Saturday, December 30, 2017

Escandalizando culpados e inocentes

[Jacob Jordaens, 1642] 
Quero ler Luciano de Samosata, mas terá de ser bem no futuro. Pelo que vi, ele, além de ter ficado famoso por ter dito que cristãos seguiam um 'sofista crucificado', escreveu inúmeros diálogos filosófico-satíricos que mantêm uma relação temática e estrutural muito próxima com as farsas e autos medievais, sendo a provável inspiração destas. Nos diálogos do retórico siríaco, que escrevia em grego mesmo vivendo sob o Império Romano, aparece não raro o filósofo cínico como personagem fundamental. Muitos dos diálogos têm sátiras à religião popular, denúncias da hipocrisia dos costumes e da busca desenfreada pela riqueza, poder e fama. E isso me traz de novo ao cinismo.

O filósofo cínico, desvelador da hipocrisia, e que conseguiríamos até ajeitar dentro do arquétipo junguiano do tolo, é marcado nitidamente pela imagem de Diógenes com uma lâmpada acesa em pleno o dia buscando um 'ser humano' no meio da multidão. A imagem (que encabeça nossa postagem) desvela também que, de certa forma, o cínico tem uma espécie de sacerdócio ou missão ao mesmo tempo escandalosa, inevitável e quiçá necessária. 

Epiteto, o famoso estoico  (e há uma estreita relação entre os dois movimentos), simpatizava com o cinismo, e alguns dizem que era um cínico moderado. Consultado por um discípulo sobre como tornar-se um seguidor de Diógenes, afirmou que 'levar a cabo tão grande empreendimento sem Deus' é tornar-se 'odioso aos olhos de Deus'. Dizia o estoico ex-escravo que quem optasse pelo cinismo deveria eliminar em si toda autopiedade, luxúria, desejo de reconhecimento e deveria tornar-se, por fim, um cidadão cósmico, não amparado pela privacidade das paredes das casas, e nem mesmo pela privacidade confortável das roupas. O cínico rompe, diretamente, de forma brutal e escandalosa, com as paredes até mesmo da pólis e, por conseguinte, com a noção peripatética de 'animal político'.

O Bhagavad Gîtâ, infalível manual espiritual, diz que o sábio não deve perturbar as pessoas. A  mesma recomendação é dada por Jesus, em outro contexto, ao pedir que os inocentes não sejam escandalizados, e talvez ainda num sentido mais especial, os pitagoristas, como é registrado nos Versos Áureos, se dispunham a seguir estritamente a lei e a ordem social e os costumes, e por conseguinte a religião, de onde estivessem. O 'chamado' do cínico, por outro lado, vem de uma dimensão espiritual que permanece selvagem: existe e se sustenta fora da fundação da civilização e constantemente escandaliza a sabedoria constituída pelas instituições, em geral engessadas.

As memórias hindus contam que Shiva é o fundador da tradição marginal que segue sempre paralela às tradições mais domesticadas como a tradição de Vishnu e do Prajapati. Assim, a casa tradicional de Daksha, brâmane por excelência e descendente direto do Demiurgo de quatro cabeças não poderia aceitar Shiva, um yogue obscuro. Contudo, Sati, a filha do brâmane, acha de se apaixonar justo por Shiva, e, para ganhá-lo como esposo, a moça de família tradicional, teve de virar uma asceta, abandonando a sociedade e o luxo, jejuando e passando por inúmeros sofrimentos até que o Mahadeva fosse persuadido a aceitá-la como esposa, reconhecendo suas motivações sinceras. O conflito legendário se instaurou de forma aguda, pois Daksha não aceitava, e impedia, que sua filha buscasse um noivo fora do sistema de castas e da tradição. Por fim, Sati se imola no fogo, atraindo sobre seu pai a ira de Bhairava (o mesmo que teria encontrado Shankârâcharya na figura de um chandâla no episódio da postagem anterior). A ira do Deus de três olhos diante da imolação de Sati tornou-se memória muito importante para a fundação de várias vias espirituais na Índia.

Vimos que Peregrino, o cínico, também se imolou na pira olímpica. E vemos inegáveis conexões entre as tradições shramânicas, xátrias, rebeldes, tão diferentes entre si quanto os ajîvitas, pâshupatas, jainas e budistas, que para os gregos eram todos 'gimnosofistas', e as escolas filosóficas marginais que surgiram na Grécia adotando práticas como vegetarianismo, nudismo, ascetismo rigoroso e cosmopolitismo (e o nomadismo, de certa forma). E para lançar mais suspeitas de uma possível conexão, basta lembrar aqui a mítica viagem do pitagórico Apolônio de Tiana à Índia para conhecer os segredos esotéricos dos brâmanes, que, dizem, se tornavam deuses.

Em postagem anterior mencionei a impressão que me causam os encontros entre os homens (notáveis) da pólis, que moram sob um teto, e os cosmopolitas, que vivem sob a estrelas. Há inúmeros registros desse antagonismo arquetípico, indo desde o encontro entre Alexandre e Diógenes, até a situações em que o mesmo antagonismo se dá entre dois homens que vivem ambos sob as estrelas como o caso de Demonax, que é muito amigo dos homens, e Peregrino, que nem humano é. Testemunhos jainas narram também, em outro contexto, as interações entre Mahavîra e Goshala (representado às vezes como louco, mago negro e criminoso sem escrúpulos), e por que evitar citar até mesmo a óbvia referência de Abel e Caim?

Se os registros, precários, dizem que os cínicos vêm do ordenamento de Apolo, arriscamos, pela nossa intuição visceral perfeitamente infundada cientificamente, a ir contra essa informação. De fato, Apolo pode ter ordenado a linhagem de seus irmãos mais modestos e sociáveis, os estoicos, cosmopolitas mas não 'antipolistas', mas os cínicos se apresentam muito mais como representantes de Dionísio -- mas longe de mim a pretensão de amarrar aqui nesse blog o assunto ou colocá-lo dentro de antinomias invencíveis, apenas divago e sugiro.

O cínico quer dizer, a seu modo, que, se por um lado não se deve escandalizar os inocentes (ai daquele pelo qual o escândalo vem!), é preciso sim escandalizar constantemente os 'culpados'. E nesse sentido, assim como ocorreu com os descendentes de Caim, os causadores do escândalo dispõem, e fazem bom ou mau uso, de um tipo de 'passaporte especial' (marca na testa?), que impede que eles sejam descartados completamente ou submetidos pela pisada altiva dos chamados sábios, no sentido mais institucional. E o que é a 'liberdade de expressão', institucionalizada nas nossas democracias modernas, se não uma homenagem póstuma (ou talvez tentativa de domesticação póstuma, se tal houver) desse movimento, e um reconhecimento indireto da salutar presença dos discordantes e escandalosos na civilização?