Saturday, August 25, 2018

Sobre o conceito de Tradição

Há tempos nesse blog, eu não em exato defendia, mas usei instrumentalmente, e era simpático à noção de Tradição em René Guénon. Hoje quero desfazer essa minha associação, assim como fiz em relação ao tema do "punarjanman" (renascimento) em série de postagens antiga. Vamos lá.


Guénon entende que a 'Tradição' tem três elementos fundamentais¹:  

1) Unidade transcendente: pois o princípio da realidade mesma é único.
2) Vínculo sobre-humano: a tradição não se vincula a iniciativa nem a acréscimo humano.
3) Transmissão: a tradição é uma cadeia ininterrupta desse vínculo sobre-humano.

Algumas questões de ordem epistemológica:

1) Que "o princípio da realidade é único" é admissível; mas

a) não implica que as religiões enquanto tais tenham necessariamente o mesmo vínculo com esse princípio. E há o risco do argumento circular, tradições estão ligadas a essa unidade porque são verdadeiras, e são verdadeiras porque estão ligadas a essa unidade.

b) que algo seja verdadeiro em si mesmo não implica que seja necessariamente e imediatamente evidente para outros.

Portanto, a alegação de uma tradição de estar vinculada ao princípio único, sob qualquer título, não é imediatamente óbvia, e essas alegações precisariam ser substanciadas por 'pramânas', ou seja, meios de prova e conhecimento. 

2) Que uma tradição alegue vínculo a uma realidade sobre-humana cai no mesmo problema epistemológico anterior, e cai também no problema de ignorar distinções e meios cognitivos para perceber distinções entre o conjunto das realidades sobre-humanas mesmas, pois há realidades sobre-humanas provenientes de diferentes pontos da realidade total, e todos esses pontos fogem igualmente do escopo da empiria e da lógica. 

3) Que toda tradição legítima tenha vínculo com realidade sobre-humana é uma declaração de ordem geral, que nada diz sobre a natureza mesma desses vínculos na ordem prática, e não dá um critério para comparar os diferentes vínculos, bem como a distinção entre uma vinculação alegada ou real ².

4) Se Guénon quer dizer que somente o sobre-humano reconhece o sobre-humano, então a tradição como meio de transmissão perde o sentido, pois o sobre-humano seria separado sempre e necessariamente, com cisão ontológica, de a ordem humana, e se comunicaria apenas consigo mesmo, e não com outro.

Algumas questões de ordem lógica e de autoridade:

1) O fato de que uma suposta tradição tenha vínculo com ordem sobre-humana, não implica necessariamente que a disposição ou as relações entre a ordem sobre-humana e a humana se deem somente por meio das tradições (no sentindo implicado na teoria guenoniana) em todos os casos. 

Guénon nesse ponto compara as tradições com a reprodução biológica, ou seja, o homem espiritual ou iniciado só pode nascer, nas condições desse mundo, pela causa eficiente da tradição, ainda que metafisicamente possa haver uma 'geração espontânea'. 

Ora, a questão novamente depende da definição de tradição: se a tradição é sempre o 'corpo' ou 'veículo' visível, ou se a tradição é o princípio supremo mesmo que se faz presente simultaneamente e todos os pontos do tempo. 

Se a tradição é só o 'corpo visível', ele tem de estar visível desde sempre na ordem imanente, ou seja, tem de ser uma linhagem visível que remete ao Criador do universo (e guru primordial) e não uma revelação ou intervenção posterior, uma vez que revelações posteriores nem sempre (como é facilmente observável) têm unidade histórica harmônica com as anteriores³.

2) Se Guénon alega que as críticas entre as tradições se dão somente em plano externo ou acidental, teríamos que questioná-lo se os dogmas cristãos ou muçulmanos, no que concerne à rejeição de outras tradições e fatos históricos fundamentantes, são um plano acidental ou essencial, e negar que eles são essenciais vai contra a interpretação ortodoxa. 

3) Se Guénon diz que a interpretação ortodoxa dos dogmas se dão em dois planos (exotérico e esotérico), ele teria que apontar o corpo tradicional visível que o interpreta em plano esotérico. Como os próprios intérpretes superiores desses dogmas não aceitariam a visão guenoniana, ele teria de se voltar ao ocultismo, ou seja, a alegação de que a interpretação legítima está de posse de pessoas ocultas ou inacessíveis, e afirmar também que a autoridade do Guénon se dá porque ele tem acesso (não ideal ou espiritual, mas concreto) a essas pessoas ocultas.

4) Se Guénon tem acesso a essas pessoas ocultas, vinculadas à tradição primordial, e que afirmam, e podem provar, que todas as tradições são iguais inclusive no que diz respeito aos dogmas conflitantes do Islam e Cristianismo, ele ou pode prová-lo (e não o prova) ou exige argumento de fé ou autoridade, e se coloca na posição de revelação, ou, como ele o faz normalmente, diz que a questão só pode ser compreendida por meio de intuição intelectual para quem é qualificado, o que torna fútil escrever livros com conceitos, uma vez que os qualificados já o perceberiam e não precisariam desse auxílio rudimentar.

Proposições que aceito hoje em dia:

1) A Tradição perene (Sanatana Dharma) é somente aquela que é coexistente com o tempo mesmo, e não a que coexiste com determinada parte do tempo ou somente se manifesta como eternidade (acima do tempo) e transcendência. Qualquer tradição que alegue ter sido fundada em ponto histórico específico, implicando que a tradição anterior tenha sido eliminada ou quebrada, não pode alegar ser concretamente o Sanatana Dharma, ainda que possa ser uma tradição espiritual em diferentes graus e com diferentes objetivos.

2) Segundo a autoridade hindu, ilustradas nos Purânas, as tradições espirituais diversas podem ter diferentes níveis de erros e acertos em suas alegações de vínculo com a Unidade, e podem desempenhar diferentes papeis na ordem total, inclusive papeis de ordem assúrica, ou papeis contingentes, "lîlâs" diversas, e não precisam seguir uma expansão ou desdobramento geométrico  de necessidade como a obra do Guénon indica.

3) A intuição espiritual, pode ocorrer, e tem de ocorrer a cada geração, através do indivíduo por meio de experiência direta (anubhava) em estado de samadhi, como está explicado nos Yoga-Sûtras, a ser validada pela tradição (shastra-pramâna) e pelo 'peer-review' de pessoas qualificadas (apta-pramâna), uma vez que esse anubhava pode assumir diferentes pontos de vista (inclusive errados) à medida em que o yogue desce do samadhi e articula sua experiência com os planos grosseiros da linguagem.



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Notas

1. "Le Dictionnaire de René Guénon" de Jen-Marc Vivenza. Verbetes 'Tradition" e "Tradition Primordiale"
2. Inclusive, o vínculo, para dar uma ilustração extrema, poderia ser meramente ontológico, como o de uma pedra enquanto realidade ontológica contingente, por exemplo, se vinculando à realidade total enquanto objeto existente.
3. Se fossemos pegar a coisa do ângulo cristão, esse conceito de tradição poderia se confundir com a noção de transmissão do pecado original mesma, pois o pecado seria o único contemporâneo do tempo.