Thursday, July 18, 2013

O Filósofo Autodidata


Li uma versão em espanhol dessa curta, porém monumental, obra do muçulmano andaluz do século XII, Ibn Tufail . É um pequeno romance em terceira pessoa, e tem como precedente, no que diz respeito à temática, a experimentação filosófica de Avicena, no livro "O regime do solitário". O protagonista é Hayy, um indivíduo que teria sido ‘auto-gerado’ numa ilha: o clima da ilha, propício e temperado, acabara gerando, numa conjunção um tanto fantástica, um coágulo que se transmutou finalmente num ser humano completo. Há no livro inclusive uma curiosa preocupação em conferir uma verossimilhança científica mínima dessa possibilidade. Contudo, a geração espontânea não é a essência da obra, e, segundo soube, há inclusive uma versão em que o aparecimento do personagem se dá de outra maneira. Pareceu-me que o livro foi escrito dentro de certa crise dentro do mundo muçulmano entre filosofia, religião e misticismo.  O texto é tenta conciliar essas diferentes abordagens, ou ao menos situá-las, cada uma, dentro de sua própria esfera.

Pois sim: Hayy nasce só, coagulado pelas condições climáticas; e é criado e alimentado por um gazela. Adiante, defrontando-se com a morte da maternal figura e impulsionado pela perplexidade diante da morte, ele começa a especular sobre a origem da alma. Essa investigação toma progressivamente sete fases de sete anos cada, partindo da investigação propriamente empírica, subindo às classificações gerais das coisas, descombocando logicamente em compreensões fundamentais sobre a natureza da matéria, da alma como origem do movimento, da natureza superior e da excelência dos corpos celestes em seus movimentos cíclicos e, por fim, na intuição de Deus,  o que lhe coloca face a face com a chamada experiência mística ou unitiva. Assim, num quadro de progressiva compreensão do universo, a narrativa perfaz a caminhada filosófica arquetípica, passando pelos seus principais temas, e esbarrando também no caminho em problemáticas mais concretas, pertinentes ao tempo histórico e ao estágico do desenvolvimento das ciências à época em que a obra foi escrita. 

Terminada essa odisseia cognitiva solitária e ascendente, há um segundo movimento, descendente, que se inicia pelo aparecimento na ilha de um outro ser humano, um sufi de nome Absal que ensina a Hayy o idioma e a religião -- note-se que até então o personagem não conhecia nada sobre a sociedade e seus instrumentos. Hayy aceita a religião, reconhecendo sua verdade. Absal o sufi, travando contato com as intuições do filósofo autodidata também reconhece sua legitimidade, de maneira que ilustram, através da sua relação pessoal, uma possível harmonização entre as duas fontes de conhecimento representadas pelos dois personagens. É importante ressaltar, contudo, que o conhecimento do autodidata, na própria obra, é considerado superior, por sua pureza. 

Ao longo da interação, Absal conta ao filósofo autodidata as coisas da civilização, despertando-lhe a curiosidade e o desejo de compartilhar a verdade com outros seres humanos. É então que os dois abadonam a ilha em diração à civilização. Entretanto, o encontro de Hayy com civilização acaba sendo  frustrante, uma vez que ele percebe que as pessoas reagem muitas de vezes de forma hostil à verdade, que para ele era natural. Ele entende que nem todos têm a disposição e a natureza inclinada à investigação de verdades superiores e que ao mesmo tempo, a sociedade necessita dos parâmetros da religião para levar uma vida minimamente digna. Ele aceita essa condição, abdica de apresentar publicamente posições que causem conflitos sociais, e recomenda que todos pratiquem a religião da melhor forma possível. Por fim, ele e o sufi retornam à ilha, para ali permanecerem na contemplação de Deus até o fim de suas vidas.
A obra, pequena, é profunda. Tem um conteúdo sapiencial e indicações místicas. Tem inclusive alguns elementos 'esotéricos' ou indicações simbólicas para 'iniciados'.  Ela dá uma perspectiva muito boa sobre a posição da investigação filosófica de tradição aristótelica no mundo muçulmano, e segundo me consta, é o primeiro romance escrito em língua árabe, de maneira que tem alguma importância também histórica e literária; a reflexão sobre o 'homem solitário' viria reaparecer  posteriormente no imaginário literário na figura do clássico Robinson Crusoé de Daniel Defoe e em outras referências, tornando-se um "lugar literário" incorporada na mentalidade ocidental.