Tuesday, March 6, 2018

Os nyâya-vaisheshika e as categorias do real (Parte II)

Na postagem anterior apresentamos os conceitos gerais para começar a entender o arcabouço teórico dos nyâya-vaisheshika. Aqui vamos tentar aprofundá-los um pouco.


Bhâvatva-Astitva-Sattâ

Os três aspectos do real, por assim dizer são: astitva, bhâvatva e sattâ, que traduziremos como 'ser', 'realidade' e 'existência. Daí temos três planos ontológicos:


1. Astitva: todos os entes têm alguma realidade ou astitva, exceto os impossíveis e absurdos.
2. Bhâvâtva: todos os entes têm esseidade ou bhâvatva, exceto os que são 'abhâva'.
3. Sattâ: Todos os entes têm existência ou sattâ, exceto os que são abhâva e os que são svâtmasattva.

Os nyâya-vaisheshika não admitem agnosticismo, fenomenologismo, idealismo ou subjetivismo dentro de seu escopo teórico, portanto, a tudo que é atribuído astitva, também se atribui jñeyatva e abhidheyatva. 

A astitva de algo não é um gênero ou classe que tornam as coisas comuns entre si, e nem tem existência separada, mas é o que faz com que as coisas sejam realidades últimas em si mesmas. Se parece que as reúne ou que exista separado, é somente por acomodação gramatical; cada astitva é a coisa mesma em sua peculiaridade e singularidade intransferível.

O mesmo não se dá com sattâ, que é o chamado parasamânya, gênero supremo, a síntese última. Não sendo portanto responsável por distinção existencial alguma, inclui todas as coisas, e existe separadamente de forma eterna, tendo sua própria astitva. 

Os nyâyas-vaisheshikas, diferindo do pensamento normal dos ocidentais, acreditam que é possível atribuir realidade e até particularidade ao não-ser, portanto, como foi notado acima, abhâva é titular também de astitva, e distintas não-existências podem dar origem a distintas cognições positivas, perfeitamente funcionais, inclusive.

O bhavâtva é, no geral, qualquer positividade em relação a sattâ, ao passo que abhâvatva é um negatividade em relação à sattâ. Os entes com svâtmasattva são indiretamente positivas em relação a sattâ e portanto, são também bhavâsvarûpa (têm um corpo de bhâva, tem bhâvatva, ou não têm abhâvatva).

Jâti ou samânya

1. O chamado jâti ou samânya é a realidade percebida como unidade, percebida como necessária em toda experiência, e que é a causa da concepção idêntica que subsiste em dois ou mais particulares numericamente distintos. O jâti é eterno, é comum a particulares, e está nos particulares a título de inerência (samavâya).

2. Diz-se que o jâti é eterno, pois se não o fosse ele seria idêntico a uma qualidade adventícia, que entre os nyâyas é chamada de upadhi.

3. Diz-se que o jâti é comum, o que o exclui, por exemplo, de entes singulares que não tem outros em sua classe, como o akasha. Ora, a espacialidade do espaço não é um jâti pois não se diz que há dois espaços individuais, a não ser figurativamente ou como atributo indireto.

4. Diz-se que o jâti é inerente porque a sua relação com os particulares não é de identidade, nem de diferença, ele está em vários, e ainda assim permanece separado.

5. O jâti pode ser objeto de percepção ou não, contudo, quando é, ele só é percebido por meio do particular, e nunca como separado. Contudo o jâti inere também e realidades não perceptíveis como o átomo, a mente, o âtmâ etc.

6. O jâti é radicalmente diferente do particular, ainda que o particular possa ser semelhante a outro particular por meio do jâti.

7. O jâti gera causalidade, ou seja, se a causalidade ocorresse entre dois particulares, sempre teríamos um efeito particular e não haveria nenhuma ciência possível. Nem mesmo a expectativa de que uma vaca tivesse bezerros ou tivesse leite, e uma vaca poderia causar efeitos de cavalo. A experiência comum indica que a causalidade implica o jâti, pois diferentes jâtis produzem diferentes efeitos.

8. O jâti não é gênero ou espécie no sentido lógico, pois o gênero ou espécie não tem necessariamente causalidade observável. O jâti está presente, na forma de atributo ou propriedade 'de nascimento' da coisa, ao passo que gêneros e espécies são obtidas posteriormente, observando-se as coisas que tenham o mesmo jâti e reunindo-as em uma classe.

9. Nem toda propriedade é jâti, mas somente aquelas de 'nascimento', as demais propriedades são chamadas de upadhi-s, e há 6 índices de que algo é um upadhi e não um jâti:
a) Se for inerente em uma única realidade não é jâti, por exemplo, a espacialidade do espaço.
b) Dois jâtis que são distintos em nome mas têm mesmo significado são apenas um jâti e não dois.
c) Ou o jâti é inerente a todos o particulares ou a nenhum. No caso de características como 'murtatva' (magnitude física) e 'bhûtatva' (elementaridade física), há inerencia em alguns casos e em outros não, por exemplo, akasha tem bhutatva, junto com os outros  4 elementos, mas não tem murtatva; de forma que murtatva não serve como jâti dos 5 bhûtas.
d) Não pode haver um jâti que leve ao regresso infinito, por exemplo, jâtitva não pode ser um jâti, mas é um upadhi do jâti.
e) As particularidades últimas não podem ser jâti, o que seria contraditório com sua natureza mesma. Se a particularidade fosse um jâti presente em todo particular, então a diferença mútua seria eliminada.
Vishesha

Poderíamos dizer que o vishesha absoluto é astitva, e o jâti absoluto é sattâ. Contudo, em todos os outros casos intermediários, algo pode ser tanto Vishesha como Samânya, a depender do ponto de vista. Por exemplo, dravyatva é um samânya, pois inclui vários particulares, tornando-os comuns. Contudo, da mesma forma é um vishesha, na medida em que diferencia esse grupo de particulares de outros grupos. As observações sobre jâti valem portanto para o vishesha.

Samavâya

A conjunção de coisas da mesma categoria, por exemplo, duas dravya-s, se dá por pela chamada conjunção (samyoga). A diferença entre a conjunção e a inerência (samavâya), é que a inerência não pode ser desfeita, é uma relação ou propriedade desde a eternidade.  Por exemplo, a relação entre parte e todo, atributo e objeto, ação e substrato,  jâti e vyakti (membro da jâti), visheshas e dravya-s eternas etc.

Abhâva

É importante não deixar de mencionar a categoria de não-ser, cuja posição é também motivo de polêmica entre nyâyas e vaisheshikas, mas que é importante. O não-ser é dividido em 4 categorias:

1. Prâgabhâva: não-ser antecedente, ou seja, aquela não-existência que não tem começo, mas que tem um fim, dando lugar a um existente.
2. Pradhvamsâbhâva: não-ser subsequente, que é aquele que tem um começo, mas sucedendo uma anterior existência.
3. Atyânthabhâva: não-ser perpétuo, nunca existiu, nem vai existir. Alguns traduzem como não-existência absoluta, mas eu acho a tradução inadequada, pois podem confundi-la com o nada absoluto, quando na verdade essa categoria é a anti-substância, anti-qualidade, etc.
4. Anoyonyâbhâva: não-ser recíproco, é a negação mútua de identidade entre duas coisas.

E esses são os conceitos mais básicos para a compreensão dos prameyas (objetos de conhecimento) segundo os sábios dos pontos de vista nyâya e vaisheshika, que seguem a autoridade do Veda.