Monday, March 5, 2018

Os nyâya-vaisheshika e as categorias do real (parte I)

Ainda sobre os lógicos/epistemologistas e os cosmologistas hindus, vale a pena sair um pouco do nosso tom costumeiro e dar aqui uma modesta introdução sobre o arcabouço conceitual, de modo mais protocolar, até para futura referência. Faço-o propositalmente ignorando problemas ou até discordâncias menores entre os dois pontos de vista e os respectivos autores, enfatizando só os pontos em comum.

As categorias usadas pelos hindus são todas articuladas entre si, e fica difícil abordar uma delas sem dar ao menos uma explicação básica de todas. Essas categorias servirão de base, ou poderão ser aproveitadas, para outras discussões, até mesmo para entender as contendas dialéticas entre hindus, que as discutem entre si e com os jainas, budistas e materialistas.

É notável também que os nyaya-s e vaisheshikas não começam sua instrução ou exposição por meio da apresentação dessas categorias abstratas, mas adapto aqui ao nosso blog e ao público, para facilitar a aproximação e tornar mais interessante o assunto.

1. A realidade (vastu) tem duas divisões: bhâva e abhâva, o que poderia ser entendido, sem muito prejuízo, como semelhante aos conceitos de Ser e de 'não-ser relativo' nas filosofias ocidentais. O Não-Ser absoluto, que é a impossibilidade, seria 'avastu', e nos shastras hindus eles adoram falar que essa é a categoria dos 'filhos da mulher infértil' ou dos 'chifres do coelho'.

2. Há dois modos pelo qual se pode pertencer a 'bhâva' -- sattâ-samavayin, e svâtmasattva. No primeiro caso participa-se do bhâva diretamente por meio da inerência no gênero supremo sattâ (existência), no segundo caso, indiretamente, por uma subsistência autônoma (mas também existente). Os dois casos são alvos de muito debate, mas deve-se apontar que a subsistência do seguindo caso não é exatamente 'sattâ',  tampouco é inexistência ou não-ser relativo (abhâva), então mereceria atenção especial. É bom dizer aqui também que os lógicos hindus acreditam e usam a não-existência de forma muito hábil e frequente em suas relações com a existência, tanto no campo lógico como epistemológico.

3. A tríade realista dos 'prameyas' (objetos de conhecimento) é a seguinte: todas as categorias tem 'astitva', que seria a vishesha (individualidade) última, exceto o avastu, de forma que poderíamos já traduzir astitva provisoriamente como realidade, os prameyas tem não só astitva, mas também jñeyatva (cognoscibilidade) e abhideyatva (são objetos de nome), é bom frisar.

4. Há três entes, possuidores de astitva e que são bhâva por sattâ-samavâyin: dravya, guna e karman, que poderiam ser traduzidos como substãncia, atributo e ação respectivamente. E há três entes que são bhâva indiretamente e tem subsistência própria como astitva, contudo não tem 'sattâ', eles são: samânya, vishesa e samavãya, que poderiam ser traduzidos por universal, particular, e inerente respectivamente.

Os entes desse segundo caso, nunca são percebidos em si mesmos, e não podem aplicar-se mutuamente uns aos outros, o que resultaria em regresso infinito: eles tem bhâva indireto, se dão na cognição através de suas relações com drayva-guna-karman.

Vamos dar um exemplo: o cachorro, apreendido como unidade, segundo sattâ, é um dravya, é constituído por um gênero, dado pelo seu nome, e propriedades, gunas e karman-s. Sua universalidade é seu 'samânya', a sua individualidade é dada pelo seu vishesha,  e as relações entre o cachorro enquanto astitva, sua individualidade e sua generalidade são dadas por samavâya ou inerência.

5.  Recapitulando: todas essas categorias são prameyas, que por sua vez são astitva, e que por sua vez são nomeáveis (abhideyatva) e cognoscíveis (jñeyatva). Entres os vaisheshika os prameyas constituem basicamente a totalidade de seu campo de investigação, ao passo que os nyaya-s lançam seu olhar mais sobre outros aspectos, chamados de pramana-s (meios de conhecimento).

O 'pramatâ' (conhecedor) é entendido como o Âtman também pelos nyâya-vaisheshika, e é o perfeito conhecimento desse que leva ao apavarga (libertação). Contudo, para eles o Âtman é uma 'dravya' que existe por inerência de 'sattâ'; em outras darshanas o pramatâ ganha uma importância diferenciada, recebendo seus fundamentos a partir de Cit (samkhya, yoga, âgamas) e/ou Ânanda (vedânta-s, âgamas).

Em alguma outra  postagem futura, talvez não imediatamente posterior a essa, vou falar um pouco sobre as categorias svâtmasattva, suas complexidades, sua natureza.