Saturday, March 3, 2018

O Âtman segundo lógicos e cosmologistas hindus

Kanada Rshi
O objeto de investigação de todos os pontos de vista hindus tradicionais é o Âtman, como foi explicado em postagem anterior. O Âtman, sendo o sujeito intimíssimo, é compreendido tanto por intuição direta, como por autoridade do Veda. 

Contudo, há pessoas, que, magnetizadas pelo poder dos sentidos ou por raciocínios errados, duvidam que haja o Âtman, ou atribuem a natureza de Âtman àquilo que é não-Âtman. Isso justifica que o tema seja não só objeto de intuição direta ou de autoridade dos rishis, mas também de argumentos e análise. É aí que entram os pontos de vista dos lógicos hindus, que tentam, a partir de meios de conhecimento acessíveis a qualquer pessoa, oferecer argumentos que apaziguem a dúvida, uma vez os lógicos lidam com a dúvida e resolução da dúvida, o que distingue sua ciência do  Âtmâ-vidya do Veda, que não é objeto de dúvida ou prova racional, mas de intuição transcendental, ou da ciência dos yogues que usa estados de consciência especiais. 

Esse conhecimento é chamado de Ânvîkshikî, ciência ou 'vidyâ' da investigação racional. E ele procede por uma série de passos dialéticos e lógicos, e de técnicas de demonstração e refutação especializada que não cabe abordar aqui nessa postagem.

Para dar um exemplo de como isso é pensado, tomemos um raciocínio simples (os lógicos procuram sempre se manter perto do senso comum) -- ao dizer 'eu estou feliz' ou 'eu sei', esse "eu" se refere ao Âtman segundo intuição direta interna. Mas isso pode também validado por exclusão, pois 'eu estou feliz' não pode ser objeto de experiência de nenhum dos 5 sentidos. Se 'eu estou feliz' se referisse ao corpo, a felicidade seria um objeto de percepção como um vaso de barro, ou uma pintura, ou corresponderia absolutamente a gestos corporais ou a alterações que possam ser objeto de algum dos cinco sentidos. Se fosse assim, todas as experiências internas estariam disponíveis para a intuição sensível de terceiros exatamente segundo o mesmo método de conhecimento que o sujeito utiliza para intuir a si mesmo.

Há vários outros raciocínios, por exemplo: observa-se que ao tocar um vaso de barro, e ao ver o vaso de barro, o sujeito usa dois sentidos e percebe um único objeto (como se fosse um sujeito dentro de uma casa com várias janelas). Se não houvesse uma unidade entre os 5 sentidos, cada sentido seria um Âtman, e não haveria percepção alguma da unidade do objeto mesmo, de maneira que seriam dois vasos, e dois sujeitos.

Mas qual é a definição do Âtman afinal? Os lógicos dizem que o Âtman (que dentro de seu ponto de vista se refere sempre ao jivâtman), é uma substância, ou seja, não tem outra coisa como seu substrato, e é assim substrato último de qualidades e ações, de conjunções e disjunções com outras substâncias. É eterno, é do tamanho do espaço, é o substrato da consciência psicológica por sua conjunção temporal com a mente e os sentidos corporais. O jivâtman é suporte também de qualidades como desejo, repulsa, dharma, adharma, impressões (samskaras), número, dimensão, etc.

O jivâtman é substrato da cognição. Como a cognição tem diversas formas, ela pode ser dividida em duas categorias principais -- vidyâ (ciência) e avidyâ (nesciência). A conjunção dos sentidos com os respectivos objetos é indeterminada (nirvikalpa), quando os sentidos entram em conjunção com a mente, que está, por sua vez, em conjunção com o jivâtman, e tendo o objeto como magnitude,  temos  atribuição de universalidade, particularidade, e inerência através da associação do nome, e dá-se a cognição determinada (savikalpa). Se não houvesse conjunção com o jivâtman, a cognição seria totalmente inconsciência, como a fricção de dois vasos de barro.

Diz-se que o jivâtman é do tamanho do espaço, pois de outra forma ele teria que se mover constantemente no tempo e espaço para possibilitar a cognição, o que é característica da mente. Da mesma forma, diz-se que é eterno, pois se não o fosse, seria impossível a conjunção com o movimento da mente, que é temporal. Todas as coisas de magnitude intermediária (nem atômica, nem onipresente) são produzidas e tem partes, portanto, se o jivâtman fosse produzido, ele teria partes, e seu contato com a mente e com o corpo se daria em alguma de suas partes apenas, dividindo-o e tornando impossível a unidade de apercepção. E por fim, é também distinto substancialmente e é 'contemporâneo' ao tempo (kâla), de forma que não entra em conjunção com o a tríade temporal do passado, presente e futuro (trikâla).

Como os cosmologistas e lógicos hindus entendem que a consciência é a conjunção do jivâtman com a mente e os objetos dos sentidos, e como eles investigam somente o aspecto de 'sat', ou seja, tentam provar a existência do jivâtman, eles não incluem em sua investigação o aspecto de Cit e Ânanda, e portanto, para eles a libertação espiritual, distinguindo-se da consciência psicológica, que é a única consciência que está dentro do campo de investigação desse ponto de vista, faz concluir o jivâtman é 'jada', ou seja, substrato da consciência, porém inconsciente (ainda que eles digam que essa inconsciência se distingue tanto da potencialidade da noite cósmica, como da inconsciência própria aos objetos dos sentidos).

O conhecimento das distinções entre o jivâtman (enquanto prameya, objeto de conhecimento), corpo, órgãos dos sentidos, objetos dos sentidos, intelecto, mente, intenção, defeitos mentais, renascimento, fruto das ações e dor levam à discriminação entre Âtman e Não-Âtman, e elimina a ignorância; eliminando-se a ignorância os defeitos mentais são eliminados; eliminando-se os defeitos mentais, a ação com motivação incorreta é eliminada; com isso elimina-se a causa dos sucessivos renascimentos, e por fim elimina-se a dor de forma definitiva, e atinge-se o bem absoluto proposto por esse ponto de vista.

Para os lógicos e cosmologistas hindus, os jivâtman-s são distintos qualitativamente segundo os dharmâdharma (méritos e demérito das ações passadas). Há opiniões minoritárias que dizem que, na libertação, essas diferenças são apagadas, e todos os jivâtman-se tornam apenas um Âtman, mas quase todos os lógicos rejeitam essa possibilidade, que leva a consequências lógicas absurdas, e dizem que o jivâtman mantém eternamente sua conjunção com a mente, mesmo após a libertação, e que essa mente lhe serve de 'vishesha' ou princípio individuante, de forma que se mantém a pluralidade de jivâtman-s.

Resta ainda dizer que, para esse ponto de vista, Deus é o Âtman supremo (paramâtmân), substancialmente e qualitativamente distinto dos infinitos jivâtman-s. No que diz respeito à religiosidade, tanto os vaisheshikas (cosmologistas) como os nyâyas (lógicos e epistemologistas) costumam ser shaivas, em oposição aos samkhyas, que em geral são vaishnavas. O supremo para eles é Îshvâra, senhor da manifestação, preservação e destruição, e controlador das leis invisíveis do karma,  distribuindo-o a cada ciclo universal de acordo com o mérito ou destino invisível (adrishta), e que, por ser absolutamente espiritual, é eternamente distinto dos 5 elementos, nunca se tornando causa material do universo.