Wednesday, February 14, 2018

Ponto de partida e ponto de vista

Na ocasião em que o rishi Yajñavalkya cumprira enfim seus compromissos sociais, segundo o sistema védico de ashramas, e decidira se retirar para a floresta, consultou suas duas esposas, Maitreyî e Kâtyâyanî, a respeito da divisão da herança. 

Maitreyî contudo questionou a herança que lhe cabia: "o que eu vou fazer com riquezas mundanas, se eu não atingir a imortalidade"; e é então que o rishi lhe ofereceu a instrução sobre os temas essenciais do vedânta, e é também aí que se encontra a injunção definitiva sobre a função do pensamento humano em suas diversas fases: se há uma verdade a ser descoberta por qualquer esforço (filosófico ou religioso) ela deve seguir o preceito do Bhridarânyâkopanishad (4.5.6):
"Âtmâ vâ are drashtavyah shrotavyo mantavyo nididhyâsitavyo Maitreyi; Âtmani khalv are drshte, shrute, mate, vijñâte, idam sarvam viditam"
Em verdade, ó Maitreyî, é o Âtman que deve ser visto, que deve ser ouvido, é sobre ele que se deve refletir com a mente, é sobre ele que se deve meditar; quando se escuta sobre o Âtman, quando se reflete sobre ele, e quando ele é conhecido, todas as coisas são conhecidas.
Em algumas civilizações como, por exemplo, a grega, a filosofia, ainda que atinja eventualmente alturas insuspeitas, no seu impulso original traz sempre uma marca humana como o 'assombro' ou o 'desejo de saber' (há controvérsias, mas o que temos historicamente é isso). O ponto inicial da filosofia portanto parece bem diferente da ponto inicial das darshanas hindus pois o filósofo, ainda que parta eventualmente da mesma dúvida e anseio de Maitreyî, não se vincula a um Yajñavalkya, por assim dizer.

O que se conhece entre os hindus como darsána âstika, ou seja, um ponto de vista legítimo, é a iniciativa de buscar um saber que desde seu próprio ângulo ofereça o conhecimento do Âtman, e não mero conhecimento 'sobre todos esses seres' (sarva-bhûtani). Não há assim uma empresa cega, sem saber aonde vai chegar -- a sabedoria tem de levar também a uma realização intimíssima, como indica a origem do termo Âtman (que é também pronome reflexivo), através do qual todas as outras coisas são conhecidas.

A demonstração racional é fincada na intuição fundamental, previamente definida por meios não-humanos, e a 'empresa filosófica' deve ser também entendida na perspectiva de uma tradição particular em que esse conhecimento já trouxe o 'resultado' desejado para outras pessoas no passado, do contrário estaríamos penetrando numa selva escura  sem nenhuma orientação.

Os três estágios formativos, tanto da realização pessoal do Âtman, como da composição estrutural de uma darsána âstika são 

a) Shravana (escutar ou receber a informação de origem não-humana), esse primeiro estágio seria suficiente se o sujeito, ao ouvir ou receber a informação, tivesse fé (shraddha); contudo, dadas as limitações humanas isso não ocorre -- as pessoas têm diversas dúvidas sobre a validade ou sobre a natureza desse conhecimento. 

b) Manana (refletir usando a mente racional): o conhecimento de origem divina tem de fazer sentido segundo os critérios humanos, e daí que ele é digerido segundo a razão e de maneira não conflitiva com ela. Não teria valor algum em aceitar coisas que não dizem respeito a nada conhecível pelos humanos.

c) Nididhyâsana (reflexão continuada e intensiva): alguns autores entendem que metodologicamente esse estágio implica verificar na prática, repetidamente, cruzando métodos confiáveis e testados tradicionalmente, para ter certeza de que esse conhecimento funciona, e isso é chamado de nididhyâsana. 

Esses três estágios, com peculiaridades adaptadas a pontos de vista, e visando o conhecimento do Âtman, é o que pode ser chamado em geral de darshana. Aqui teríamos um problema com a darshanas nâstikas baudhas, que negam o Âtman, mas para o Veda o fim último só pode ser o Átman. Tem sentido negar "algum Âtman", mas não todo Âtman em absoluto, ou seja, até mesmo os materialistas entendem que o Âtman, ou seja a resolução ou realização intimíssima do Si Mesmo, é o corpo ou a psique, e poderíamos dizer que até para algumas escolas budistas, admitindo um dharmakaya ou âlayavijñâna, encontram aí o seu Âtman, e portanto sua busca e seu ponto de vista visam, já de saída, essa compreensão última.

Não é possível dar uma origem histórica exata das darshanas ou mesmo de instituições que as geraram, e é bom entender que as reconstituições são precárias. Há hipóteses que buscam fazer uma cronologia por meio de estudos das escrituras desses pontos de vista, e isso tem sua legitimidade. Se formos adotar essas hipóteses, a coisa acaba não tendo um formato muito rígido como chegou a nós, e teremos várias propostas além da tradicional de seis pontos de vista âstika e seis pontos de vista nâstika (não-ortodoxos), o que podemos visualizar em postagem futura. 

Contudo, o que dá para saber com certeza é que a darshana surge vinculada a uma personalidade mítica, de origem divina ou semi-divina, um rishi, e surge como instrumento acessório, dado em função das limitações humanas e suas respectivas qualificações, diante da impossibilidade de impor a todos os mesmos pontos de vista, e, no fim das contas, devido à decadência na percepção das verdades eternas pelo obscurecimento cósmico cíclico característico dessa era.

As organizações e divisões desses pontos de vista ocorreram gradualmente e de acordo com as necessidades. Elas têm, contudo, entre si, uma disposição arquetípica, de pontos de vista eternos e hierárquicos (que René Guénon entende, ainda que ignore os problemas históricos envolvidos).

E por fim, é preciso dizer que essa disposição não é só intelectual, mas também de culto. Os hindus equilibram os pontos de vista intelectuais, assim como os pontos de vista religiosos por duas chaves fundamentais.

Desde a perspectiva intelectual a chave é o Adhikari-bheda, que pode ser traduzido por 'diferença segundo a qualificação'. Essa chave não rompe com a unidade da mente racional, propriedade específica da raça humana, mas diz que a forma de se aproximar e usar a mente racional difere segundo a natureza das pessoas, ou seja a necessidade de uma perspectiva e uma tecnologia empírico-racional, idealista, realista ou alguma outra da compreensão da totalidade vai se destinar a diferentes pessoas, sem que nenhuma dessas perspectivas possa oferecer por si mesma o conhecimento último do Âtman.

Desde a perspectiva de culto (upâsana) a chave correspondente é o Ishta-devatâ, que indica que as formas de adoração a Deus escolhidas devem ser também variadas segundo o 'adhikari', ou seja, a qualificação e inclinação natural do indivíduo. E remetemo-nos aqui aos seguintes versos do Bhagavad-Gîtâ (7.21-22) para ilustrar essa chave:
yo yo yāṁ yāṁ tanuṁ bhaktaḥ śhraddhayārchitum ichchhati
tasya tasyāchalāṁ śhraddhāṁ tām eva vidadhāmyaham
sa tayā śhraddhayā yuktas tasyārādhanam īhate
labhate cha tataḥ kāmān mayaiva vihitān hi tān
Qualquer que seja a manifestação que um devoto queira adorar com fé, eu reforço sua fé em tal manifestação. O devoto que, imbuído dessa fé, deseje propiciar tal manifestação, recebe dela os objetos de seu desejo, pois tudo isso é por Mim determinado.