “Essa é a Devî Bhagavatî, Mahâ Vidyâ, Mahâ Mâyâ, indestrutível e eterna; Ela é a completude, a raiz, a causa de todos nós. Essa Devî é inapreensível para os que tem intelectos não qualificados. Somente os yogues podem vê-la, por meio de seu ascetismo. Ela é eterna e também não-eterna: Brahman e Mâyâ. Ela é a Força da Vontade Absoluta do Âtman Supremo. Ela é a matriz do mundo. Essa Devî de olhos imensos, a Senhora do Universo, foi ela quem produziu o Veda.

Aqueles que não tem mérito, não podem adorá-la. Durante o período da dissolução universal ela destrói todo o universo, e todos os corpos são absorvidos em seu corpo. Ó Devas, agora ela reside na forma de semente! Contemplem as manifestações de seus poderes emanando como ornamentos divinos e perfumados, servindo-a, com braços. 

Ó Devas, hoje fomos abençoados, imensamente abençoados por termos tido essa visão. Nossas práticas espirituais do passado por fim renderam frutos. Se não fosse assim, como Ela poderia ter se mostrado diante de nós em sua forma? Somente aos que têm imenso mérito, adquirido por meio de práticas espirituais, somente as grandes almas podem ver a forma da Bhagavatî. Os que vivem apegados aos objetos dos sentidos não podem jamais vê-la. Ela é a que todos chamam de Raiz da Produção, a unidade entre a Consciência Infinita e a Felicidade Infinita. 

É ela que cria esse Brahmânda e depois o exibe ao Si Mesmo Supremo.

Ó Shiva, Ó Brahmá, todo esse universo e todos os rshis, tudo o que está contido no mundo manifestado e imanifestado -- ela é a causa de tudo. Ela é a Mâyâ que assume todas as formas. A Deusa de tudo.

Onde estou eu? Onde estão os Devas? Onde está Lakshmî, e todas as Devîs? Nós não podemos compararmo-nos a um milésimo dela, a Deusa.

Foi ela, de excelência absoluta, foi ela a quem eu vi no infinito oceano, ela entendeu que eu, Vishnu, era só um bebê. No princípio de tudo, quando eu dormia no catre feito de folhas da figueira de bengala, chupando o meu dedo, como um bebê qualquer, foi ela que me ninou entre as folhas da figueira de bengala como uma verdadeira Mãe. Agora eu me lembro de tudo o que senti ao vê-la, e eu reconheço que ela é a Bhagavatî. E tendo visto, eu os instruo: ouçam atentamente, ela é a Deusa, e ela é nossa Mãe.”

(Devî Bhâgavata Purâna)