Thursday, December 28, 2017

As doutrinas de renascimento, conclusões (parte I)

Depois de ter apresentado as várias posições sobre o tema do renascimento, chego aqui à conclusão, que será dividida em duas partes.

A primeira coisa importante a se notar é que a discussão tradicional vedântica sobre a distinção entre Âtman e Brahman não entra na discussão do renascimento (punarjanman), pois se dá em outro nível; o importante é que, qualquer que seja o caso, o Âtman, segundo o Veda, nem nasce, nem renasce, mas permanece impassível e inafetado pelo ciclo do sâmsara (como explica a narrativa dos dois pássaros dos Upanishades).

Por outro lado, o jîvâtman, que é o transmigrante, de fato se compõe (de alguma maneira) com o corpo físico (que empiricamente morre) e migra após a morte física,  mantendo algum tipo unidade ou envoltório sutil constituído de elementos sutis, da mente, das virtudes e vícios, e do 'corpo de sensações' . 

É esse envoltório, chamado lînga-sharira, que vai até a Esfera da Lua, ou desce aos infernos, e que se manifesta novamente em novos corpos físicos. Na Via dos Ancestrais, esse jîvâtman, como vimos, passa por um transformação guiada pelas devatâs e segue as ordens e interesses dessas divindades nas esferas cósmicas infernais, terrestres e celestes. 

Também vimos que a natureza dessas transformações não é matéria de lógica, nem de filosofia profana, e sua natureza não é de amplo conhecimento. Sabemos que os âchâryas vedânticos costumam explicar essa doutrina de forma literal às pessoas, com fins de aplicação ética e social, e vimos que há também meditações esotéricas sobre o tema e que só podem ser compreendidas pela proficiência em um determinado vidyâ.

Acrescentamos que existem outras doutrinas parecidas nas escrituras, que não se referem ao renascimento, como as doutrinas de avatares, ou coisas assim, que são colocadas nas escrituras na figura de divindades, e não deveriam ser confundidas com o renascimento.

A questão doutrinal mais complexa que se coloca, dentro das doutrinas védicas é sobre a relação entre o jîvâtman e o lînga-sharira. 

Os sâmkhyas defendem que o linga-sharîra é somente a  Prakrti, o que leva a entender que se trata de um veículo inconsciente que muda de lugar e de plano mantendo uma unidade. Segundo essa perspectiva, o Purusha não transmigra, o que, no fim das contas cria dificuldade para sua tese da multiplicidade de Purushas, pois se há um vínculo particular entre os múltiplos Purushas e os múltiplos linga-sharîras, de que maneira os Purushas efetuam essa influência particular dentro da Prakriti? 

Os vedânticos advaitinos, se fossemos continuar usando a linguagem do sâmkhyas, usam uma espécie de bilogismo (cosmológico e metafísico) que indica basicamente a seguinte solução: enquanto o Purusha se identificar com a Prakriti (através de um modo de conhecimento parcial) ele vai ser aparentemente múltiplo e renascer; quando o purusha se identificar (através de um conhecimento correto) com o purushottama (Homem Supremo), a Prakrti termina sua dança e é como se nunca tivesse existido, e assim também termina a multiplicidade dos Purushas e seus renascimentos.

A resposta sobre se "o homem" renasce ou não, para cosmologistas (nyaya-vaisheshika), a resposta é sim, pois o o Jivâtmâ permanece coeso; para  os sâmkhyas seria - não, pois tudo o que renasce é o cosmos ou a Prakrti e seus processos, o Purusha, o homem verdadeiro, permanece solitário na intelecção de si mesmo; para os vedânticos advaitinos seria, sim e não, pois o renascimento é mero estado cognitivo; os dvaitinos, em seu ponto de vista realista diriam também, seguindo os cosmologistas, que sim, o homem renasce pois todas essas realidades, inclusive as cosmológicas ou a prakrti inferior são criadas por Deus e experimentadas realmente (e não ilusoriamente) pelo jîvâtman (contudo, mesmo entre estes, dá para dizer, em algum sentido, que o verdadeiro homem permanece sempre destacado disso tudo).

Tendo em vista esses pontos, resumamos então o ponto de vista dos perenialistas seguidos por breve comentário.

a) Julius Evola

Evola não concorda com Guénon em que as doutrinas reencarnacionistas nunca foram ensinadas tradicionalmente; ele diz que, ao contrário, as doutrinas apresentadas por espíritas e teósofos eram de fato ensinadas por muitos povos antigos, contudo, eram doutrinas exotéricas. Diz ele que a presença disso é mais marcante na doutrina vedântica tardia do que no budismo (que para Evola, oferece uma alternativa mais heroica ao homem contemporâneo). 

Evola diz que a doutrina recorrente nos povos antigos, é a de que o homem têm um duplo astral (chamado de daimon). Esse daimon estaria ligado ás forças da vida, ao sopro vital e ao 'totem' ou à ancestralidade e seria, assim, a 'força procriativa' de um clã (daí o retorno ao mundo dos ancestrais), e que desfruta de certa forma de imortalidade ou recorrência. Evola diz que essas doutrinas dizem respeito ao homem ligado à natureza ou à terra, e nada têm a ver com o homem espiritual., que busca o caminho solar e imortalidade verdadeira.

Comentário: a posição do pensador italiano parece ser bem lúcida e razoável. Tirando sua especulações históricas sobre a evolução das doutrinas, de fato, daria para dizer, ainda que isso não seja dito dessa forma pela ortodoxia hindu, que a ida à Esfera da Lua e o encontro com os pitrs é um ciclo de ancestralidade, mantido por uma identidade ritual, e é uma certa forma de imortalidade. Poderíamos também dizer que nada disso tem a ver com o homem espiritual e que são 'tecnologias' totêmicas ligadas ao culto da Terra. Vemos que entre os védicos em geral procura-se desenvolver uma atitude de  'terror cósmico' ao samsâra e não incentivá-lo em qualquer sentido. Em algum momento talvez os ritualistas possam ter se focado em ir ao chandraloka e viver lá, contudo, essa atitude é bastante criticada pelos textos védicos, e tanto a devoção ao Supremo como a gnose visam se libertar desse ciclo. 

b) Frithjof Schuon

Schuon diz que a reencarnação está de fato presente em alguns doutrinas tradicionais, discordando de Guénon, contudo, diz que são aproximações mais ou menos simbólicas e não devem ser tomadas literalmente. Ele diz, de forma semelhante a Evola, que a necessidade de abordar a questão se dá mais pela degeneração da consciência dos homens atuais e a perda da consciência simbólica. Chega a dizer que alguns santos das tradições, que interpretam literalmente e não simbolicamente esses ensinamentos, o fazem porque carecem de conhecimento metafísico. Tenta reconciliar os ensinamentos das tradições semíticas e orientais sobre o tema, dizendo que as tradições semíticas, uma vez que seu surgimento é mais recente, têm um horizonte de visão mais focado na condição humana. Schuon contempla cinco destinos post-mortem: o paraíso, o limbo ou lótus, o purgatório, o limbo-transmigração e o inferno. As três primeiras saída mantêm o estado humano, a quarta faz sair dele; a quinta o mantêm para finalmente fazer sair dele.

Comentário: as doutrinas do suíço são boas, fornecem bastante material de reflexão e inclusive vias de diálogo interreligioso, contudo têm um compromisso implícito muito difícil que é o de reconciliar as diferenças doutrinárias de diversas tradições espirituais, o que, apesar da habilidade inegável do autor, acaba convertendo-se numa posição insustentável. E se ele traz de fato alguns insights interessantes, suas conciliações e seu esforço para manter a tese da Unidade Transcendente das Religiões, às vezes criam alguns outros problemas e aporias, como por exemplo, a de ir contra santos e autoridades de algumas tradições e pretender possuir uma meta-revelação espiritual. Ademais, parece que Schuon não faz distinção entre intuição intelectual e revelação sagrada, mas esse é outro tema.

c) Ânanda Kumârasvâmî


Ananda aceita em geral a perspectiva guenoniana, mas acrescenta e cita repetidas vezes que 'o único transmigrante é Îshvara', e que a renascimento, no sentido de retorno de indivíduos para uma encarnação como ser humano, não é uma doutrina hindu e alega inclusive que Shankarâchârya deixa isso bem claro. Utiliza alguma citações para comprovar sua tese. 

Em artigo sobre os ciclos cósmicos, ele apresenta a tese de que a subida até a Esfera da Lua é uma processão entre dois estados diferentes de ser (doutrina guenoniana), e que o que se considera reencarnação em alguns casos é da herança transmigrantes dos seres ancestrais que vão gerar o novo ciclo cósmico. 

Comentário: após estudar o tema não posso evitar de dizer que Kumârasvâmî é desonesto em sua abordagem. Não se trata apenas de defender seu ponto de vista de que há uma contemplação mais esotérica do tema, mas de distorcer informações. Sustentando essa posição, ele inclusive fez inimizades com autoridades hindus que o admiravam por outros trabalhos.

A frase que ele usa reiteradamente, à maneira de um slogan persuasivo, de que Îshvara é o único transmigrante, é retirada do comentário de Shankarâchârya ao Brahma-Sûtra (I.I.5) quando o âchârya refuta a tese dos sâmkhyas de que a Prakrti (Matéria Prima) é responsável pela criação dos mundos. Shânkarâchârya diz que, sendo inconsciente e carecendo de inteligência, a Prakrti não pode gerar todos esses mundos, e eis que, no fim das contas, no que diz respeito a esse aspecto, ou seja o da inteligência, 'não há jîvâtmans diferentes de Îshvâra' pois 'não há outro que veja senão Ele, não há outro conhecedor, senão Ele'. 

Ora, a desonestidade de Kumârasvâmî é pegar essa frase isolada, como se fosse uma frase central e essencial, e usá-la em sentido primário, quando é uma frase dada em sentido metafórico ou secundário, pois como é que Îshvâra iria transmigrar para algum outro estado se ele é o Senhor de todos os estados? 

Assim, quando se atribui a propriedade de transmigrante a Îshvara, o que se faz é transferir, poeticamente, uma propriedade da jîvâ a Îshvara para indicar que, em essência, no que diz respeito ao aspecto de Inteligência, a jîvâ é Îsvara; contudo, isso não implica, para qualquer observador imparcial,  que Îsvara seja a jîva (pois como diria o Gîtâ, o Senhor está na criatura, mas não o inverso). 

E inclusive a posição contrária é possível e poderia ser amplamente embasada: a de que Îshvara é o único que, afinal, não transmigra. No próprio trecho Îshvara é comparado ao espaço ou vazio em relação a um pote de barro, ou seja, a transmigração é do pote ou do espaço? Quando duas posições contrárias são simultaneamente aceitas em um contexto é óbvio que não se trata de demonstração. Kumârasvâmî passou a usar esse sofisma em diversos escritos, e em inúmeras correspondências, o que é francamente decepcionante vindo de um erudito.

d) René Guénon

O metafísico francês diz que a reincarnação nunca foi ensinada em nenhuma doutrina tradicional, e que quando definida, como o é pelos espíritas,  como a passagem do 'Ser real' repetidas vezes pelo mesmo estado é uma impossibilidade metafísica. Ele entende que o pitriyâna é um uma transmigração por diferentes estados de Ser (segundo sua doutrina dos Estados Múltiplos do Ser) e que o retorno do Ser a uma forma individual não é um retorno a uma vida humana como a conhecemos, mas só pode se dar em outro ciclo cósmico. O ciclos cósmicos são, assim, diferentes estados de Ser e a sucessão entre diferentes ciclos é apenas lógica. 

Comentário: o francês tem uma teoria interessante, complexa e bem elaborada em seu Homem e Seu Devir Segundo o Vedânta, contudo deveria tê-la apresentado também a título de elaboração pessoal, e não como demonstração more geometrico ou revelação sagrada e impessoal.

Há pontos ali, como as articulações entre renascimento e ciclos cósmicos que são soluções originais para questões propostas no Veda e que fazem sentido sim, merecem comentários e reflexão, contudo, não é legítimo dizer que sejam soluções adotadas por âchâryas hindus, pela revelação védica, ou mesmo que sejam colocadas daquela forma na tradição hindu.

Ora, a reincarnação, de forma literal, foi sim ensinada em doutrinas tradicionais, no sentido seguinte: há uma alma (pneuma, anima ou sopro vital) que se destaca (de alguma maneira) do corpo físico, mantém sua unidade separada do corpo físico, e depois retorna (de alguma maneira) a outro corpo, e ele provavelmente não desconhecia isso; ele poderia ter alegado, com o faz Evola e Schuon, que se trata de doutrina simbólica ou exotérica, contudo apenas descarta todo o assunto de forma absolutamente contrária aos fatos. 

Marco Palllis em correspondência chega a dizer:
"(reencarnação] é uma palavra infeliz, usada com frequência, porque quase inevitavelmente invoca a imagem de uma nascimento humano no nosso mundo familiar. O que nem Guénon ou seus críticos abordam com suficiente clareza é que o samsara, a transmigração, o ciclo existencial de nascimento e morte como apresentado pelo Hinduísmo e pelo Budismo (nos quais é uma doutrina básica) é antes de mais nada 'indefinido'; o que quer que a imaginação popular possa inserir nessa ideia, é contrário ao seu significado real tentar definir a forma particular em que o 'renascimento' vai ocorrer para tal o qual ser — a classificação tradicional dos seres dentre esferas celestiais, infernais e humanas ou animais etc. é evidentemente esquemática e simbólica e não viola a condição acima de qualquer forma capciosa. Somente outra coisa precisa ser colocada sobre o samsara (e aqui Guénon estava certo), ou seja, que o caráter ilimitado da Possibilidade Total exclui a repetição; nenhum ser ou coisa pode retraçar a existência de outra num sentido de identidade real, seja mesmo por um momento. o caráter de único da criação se aplica atè às menores características ou componentes dos seres implicados.
E ainda:
"A apresentação guenoniana dos 'Estados Múltiplos do Ser' é uma versão estática da mesma verdade que o 'samsara' tradicionalmente expressa de modo dinâmico. O esquema de Guénon dos graus de realidade é iluminador, contanto que não seja transformado em um sistema em detrimento da indefinitude do samsara e seus conteúdos. Pareceria, contudo, que Guénon, apesar das advertências que fazia aos outros, sistematizou seus próprios pontos de vista sobre o tema; daí sua afirmação de que, entre os hindus, a frequente referência ao renascimento em forma humana é conscientemente intencionada para uma leitura somente simbólica, e que é a incompreensão ocidental, notavelmente da parte dos teósofos, que é exclusivamente responsável  pela fraseologia reencarnacionista. Tendo tido bastante contato com lamas e brâmanes em seus respectivos países, eu só posso dizer que essa afirmação não se mantém.
Sobre a demonstração lógica do Guénon, que já cheguei a endossar, após estudar mais de metafísica, posso dizer que, caberia comentário mais elaborado e técnico sobre suas doutrinas, o que talvez eu faça depois, contudo é preciso dizer aqui que, se de fato é possível demonstrar a impossibilidade absoluta repetição de uma determinada condição particular,  não é possível demonstrar apoditicamente, como quer Guénon, a impossibilidade de qualquer repetição em absoluto, pois a repetição, entendida na categoria metafísica de relação, refere-se, obviamente, e algo que tem consistência ontológica, e é o próprio fundamento, em certo sentido, da relação vertical entre forma e matéria, que dá origem, segundo certa perspectiva metafísica (diferente da de Guénon) ao indivíduo, que é, também, repetição de ideia com matéria diferente. Assim também, se é possível demonstrar que não há um círculo fechado de modo absoluto, não é coerente dizer que nenhum círculo nunca se fecha.

Ademais, as doutrinas que podem ser postas dialeticamente podem ser debatidas dialeticamente, e se Guénon se arrogava a posse de doutrina irrefutável, ele deveria entender que sua pretensão ou postura não foi compartilhada por nenhum dos mestres esotéricos registrados na história, que entendiam que o campo dialético e lógico (e doutrinal) não é sagrado, mas está aberto para a razão discursiva e requer demonstrações e não afetações de superioridade.

Se, por outro lado, Guénon se arrogava autoridade revelada, ou 'não-humana', ele teria de apelar ou para petição de fé alheia ou para o seu 'poder taumaturgo' de endossar, com milagres, o fato de 'falar como quem tem autoridade'. Se suas doutrinas, por outro lado, são evidentes, como ele quer em alguns momentos, só para quem tem 'qualificação iniciática', tais sujeitos, já de posse de um intuição não-discursiva, não obteriam benefício nenhum de doutrinas ou inferências lógicas ou teorias sobre Estados Múltiplos, fazendo melhor talvez, em ler as escrituras tradicionais ou em não ler  nada.

(Leia aqui a última postagem dessa série)