Sunday, December 23, 2018

Sobre o Raja-Dharma

Yuddhistira, o mais velho dos pândavas, após ter vencido a famosa guerra do Mahabharata, e matado muitos de seus parentes, fica melancólico e abatido. Condição semelhante à de Árjuna, já bem conhecida por meio do Bhagavad Gîtâ. 

O conselheiro da melancolia de Árjuna foi o próprio Krishna, que lhe entregou segredos esotéricos que iam muito além do horizonte da batalha dinástica. Yuddhistira recebe agora a instrução dos anciães, dos sábios, dos amigos, irmãos e o episódio gera excelentes reflexões sobre o tema do raja-dharma: a lei dos reis. 

Yuddhistira seria coroado rei por ser o primogênito do pândavas, mas fica cheio de dúvidas e medos, os racionaliza, e, diante da assembleia dos nobres, lamentando ter entrado na guerra, ter causado tantas mortes, acusa a si mesmo: diz que seria melhor terem vivido de esmolas do que desfrutar uma vitória de uma guerra por um reino material e elogia a vida espiritual dos ascetas da floresta (Raja Dharma, 7-34): 
Vergonha da conduta dos kshatriyas, vergonha da força que seus peitos ostentam. Vergonha da intolerância que nos levou a esta calamidade. Perdão, autocontrole, pureza, ausência de inimizade, ausência de egoísmo, não-violência e veracidade nas palavras devem ser louvados. Aqueles que se retiram para floresta são os que de fato praticam isso. Foi por ganância e ilusão que recorremos à arrogância e à insolência. Chegamos a esse estado por causa da nossa ânsia por um reino insignificante. Mesmo a soberania sobre os três mundos não nos deleitará agora, pois aqueles de nossos parentes que desejavam a carne da terra foram mortos. [...] nossos parentes estão mortos, continuamos vivos. Nós não somos cães. Mas feito cães, brigamos pela carne. Essa carne agora foi destruída e aqueles que desejavam comê-la também.
A fraqueza de Yuddhistira desaponta a todos, e iniciam um debate em defesa de Kama, Artha e Dharma. Ora, se o rei desistisse da vida mundana e se refugiasse na floresta como um asceta ele provaria que a batalha fora em vão, assim como a fidelidade de todos os que lutaram do lado dos Pândavas, inclusive o próprio Krishna.

Se o rei desiste de seu dharma, quem é que vai desfrutar do mundo? Quem é que vai manter a ordem da sociedade? De que valeu toda a luta? Estavam todos enganados e iludidos por egoísmo? Os capítulos seguintes trazem trechos magnânimos defendendo diferentes posições sobre o tema. O excelente Bhîma, o segundo dos pândavas, por exemplo, faz estas observações censurando o irmão:
Ó rei! Vossa compreensão se obscureceu feito a de um estudioso estúpido dos Vedas que recita passagens sem notar seu verdadeiro significado. Ó touro da linhagem de Bharata! Se é vossa decisão serdes preguiçoso e censurardes o dharma dos reis, de que nos valeu a destruição dos filhos de Dhritarashtra? Perdão, compaixão e não-violência - ninguém que trilhe o caminho dos kshatriyas é amarrado por isso, com exceção de vós! Se soubéssemos que vossas intenções eram desse tipo, nunca teríamos pegado em armas e matado. Teríamos vagado pelo mundo pedindo esmolas até o dia de deixar esse corpo, e esta terrível batalha entre os reis não teria ocorrido.
E oferece seu ponto de vista sobre o tema:
Aqueles mortos por nós eram maus. Eles eram um obstáculo para estabelecimento do reino. Ó Yudhishthira! Tendo agora causado sua morte, devemos seguir o dharma e aproveitar a terra. Somos comparáveis ao homem que, cavando um poço, desiste de sua tarefa antes de chegar à água e só fica sujo de lama. Somos comparáveis ao homem que sobe numa árvore alta para colher mel, mas cai e morre antes de conseguir obtê-lo. Nós somos comparáveis ao homem que começa uma grande jornada com grandes esperanças, mas que se desespera e retorna. Ó supremo da linhagem de Kuru! Nós somos comparáveis ao homem que mata seus inimigos e depois se mata. Nós somos comparáveis ao homem que tem fome, mas tendo obtido comida, desiste de comer. Somos comparáveis ao homem movido pelo desejo, que se casa com  uma mulher bonita, e não realiza o ato. Somos nós que devemos ser censurados, sim. Somos nós que somos estúpidos, ó rei! Ó descendente da linhagem de Bharata! Nós vos seguimos porque sois o mais velho.  Nós temos a força das armas! Nós cumprimos o nosso aprendizado! Mas agora seguindo as palavras de um eunuco, nós nos tornamos também impotentes! Nós somos o refúgio daqueles que não têm refúgio. Mas agora nossa prosperidade será destruída e nossos objetivos não serão bem-sucedidos. Quando o povo nos vir nessa condição o que pensarão? [...] Aqueles que têm sabedoria não recomendam a renúncia em uma situação como essa. Aqueles que têm discernimento entendem que a renúncia nesse caso é uma transgressão do dharma. Portanto, como podeis deixar-vos cair num estado não recomendável para vossa estatura?
A discussão segue e Vaishampayana, um dos narradores famosos, também censura o rei:
Ouvi, ó rei. Por causa da vossa confusão, tudo está agora incerto. Estamos todos perplexos e fracos. Sois o rei do mundo. Sois realizado nos textos sagrados. Como podeis ser derrotado pela confusão e tristeza agora, como se homem inferior fosseis?
Árjuna também o desaconselha a abandonar o raja-dharma:
Ó grande rei! Conquistai o mundo conquistando vossos sentidos e dai suporte aos ascetas que se vestem de ocre, aos que vivem na floresta vestidos com peles de animais, aos que andam vestidos em farrapos, aos que andam nus, aos que raspam a cabeça, aos de cabelos engrenhados. Quem é nesse mundo superior àquele que mantém aceso o fogo sagrado, realizando sacrifícios e fazendo doações? Dia após dia, dar suporte [ao mundo]. Não há dharma superior a esse. 
Vaishampayana nos lembra poeticamente do dharma do tempo (Kalâ):
Ó rei! Lembrai-vos do dharma dos kshatriyas e não vos entristeçais inutilmente. Ó touro entre os kshatriyas! Foi seguindo seu próprio dharma que aqueles outros kshatriyas foram mortos. Eles desejaram prosperidade completa e fama na terra. Eles seguiram a lei da morte e, foi pela lei do tempo que foram mortos. Eles não foram mortos por vós, Bhîma, Árjuna ou os demais. Seguindo o dharma do tempo, esses seres vivos desistiram de suas vidas. O tempo não tem mãe nem pai, nem é parcial com esse ou aquele. Ele é testemunha dos atos cometidos. Touro entre os homens, vós fostes instrumento do tempo.  O tempo, senhor de tudo, usa os seres para matar outros seres. O tempo é a essência das ações, o tempo é testemunha do bem e do mal. O tempo traz felicidade e infelicidade. E é o tempo que produz os frutos.
A discussão é rica e tem diversas histórias e ensinamentos (como todo o Mahabharata), e termina por estabelecer o raja-dharma e a dimensão apropriada dos purusharthas. Ao longo do caminho, argumentos persuasivos dos dois lados (a favor e contra a renúncia) ganham voz, inclusive alguns argumentos adhármicos, para reflexão. 

O conceito de danda ou cajado chama a atenção. O cajado é o arquétipo da justiça e da punição-- pode ser interpretado de muitas formas e em muitos contextos também, não deve ser transposto mecanicamente para teorias políticas do dia. Apenas notemos que em alguns casos o ahimsa, considerado dharma supremo em várias partes do Mahabharata, é rejeitado justo por ser nocivo ao dharma. 

A discussão, para quem vive no nosso contexto contemporâneo, mostra ao menos que o dharma é complexo, não é uma cartilha com respostas fáceis. A discriminação parte sempre de um fato concreto, de uma dor, ou de um problema existencial, que vai ser  debatido pela comunidade dos sábios, exposto a diferentes pontos de vista. A fraqueza humana de Yuddhistira, o rei do mundo, o supremo conhecedor do Dharma, também nos ensina boas lições.

É bom notar que muitos instrutores espirituais de hoje ignoram os diferentes dharmas aplicáveis a diferentes naturezas, e pregam uma via 'espiritual' isolada do contexto real da vida das pessoas, como se todos devessem seguir ideais abstratos, amputando em absoluto sua 'agressividade' em prol de ideais de docilidade e conciliação, o que nem sempre é dhármico. 

O próprio Yuddhistira, ao final, trata de colocar as coisas em perspectiva correta, observando que não é possível renúncia alguma quando o sujeito está tomado por dúvida ou dominado por ignorância e escuridão, mas só quando o intelecto, vendo claramente, estabelece um sankalpa, uma resolução:
A resolução é a base de tudo. A resolução diz respeito a objetos materiais. Todos os objetos materiais obtém sucesso ao serem adquiridos. Estes formam a base para os três purusharthas. Moksha é sair do mundo. O dharma protege o corpo e o artha é desejado por causa do dharma. Kama leva ao prazer sexual. Mas tudo isso é pó. Deve-se buscar o purusharta que estiver ao alcance e não apenas descartar mentalmente. Começando a busca com o dharma e terminando com kama. A renúncia só deve ocorrer quando a pessoa estiver livre de tamas. (Raja Dharma, 123)