Tuesday, December 26, 2017

O renascimento segundo o Veda (Parte II)

Nessa segunda postagem sobre o ponto de vista védico sobre o renascimento, vou apresentar alguns conceitos úteis, mas antes de prosseguir, é de bom tom notar que os chamados quatro caminhos não esgotam as possibilidades de post-mortem. E, na verdade, se o Veda ensina a doutrina dos cinco fogos, é  somente com o objetivo de criar desapego diante do ciclo de renascimentos; Swãmi Paramârthânanda observa que o Veda não quer nós saibamos todas as possibilidades post-mortem e não se deve crer que conhecemo-las todas.

Os cinco lokas e os cinco agnis

O  Swâmi Paramârthânanda diz que, do momento em que o jîvâtman deixa o corpo, ele vai migrar pos 5 estações ou lokas, e em cada loka recebe a assistência de Agni (fogo) para transformar-se e poder passar para o loka seguinte, esse processo é comparável ao de um de cozimento de alimentos, o Swâmi observa ainda que os lokas não são lugares físicos, e nunca é demais notá-lo.

Os cinco lokas no processo descendente (mais à frente vou colocar o ciclo completo) são chamados respectivamente swarga (céu), mega (núvem), bhumi (terra), purusha (homem) e nari (mulher). Em cada um desses estágios o envoltório aquoso (explicado na postagem anterior), através do fogo, se transforma: no swarga o envoltório chamado jalam (água) se converte em néctar (soma); a segunda conversão, na nuvem, é o néctar para chuva (vristi), a terceira conversão ocorre na terra e é a conversão da chuva em alimento (anna), a quarta conversão ocorre no homem, é a conversão do alimento em sêmen (bîja), a quinta conversão ocorre na mulher e é a conversão do sêmen em envoltório sutil que é chamado de homem (purusha).

Temos então o quadro dos cinco agnis:

1.  Swarga = Jala > Soma
2. Mega = Soma > Vristi
3. Bhumi = Vristi > Anna
4. Purusha = Anna > Bîja
5. Nari = Bîja > Purusha

Toda passagem por Agni é chamada de ahûti (libação), de maneira que cada um dos estágios da transformação é realizado por devatas que são os senhores do karma, e que cuidam do funcionamento ou harmonia cósmica. Isso vem em resposta à pergunta feita à Svetaketu no Chândogyopanishad:
Ch.Up.V.3.3. [...] você sabe por que na quinta libação a água é chamada de homem?

Conhecimento não-humano

Swâmi Paramarthananda citando Vyasadeva diz que todo esse tema é apaurusheya, não é possível inferi-lo logicamente, nem demonstrá-lo por meios empíricos, portanto, qualquer pretensão de fazê-lo que não seja pela autoridade do Veda é falha. 

A psique não se dissolve

É importante também ressaltar que o jîvâtman não pode existir sem o sopro vital (prâna), de maneira que a jornada do jîvâtman tem de ser feito com esses envoltórios, e isso é declarado nas escrituras. Não há dissolução dos prânas após a morte, eles continuam associados ao jîvâtman, portanto as afirmações védicas de que as partes sutis do homem retornam à natureza têm de ser entendidas metaforicamente. 

Ademais, outro ponto importante é que o jîvâtman, migrando acompanhado dos prânas, leva consigo já o germe do corpo físico que será gerado, isso significa que o jîvâtman não deixa o tecido geral do cosmos e depois 'entra' em um novo corpo, mas aquele novo feto gerado, desde antes de ser gerado, já é o jîvâtman, existe uma integração ou articulação harmônica entre os 5 fogos, de forma que inclusive o fogo sexual que une o homem e a mulher faz parte do mesmo processo kármico e é unificado no tecido cósmico.

Uma coisa interessante de se observar, e insiro aqui minhas próprias reflexões, é que esse ciclo, ou caminho da fumaça, está integrado dentro de um sistema ou ecologia ritualista muito precisa e muito específica, de maneira que, é possível pensar que os povos ou pessoas que não dispõe dessa tecnologia, não vão até a esfera lunar e não renascem como humanos, mas que vão para os mundo subterrâneos, até que por ventura lhes surja uma oportunidade de participar desse ciclo e adquirir a condição humana.

Ainda uma observação sobre o fato de que ao chegar na esfera da lua os ritualistas são comidos pelos devas. Obviamente, observa Swâmi Parmârthânanda os devas não comem nem bebem, eles apenas entram em contato com seus objetos, no caso o jîvâtman convertido em néctar, e obtêm a satisfação.

Os três tipos de karma.

E nesse ponto é preciso distinguir os três tipos de karma para compreender melhor. A ilustração tradicional é a de um arqueiro atirando flechas: as que estão na sua aljava são chamadas sanchita-karma, ações que estão acumuladas mas cujos resultados não se manifestaram ainda, a flecha que foi atirada (e que não pode mais ser parada) é chamada de prarabhda-karma, ações que estão frutificando e vão frutificar necessariamente, e a flecha que está no arco, prestes a ser atirada é chamada de agami-karma, que são as ações que estão sob nosso controle e dependem do arbítrio. A migração vai ser determinada pelo sancita-karma e o agami-karma, assim como a existência atual é determinada pelo prarabhda-karma. Os animais estão sofrendo o seu prarabhda e têm sanchita (que vai definir o próprio nascimento) também, os devas estão desfrutando do prarabhda e também tem sanchita, a diferença do ser humano está em que ele está experimentando o  prarabdha (bom ou mau) e tem a seu dispor tanto o sanchita e como o agami. 

A tecnologia ritualística e social para obter o swarga

E aqui já dá para notar que sistema de varnâshrama tradicional, que hoje está decadente, foi uma tecnologia de gestão do karma baseado no conhecimento védico, e sua degeneração já preocupava  Árjuna no Bhagavad Gîtâ:

B.Git. I.40-41. Na destruição da kula, o Dharma eterno da kula desaparece. Quando o dharma desaparece, o adharma domina toda a kula. Com a ascensão do adharma, as mulheres da kula são corrompidas, quando as mulheres são corrompidas as castas são misturadas. A mistura das castas leva ao inferno os destruidores da kula, e os ancestrais da kula (pitr) caem, sendo privados dos rituais (com arroz e água).

Boa e má conduta (carana)

Para encerrar essa parte (pensei que concluiria em duas, mas vai ser necessário algumas postagens) há uma discussão técnica entre os âchâryas sobre se somente os de boa conduta ascendem ao swarga, e se, afinal, o que define a decida é a conduta (carana) ou o karma, bem como qual é a diferença entre os dois. Essa discussão técnica é pouco proveitosa para nossos fins, então vamos pular. Ademais, é suficiente entender que boa conduta aqui deve ser entendida dentro do escopo dos chamados mahayajñas em geral sintetizados em 5 obrigações que o ser humano tem em relação ao semelhante, aos cosmos e a si mesmo. 

Os âchâryas em geral concordam que aqueles que tiveram má conduta (ou karma, caso sejam sinônimos, o que alguns defendem) vão para o mundo da escuridão de yama para purgar ou sofrer o karma, e depois ascendem (para esse mundo e não para chandra-loka) ou há aqueles que descem ainda mais.

Madhwâcharya têm uma opinião peculiar que vale a pena colocar aqui: ele diz que é possível que o jîvâtman desça e se embrenhe nos mundos infernais de tal forma que não seja mais possível sair. O âchârya enumera  5 infernos principais dos quais se pode escapar - Raurava, Maha-Raurava, Vanhi, Vaitarani e Kumbheepaka e descreve os outros dois, que são perenes: Tamas e Maha-Tamas, nesses últimos prevalece a 'dor absoluta', sem traço de prazer algum.


(Leia também a terceira parte dessa postagem)