Thursday, July 18, 2013

Versos Áureos Pitagóricos

Cabe aos humanos, cuja raça é divina, discernir o erro e ver a verdade. A natureza o serve. Tu que a penetraste, homem sábio, feliz, respira nesse porto; mas observa as minhas leis, e abstém-te do que deve tua alma temer e distinguir; deixa reinar sobre o corpo a inteligência, a fim de que, elevando-te ao radioso éter,sejas, então, um deus entre os imortais.
Temos em português os "Versos Áureos Pitagóricos" apresentados e comentados por  Mário Ferreira dos Santos em cima dos comentários originais de Hierócles. O filósofo brasileiro, buscou ser "o mais pessoal possível" em seus comentários, tratando de acrescentar ideias originais, a partir do uso da sua 'dialética concreta', se distanciando de posturas historicamente cristalizadas e 'desleixadas' sobre Pitágoras, e focalizando-se na obtenção de uma hermenêutica simbólica diferenciada, porém segura (ou apodítica, como ele gosta de dizer). Mário não busca entrar nas discussões sobre a biografia ou existência da pessoa de Pitágoras tampouco.  É somente através dos comentários de Hiérocles de Alexandria que esses versos foram conhecidos. A autoria não é atribuída diretamente a Pitágoras, tampouco, mas a Lysis de Tarento, supostamente um dos discípulos imediatos do filósofo, e que, segundo Mário, teria 'coordenado poeticamente' sentenças expostas por Pitágoras a seus seguidores.

Há uma discussão sobre se a própria ordem dos versos tem significado esotérico. O que se percebe é que eles são apresentados em três partes que representariam três graus iniciáticos:  A paraskeiê, na qual é estabelecido o culto de Deus e dos espíritos superiores; a da cathartysis, onde são apresentados o culto da humanidade, da família, do semelhante, de nós próprios e de nossos deveres sociais; e a teleiôtes,  que trata da perfeição, ou seja, o caminho da meditação e da:

"...fé que nos impele à vida virtuosa e nos indica como desvendar os problemas do universo, chegar aos últimos graus de iniciação, atingir a sapiência, a intuição sapiencial e compreender, finalmente, mais profundamente toda a nossa razão de ser e de existir e a os fins para onde tendemos".
No prefácio Mário destaca a importância inestimável do pitagorismo na modulação do pensamento grego no que diz respeito à articulação de dois planos de realidade: o das formas eternas e o do mundo do devir. Perspectiva comum a Pitágoras, Socrates, Platão e Aristóteles e que chegou à escolástica, sendo, portanto, uma coluna civilizacional que atravessou eras. Contudo, a análise da obra de Pitágoras dá a entender também outras fontes da empresa filósofica grega: há o pensamento vestigial do misticismo oriental -- egípcio e órfico -- que não podem ser desconsiderado. Mário destaca a profunda e subestimada influência de Pitágoras sobre Sócrates, a quem ele considera 'o primeiro pitagórico'. É notável também a afinidade entre a doutrina dos números e a doutrina das formas platônica.

O Pitagorismo tinha dois planos de apresentação: o exotérico e o esotérico. O primeiro direcionado aos profanos e o segundo aos iniciados. Por isso é ingênuo crer que o esoterismo matemático se tratou de doutrina meramente quantitativa, de matematização ingênua da realidade. A justa medida deve ter em conta que, por um lado, os números, que são essência da realidade para os pitagóricos, o são desde uma perspectiva estruturante e metafísica, por outro lado, não se pode jogar toda a doutrina matemática para o campo puramente esotérico e desconsiderar a contribuição definitiva de Pitágoras para o surgimento de uma das características mais marcantes do pensamento filosófico, a demonstração: o saber pitagórico não era meramente um saber oculto, ao modo oriental, que se completava e se resolvia na intuição mística transcendental, mas era um saber 'metamatemático':

"o verdadeiro amante do saber é aquele que expressa com clareza o que sabe, e procura demonstrar o que sabe, seguindo as normas da matemática, isto é, fundando-se em juízos apodíticos, universalmente válidos"

Surge aí o tema da oposição entre a 'doxa' e a 'episteme', que seria um tema explorado posteriormente também por Parmênides e por todos que se propuseram a fazer o que se chamou já em Pitágoras de filosofia.

Os comentários dos versos, tanto os de Hiérocles como os do Mário, são riquíssimos de conteúdo e ensinamentos morais e espirituais, e são uma excelente reflexão (perene) sobre as relações entre o esoterismo e a virtude moral: tema difícil e controverso, presente também nas temáticas da resenha anterior (Filósofo Autodidata).  Há na obra profundos elementos para a reflexão sobre o que se chama de mistérios, e sobre as pontes que ligam os diversos planos da perfeição possível ao homem.  Esses planos são integrados de forma muito coerente na via pitagórica, que os aceita e os articula todos dentro de um espírito de harmonia hierárquica tipicamente oriental. Há interessantes analogias entre a via pitagórica com a doutrina hindu das perfeições humanas (Puruṣārtha), como há entre as diversas vias de perfeição das civilizações antigas.