Wednesday, July 24, 2013

O Sagrado e o Profano

Dentro das fecundas possibilidades da proposta fenomenológica apresentada pelo filósofo Edmund Husserl, foi que em 1917,  um outro autor, Rudolf Otto lançou o livro "O Sagrado", no qual ele analisava a experiência religiosa e permitia que esta se apresentasse metologicamente destituída de qualquer imposição metafísica, histórica, etc. O livro teve como foco a análise da experiência irracional ou "numinosa" de Deus (mysterium tremendum), contrastando-a com a experiência do "Deus dos Filósofos". Baseando-se nesse empreendimento intelectual muito bem sucedido  e dentro dessa mesma perspectiva  Mircea Elíade buscou formular a obra, escrita em 1956, que resumimos aqui. O autor romeno buscou, no entanto, não só focalizar o aspecto 'irracional' da experiência religiosa como foi o caso da obra de Rudolf Otto, mas tomá-la segundo sua complexidade integral, ou seja, ele realmente toma o sagrado como fenômeno de consciência e intencionalidade. 

O livro se direciona a um público amplo, e não busca aprofundar seus conceitos mais do que a medida de palatabilidade permite, deixando que o leitor busque em sua bibliografia a complementação ou embasamento acadêmico das informações e dos exemplos utilizados. É nesse livro que Mircea Elíade traz alguns conceitos que se tornariam basilares para a ciência da religião como o sagrado e o profano, a hierofania, o espaço sagrado, o tempo sagrado, a sacralidade da natureza e por fim a existência humana concebida dentro da chamada "vida santificada".

Segundo o autor, o homem que tem a experiência do sagrado é o "homus religiosus". Na experiência desse homem o espaço apresenta-se, não como homogeneidade quantitativa, mas há regiões do espaço que têm uma ruptura qualitativa, ou seja, há pontos do espaço que não são equivalentes a outros pontos. Essa perda da homogeneidade espacial corresponde para esse homem à 'fundação do mundo'.

Mircea observa que não se trata de especulação teórica , mas de uma "experiência religiosa primária". Essa ruptura do espaço homogêneo se dá pelo estabelecimento de um "ponto fixo" que vai gerar a "orientação" onde se estabelecerá a chamada hierofania, ou manifestação do sagrado. Essa ruptura tem a intenção de separar o "Cosmos" do "Caos". A consagração do lugar, do templo, portanto, é uma repetição da cosmogonia, onde a ordem prevalece contra a desordem. A primeira conclusão que se impõe é que o mundo se deixa captar enquanto Cosmos "na medida em que ele se revela como mundo sagrado".

Assim como ocorre com o espaço, o tempo sagrado tampouco é homogêneo. Enquanto temos um tempo irreversível no plano histórico, o tempo mítico primordial é, de certa forma circular, reversível e recuperável. Ele se faz presente por conta do rito ou das festas. Isso se distingue abruptamente da visão do homem profano, para quem o tempo não apresenta nem ruptura nem "mistério". O que o "templus" representa no plano especial, o "tempus" representa no plano temporal, de maneira que para o homem religioso, o "ano" com suas datas comemorativas e a estrutura das datas festivas, traz novamente a condição "ab initio": o mundo se renova anualmente e encontra novamente a "santidade original". Ao participar ritualmente do "fim do Mundo" e de sua "recriação" o homem se torna contemporâneo do "illud tempus" (aquele tempo) que é a origem de tudo.

O mito surge como um modelo exemplar que reconta uma história sagrada que ocorreu nesse "ab initio". Uma vez revelado o mito se torna uma verdade apodítica, ele funda a verdade absoluta. O sagrado é o real por excelência e assim, pela simples razão de contar como uma coisa nasceu, irrompe o sagrado no mundo como causa última de toda existência real. O homem se reconhece verdadeiramente homem somente na medida em que  ele imita aos deuses, aos heróis civilizadores e aos ancestrais míticos. Mircea observa, no entanto, que há uma inovação particular no judaísmo, que se estende depois ao cristianismo: para o judaísmo, o tempo começou e terá um fim. Javé não se manifesta no tempo cósmico, mas no tempo histórico, sua manifestação se torna 'teofânica' e consequentemente a história, em sua totalidade, se torna uma teofania.

Seguindo a mesma ruptura do espaço e do tempo,  a natureza nunca é exclusivamente natural, há sempre um valor religioso intrínseco. Elíade observa que uma vez que o mundo se coloca positivamente como Cosmos e não como Caos, há aí uma 'transparência' que reflete o sagrado em diferentes níveis. Dentre as representações mais comuns estão:

a) A representação celeste do sagrado ou a revelação dos deuses uranianos: "diante do Céu, ele [o homem] descobre de uma só vez tanto a incomensurabilidade divina e sua própria situação no Cosmos".  Destaca-se um fenômeno particular de algumas religiões que é derivada de um tipo específico de relação do homem religioso com o Céu, que é o fenômeno do "Deus distante", presente em diversas culturas mais arcaicas, que é a impressão de que o Deus celeste, normalmente associado à criação das coisas, encarregou divindades menores de seu trabalho e se retirou do mundo.

b) A representação aquática do sagrado: as águas em geral representam as potencialidades ou virtualidades do universo, e a imersão na água simboliza em geral a regressão ao pré-formal, a um modo indiferenciado de pré-existência. A emersão, por outro lado, repetiria o gesto cosmogônico da manifestação formal. O cristianismo retirou profundas consequências simbólicas da água, no que diz respeito ao batismo, por exemplo.

c) A representação telúrica do sagrado: a terra em geral está associada à figura da fecundidade e a "poderes mágico-religiosos" ocultos. Em certas tradições a terra tem sozinho o poder e a independência gerativa, ao passo que em outras há uma hierogamia sagrada entre Céu e Terra. A estrutura cósmica do ritual conjugal e do comportamento sexual dos humano também aparece no mito da terra, bem como a orgia ritual, e a fertilidade agrária.

d) A representação da árvore cósmica: a vida vegetal, que num plano profano representa meramente as qualidades mais básicas da existência, ou seja, uma sequência de nascimentos e mortes sem "fatos biográficos", para o homem religioso, por outro lado, compreende o ritmo de regeneração, juventude, saúde e por fim da imortalidade. A árvore também está muito relacionado com o mita da "demanda da imortalidade" em que os frutos da árvore, que simbolizam a própria imortalidade, são obtidos após enfrentar um monstro guardião e matá-lo. O tipo heroico obtém uma condição sobre-humana, quase divina, de juventude eterna, de invencibilidade e de poder.

e) O simbolismo solar e lunar: através das fases da lua, ou seja de seu nascimento, morte e ressurreição, os homens tomam consciência de sua própria posição no Cosmos e também de seu destino, eles têm a intuição do fio da vida. A ritmo lunar permite ao homem sintetizar muitos símbolos heterogêneos numa unidade, principalmente no que diz respeito ao devir, ao ciclo, ao dualismo, a polaridade, a oposição, o conflito e a vida após a morte. O sol, por outro lado, não participa no devir pois ainda que sempre em movimento ele é imutável, sua forma é sempre a mesma. O sol terminará por ser assimilado à Inteligência, a tal ponto que, segundo Elíade, as mitologias solares se transformaram em filosofias racionalistas.

Elíade segue explicando que, para o homem religioso, o Cosmos "vive" e "fala", e é por esse motivo que "a partir de um certo estado de cultura" e dentro desse "diálogo" o homem se concebe como um microcosmo. Ele faz parte da criação divina de maneira que, em determinado ponto ele encontra em si mesmo a "santidade", que ele reconhece também no Cosmos. E enquanto obras divinas, suas estruturas sociais, e até mesmo seu corpo no sentido fisiológico, têm correspondências com o sagrado e podem ser vivenciados a partir dessa perspectiva. É dentro desse plano que surge a concepção da "santificação da vida humana". Temos então o olho humano que representa o Sol, os cabelos representando a vegetação, a coluna vertebral representando o "Eixo do Mundo", etc. O homem religioso vive num "mundo aberto", uma vez que sua existência é permeada de camadas simbólicas e de possibilidades de abertura. Até mesmo suas funções fisiológicas mesmos são suscetíveis de tornarem-se sacramentos, em algumas sociedades temos a ritualização da alimentação e até mesmo da vida sexual.

Vivendo o homem religioso num Cosmos aberto, e sendo ele mesmo  aberto ao mundo na medida em que ele está em comunicação com os deuses, ele participa da santidade do mundo. Podemos encontrar em determinadas culturas perspectivas multidimensionais de equivalência simbólica como "casa-corpo-cosmos" entre outras com camadas sobrepostas e temos os ritos de passagem (nascimento, casamento, morte) que desenvolvem em complexas articulações dessas camadas. A iniciação, dessa maneira, serve de fio condutor para que o indivíduo ascenda desde sua vida natural e corporal até a vida social, e por fim espiritual. O acesso à vida espiritual implica sempre a morte à condição profana, seguida de um novo nascimento.

Fazendo uma reflexão sobre a religiosidade do homem moderno,  Mircea Elíade termina a obra observando que o pensamento sagrado ou mitológico, ainda que irrefletido, permanece na Modernidade em formas mecânicas ou degeneradas seja na figura do herói nos cinemas, nos roteiros da vitória do Bem sobre o Mal, seja na noção das provas e agruras na carreira profissional ou na vida pessoal (que reproduz os obstáculos das vias iniciáticas) ou nas teorias políticas como o Marxismo e sua missão profética e escatológica. O livro é um clássico, e ainda que não se preste a isso diretamente, realiza esplêndida crítica do homem moderno por um caminho deveras interessante. Elíade reconhece as limitações dessa obra pela sua natureza concisa, mas suas investigações abrem muitas possibilidades para o campo da filosofia, da psicologia e de muitas outras disciplinas, possibilidades que até hoje não foram aproveitadas ou integradas, devido ao persistente estado de falta de comunicação e articulação entre as diversas ciências que experimentamos hoje.