Wednesday, February 28, 2018

As três luminárias

Já escrevi bastante sobre tríades aqui no blog, mas acho que até hoje não entrei mesmo em temas simbólicos e analogias tradicionais. Arrisco deixar nessa postagem algumas sugestões básicas nessa área. 

Há inúmeras tríades tradicionais, e é bom consultar o incontornável "A Grande Tríade" de René Guénon, para um noção geral sobre o  tema. Obviamente, a multiplicidade se dá porque cada tríade consegue expressar a realidade sob diferentes ângulos e têm diferentes aplicações. Uma das tríades mais usadas nos textos agâmicos hindus é a do Fogo, Lua e Sol, as chamadas três luminárias. Simbolismo que  não é restrito à tradições hindus inclusive.

Os textos esotéricos, que contém doutrinas não compreensíveis segundo a inferência ou sentidos, fazem uso abundante desse simbolismo, cruzando-o com outros. Vou tentar dar aqui uma ideia básica  de como isso é abordado no campo da relação entre luz (jyotir) e som (shabda) que se dá em união, segundo textos hindus, na vibração primordial (para-nâda):

O primeiro fonema do sânscrito é a vogal gutural "A". É notável que as diferentes posições de pronúncia (gutural, palatal, cerebral, nasal e labial) em sua série completa perfazem um arco de 180 graus de projeção do som dentro do crânio.  O ponto gutural base  é representado pelo "A". No alfabeto sânscrito temos outra sonoridade, produzida na mesma posição, porém não vocalizada, que é o fonema "HA" (aqui acompanhado pela vogal), que, não por acaso, é o último fonema na ordem do alfabeto devanagarî. e é representada graficamente como dois pontos ":". O terceiro som é chamado de anusvara, que é representado por um ponto e é o som nasal "M". 

Pois sim. Desde o ponto de vista primordial, "A" representa o primeiro 'tattva', chamado de Shiva, e "HA" representa a Shakti (ou 'visarga', emissão dual), e o "M" pode apresentar aqui o para-nâda mesmo, o som primordial. A conjunção disso na guirlanda das letras é AHAM, que significa em sânscrito "Eu". Ou seja, com essa referência contemplamos o fundamento último da divisão entre sujeito e objeto por meio da noção dual de Aham-Idam (eu estou aqui, aquilo está ali).

Como todas as outras tríades, há níveis. Saindo do nível supremo (para) e observando o nível seguinte (apara), deparamo-nos com o 'bindu' (ponto cósmico). Aí temos três bindus formando um triângulo, sendo que o primeiro é o bindu branco onde predomina Shiva, e é a Lua; o segundo é o bindu vermelho, onde predomina a Shakti e é o Fogo; do divino matrimônio entre Shiva e Shakti temos bindu misto, e é o Sol. Os três bindus unidos recebem o nome de Kâma-Kalâ, sendo que o Sol é Kâma e os dois bindus Shakti e Shiva são Kalâ. Kâma, o Sol, é o que é objeto de desejo dos yogues. E é do Sol em sentido descendente, que vêm em kalâ-s (alguns traduziriam por aeons) todas as letras do alfabeto e, por consequência, todos os mantras.

Em um plano menos técnico, dá para entender essa tríade no seguinte sentido: das três fontes de luminosidade, a fonte que ascende desde o elemento terra em direção ao alto é o Fogo, que se relaciona com os sentidos do tato e da visão, através da luminosidade e calor. A Lua e o Sol também são fontes de iluminação, uma indireta e outra direta. E assim poderíamos associá-las nessa linha interpretativa específica às faculdades de Vontade, Mente Reflexiva e Intelecto.

Seria de se esperar que no referido simbolismo Shiva fosse solar e Shakti lunar, e poderia ser assim de fato em outro plano de análise simbólica. Mas dentro da compreensão do praticante espiritual, e desde seu ponto de vista, é necessário que a Shakti seja um Fogo e que Shiva seja a Lua, para chegar ao objeto que é o Sol. Então nunca é demais notar essas complexidades de aplicação, que não raro geram má interpretação.

Diante dessas correspondências todas envolvendo som e luz, não podemos deixar ainda de fazer uma relação com o que foi dito na última postagem, que são as características do mantra AUM e suas três fases, e também sua quarta fase que é o silêncio. Aqui, quem gosta de estudar simbolismo, de certo lembrará os textos religiosos diversos que narram uma cidade que não é iluminada nem pela Lua, nem pelo Sol, nem por nenhum tipo de Fogo, mas diretamente pela Luz Divina.