Sunday, July 21, 2013

A Consolação da Filosofia

"Se de um lado é pela aquisição da felicidade que as pessoas ficam felizes e, de outro, a felicidade é por natureza divina, conclui-se que é pela aquisição do divino que eles podem se tornar felizes"

Boécio, de família cristã, nasceu em Roma no ano 480. Participou ativamente da vida pública e política e usufruiu das glórias civis e humanas de seu tempo. Foi dentro da mesma política que lhe exaltou que surgiu a acusação de que ele tramara em favor do Imperador Teodorico, acusação que o condenou à prisão e à morte injusta.

O seu encontro com a deusa Filosofia se dá, portanto, diante de uma dor ou aflição concreta. No entanto, aquilo que os antigos chamavam de "Fortuna", é o que determina sua condição, e é termo muitas vezes usado, o que coloca o filósofo em meio a problemas filosóficos de natureza mais abstrata como o problema da existência do Mal e o problema do Livre-Arbítrio. É também notável que sua condição tem algumas analogias imediatas com a condição do mais célebre dos filósofos,  Sócrates. 

Boécio se vê diante da deusa da Filosofia, que vem lhe resgatar do desespero e da confusão causadas pela injustiça. Na iminência de sua morte, Boécio é guiado pelas diferentes camadas de sua própria ignorância até a iluminação plena sobre a realidade. O filósofo é resgatado em meio ao diálogo infrutuoso que travava, no desespero, com as 'musas da poesia'.  Para a deusa da filosofia, aquelas eram incapazes de curar um doente. A relação que se estabelece entre entre filosofia e Boécio é uma relação inicialmente terapêutica: muitas vezes no livro usar-se-á o termo doença ou cura. 

Repete-se outrossim em Boécio um diálogo imemorial, guardadas as diferenças de nível, como o que podemos ver na história do Antigo Testamento entre Jó e Deus, ou até mesmo o diálogo hindu entre Arjuna e Krishna. Temos em todos os casos a estrutura arquetípica da divindade que surge diante da confusão e da incapacidade de decisão do indivíduo num momento crítico e radical de sua vida, e vai iluminando, revelando a natureza e a ordem das coisas.  A deusa filosofia, como aparecera já a Parmênides, reaparece, no formato do diálogo instrucional,  comunicando a possibilidade da felicidade humana através da "vida refletida",  roupagem característica do que se chamou entre os gregos de filosofia. Nesse campo de manifestação, nesse modo de operação específico -- o do raciocínio demonstrado--  é que a luz se reflete e que a verdade se reconhece:
"...sabes que todas as afirmações que me fizeste até agora pareceram-me não só divinas mas também irrefutáveis pela lógica de teus argumentos."
A deusa envolve Boécio numa imperceptível crescente espiral de luminosidade que começa mostrando o panorama da condição humana na busca da felicidade, sua busca dos prazeres, da honra e da glória, e junto a essa demonstração, vai ocorrendo uma descascamento, uma discriminação, ao modo dos vedânticos hindus, de tudo o que é falso, de tudo o que não leva à felicidade. Isso é feito pela alternância hábil entre diferentes "remédios": temos por um lado, a dialética que desvela a luz, e do outro lado, a poesia que a estabelece na alma:
"Mas percebo que teu espírito, fatigado pela dificuldade dos raciocínios e esgotado pela gravidade do assunto, anseia impacientemente pelas doçuras da poesia. Bebe então desse doce sumo e encontrarás forças para ir mais longe."
A imagem do mal, e da injustiça, que afunda o homem em vícios, ignorância e paixões, era na alma amarga de Boécio um horizonte de solidez absoluta. Isso vai mudando. De repente, essa imagem de injustiça começa a ser atingida por uma luminosidade superior, até que, por fim, prevaleça, a perspectiva da luz absoluta do Ser. A convergência do Ser e do Bem com a "visão", tornava o mal ontologicamente ineficiente. Ao afastar-se da própria natureza, que é o Bem, o homem afasta-se também do Ser e passa a ser sombra, passa a não existir. Da mesma forma que as presas da Ilha de Circe, por magia da feiticeira são convertidos em porcos e cães assim também ocorre com o homem mau como explica a deusa:
"Os maus deixam de ser, mas o fato de conservarem a aparência física de um ser humano mostra que eles já foram verdadeiros homens. E é assim que, afundado na maldade, eles perdem ao mesmo tempo sua natureza humana."
E ainda:
"Pois para ser é preciso conservar a boa ordenação da alma e preservar a própria natureza; ora aquele que se afasta de sua natureza renuncia também a ser aquilo de que sua natureza depende."
A doença da alma que assola os homens maus e injustos, faz com que eles sejam objeto de piedade por parte do homem justo  (assim como haveria piedade para com indivíduos deformados, por exemplo). Ser mau afasta o homem da sua felicidade. A roda da Fortuna, se permite que ele continue exercitando sua degradação, o faz como castigo, pois, se afundando na não-existência, o homem mau vai perdendo sua dignidade humana natural. Já o homem bom, a partir da compreensão superior de que tudo se encaminha para o Bem consegue conceber essa convergência entre Bem e Ser, ainda que em meio ao caos. Assim, a roda da Fortuna não lhe afeta e nem lhe destrói.
"Somente a Divindade possui este poder de transformar o mal em bem, servir-se dele e daí fazer desabrochar efeitos salutares. Pois há uma ordem geral que abarca todas as coisas; o que escapa de um lado aparece sempre de outro, a fim de que, no reino da Providência, nada seja deixado ao acaso"
 Uma vez apaziguado o sofrimento imediato, mistérios mais profundos vão sendo trazidos à tona, e temos aí uma excelente perspectiva de questões filosóficas como a do livre-arbítrio, as complexas relações entre o Destino e a Providência encontram ali exposições sucintas porém apuradíssimas:
"Quanto mais alguma coisa se distancia da inteligência suprema, mais e mais os liames do Destino a envolvem, enquanto alguma coisa é tanto menos dependente do destino quanto mais se aproxima desse pivô do universo. E, se ela adere firmemente à inteligência suprema, desprovida de todo movimento, torna-se também imóvel e escapa à dominação do Destino. Dessa forma, aquilo que o raciocínio é com relação à inteligência, e o ser criado ao ser absoluto, o tempo à eternidade, a circunferência ao centro, eis aí precisamente o que é a ordem variável do Destino comparada à unidade imutável da Providência."
A obra foi concebida na urgência de salvação de um homem caminhando em direção à morte, de maneira que é natural que nela predomine a voz "terapêutica". Ainda assim ela deixa em alguns momentos essa esfera para caminhar por questões filosóficas mais técnicas, que seriam herdadas depois pela escolástica e que serviriam de ponte entre os romanos e a tradição católica, e que seriam, inclusive, fundamentais para a sobrevivência da filosofia no ocidente. Ademais, Boécio procurou conscientemente ser um instrumento dessa transição em sua vida, buscando traduzir obras do grego e realizar sínteses que seriam aproveitadas pelas gerações posteriores. A "Consolação da Filosofia" é também obra de valor atemporal e sapiencial, e que pode ainda hoje servir de inspiração.