Sunday, December 24, 2017

Encontros entre cães e homens

Diógenes e os cães
Estou lendo o livro 'The Cynics" de William Desmond. As informações sobre a escola filosófica, em si mesmas, são preciosas e dão substância para pensar - a busca da desonra, a renúncia ao costume, a sinceridade brutal, o viver de acordo com a natureza, posturas filosóficas que trazem consigo possibilidades prolíficas para a compreensão de si, e principalmente das relações entre a liberdade humana e as instituições sociais. Como é o meu primeiro livro sobre o tema, não tenho lá como avaliá-la comparativamente, mas a associação etimológica, semântica e 'ética' (se for possível) dos cínicos com os cães me deixou pensando, e dá para desnovelar algumas coisas... 

Lembrei, por exemplo, que Maomé em certa ocasião mandou matar todos os cães. Depois voltou atrás e permitiu que se preservasse os de caça. Parece que não gostava dos cães pretos em  especial. E parece que os associava a coisas ruins. Em várias citações, ele diz que manter um cachorro afasta os anjos e anula os méritos religiosos.

Parece que o cão materializa algumas relações simbólicas interessantes: não descartemos, por exemplo, as célebres associações populares entre o cão e o diabo, que é inimigo do homem, ao mesmo tempo em que em outros contextos o cão é chamado de melhor amigo. Parece que a figura do cachorro 'dá voz' e articulação (por vezes complexas) ao Amor e Rigor, Chesed e Geburah -- encontros de Água e Fogo, alguns diriam. 

O cínico grego, por exemplo, era um cão. O nome realmente significava isso. Era um homem que usava o modo de vida dos cães para criticar a sociedade. Assim, adotavam modos de vida desonrados, contra os costumes de seu tempo, e denunciavam sarcasticamente a riqueza, a corrupção e a vaidade da sociedade. Diógenes, o mais famoso, com o tempo tornou-se dessas biografia mitológicas e sobre-humanas.

A mitologia grega também tem uma figura notável, e cuja aura simbólica dificilmente seria ignorada pelos cínicos mesmos, de Cérbero, o cão de três cabeças que guardava a porta do Hades. O último trabalho de Hércules, protótipo da vida heroica, foi capturá-lo trazê-lo à superfície, então é algo a se levar em conta.

Hércules e Cão do Hades
Alexandre, bem menos heroi que Hércules, em seu encontro com o cão Diógenes, talvez por falta de empenho ou por estar embriagado com a contemplação de sua própria glória, não chegou a ganhar um rosnado consistente do cão, que, parece, apenas solicitou, com um gesto (ou talvez um resmungo curto), que o imperador saísse da frente do sol.

Na tradição grecorromana dos cães temos figuras notáveis, algumas são de fato melhores amigos do homem, outras nem tanto. Demonax, cipriota, cínico, era um grande amigo dos homens: filantropo e pacificador. A única fonte sobre sua vida vem do sátiro Luciano de Samósata, onde o filósofo é descrito, com aquele entusiasmo incontido dos hagiógrafos, como um sábio irrepreensível que amava a humanidade. E o amor parece que era inclusive correspondido: 
"Não somente Atenas, mas toda a Grécia, amava-o tanto que quando ele passava, os grandes cediam-lhe seus lugares, e um silêncio geral se estabelecia. Ao fim de sua longa vida, costumava entrar na primeira casa que se apresentasse sem ser convidado, ali jantava e dormia, e a família considerava-o como um ser celestial que lhes trazia bênçãos. Quanto partia, as mulheres disputavam a honra de lhe oferecer pães, e feliz era aquela que ganhasse a disputa. As crianças chamam-lhe pai e ofereciam-lhe frutas."
Caminhava desimpedido nas ruas de Atenas conclamando as pessoas a viverem no presente e a abandonarem as preocupações, a busca desenfreada de riquezas, reconciliava os inimigos, fazia as pazes entre esposas e maridos, e exibia uma felicidade incontida onde quer que fosse. Desprezava os ritos e iniciações secretas e devoções ritualísticas e ficou famoso pela frase "se os mistérios fossem ruins, ninguém deveria ser iniciado, se fossem bons eles deveriam ser divulgados a todos".

Se Demonax ganhara a simpatia e devoção de Luciano, o caso não era igual para o outro cão, mais raivoso: Peregrino Proteu tinha muitas formas e  reaparecia em diferentes lugares, como seu nome não falha em indicar. Vivera na Palestina junto aos cristãos, narra-se, e ganhou entre eles notoriedade, respeito e até dinheiro. Luciano, mais adepto dos mansos que dos raivosos, lhe é francamente desfavorável, acusando-o de parricídio, de tornar-se cristão para ficar rico, de insultar ricos não-cristãos, de ser indecente, de ir para a prisão para ganhar fama, e até de ter se matado na pira olímpica para coroar sua vida infame vida, louca vida. Aulo Gélio, outra fonte, discorda de Luciano, indicando que Peregrino era 'homem constante e sério'. Diz que o filósofo grego pregava os mesmos princípios dos cínicos e estoicos de todos os tempos - honestidade e amor à justiça divina. 

Diz a lenda que Demonax nunca teve um só inimigo, ao passo que Peregrino teve-os inúmeros.

William Desmond comenta sobre uma refinada interação entre os dois:
Em um diálogo, Peregrino criticou Demonax por rir demais: ele não era sério o suficiente para ser um Cínico. "Você não é um cachorro" [sinônimo de Cínico], disse Peregrino. "E você", respondeu Demonax, "não é um ser humano", querendo dizer que o Cinismo de Peregrino era muito severo.
Ambos, no fim das contas, no exercício de sua vontade canina, suicidaram-se: Peregrino, jogando-se na pira dos jogos olímpicos, Demonax, ao modo dos jainas hindus ou gimnosofistas (que é uma influência possível, inclusive) jejuou até bater as botas.

E ao falar em gimnosofistas, sou obrigado, dada a minha concentração frágil, a pular da Grécia para a Índia, e falar dos avadhutas: andarilhos nus, com cinzas no corpo, acompanhados por cães e descompromissados, por vezes hostis às formalidades da sociedade bramanista e seu complexo sistema ritualístico. E não podemos deixar de citar também o Dattatreya, avatar de quatro cabeças, símbolo do indivíduo livre, do liberto vivo (jivanmukta),  acima das quatro castas (ativarnashrami) e sempre acompanhados pelos seus cães.
Dattatreya e os cães
Ainda que bastante diferentes entre si, os encontros entre Alexandre e Diógenes e entre Demonax e Peregrino, têm de nos levar de regra, ao menos aqui nesse blog, ao clássico episódio em que Adi Shankara, reformador do sistema devocional hindu, e que caminhou por toda a Índia medieval resgatando o Dharma, foi obrigado, num dia qualquer, a se deter justo diante de um chandala ou cão, e foi impulsionado, pela força do Espírito, a tocar-lhe os pés e reconhecer naquele que era seu antagonista na ordem dos papeis mundanos, o próprio Shiva em sua forma irada de Bhairava.

Adi Shankara encontra o chandala e seus cães
E por que não trazer aqui também, sob o risco de ofender os religiosos, a santidade canina de São Francisco de Assis, e seus desencontros e dissabores com a hierarquia católica -- narra-se inclusive seu encontro com o Papa Inocente III, que, talvez impulsionado por uma força superior, beijou os pés do chandala italiano, reconhecendo-lhe a santidade.

Santidade Canina de São Francisco
Desmond nota que a tradição dos cínicos, como toda tradição, protocolar ou não, foi perdendo sua essência e seu vigor à medida que destacou-se do seu chamado ascético, missão que segundo alguns viera de ordens oraculares do próprio deus Apolo.  Passaram a reunir bandos de vagabundos, preguiçosos e homens de tendência imoral, criando infâmia inclusive ao 'filósofo' em geral, que virou persona non grata no meio do povo. Isso talvez tenha justificado gradualmente a mudança  de significado do termo cínico, que na atualidade indica o sujeito egoísta, desumano e indiferente ao sofrimento. 

O imperador Juliano, último bastião da civilização grega, aceitava os cínicos como parte da grande tradição filosófica que buscava resgatar, contudo estava consciente de que o movimento havia se degenerado. Ainda há no oriente tradições semelhantes aos cínicos -- entre os pashupatas e jainas, muitos dos costumes adotados pelos cínicos gregos ainda vigoram (mas há lá também a mesma degeneração apontada pelo antigo imperador). No ocidente deixaram suas marcas entre os cristãos, entre os livres pensadores modernos, na sátira, no humor, na crítica social e pode-se dizer que suas atitudes se incorporaram definitivamente no ethos do homem ocidental, para o bem ou para o mal, na saúde ou na doença.